domingo, dezembro 03, 2006


Dois cineastas on the road

Reunidos em Salônica, na Grécia, Salles e Wenders, que está de volta à Alemanha após morar 10 anos nos EUA, discutem a relação tensa com Hollywood e a influência da música pop.


FOLHA DE S. PAULO - MARCOS STRECKER ENVIADO ESPECIAL A SALÔNICA, NA GRÉCIA

Depois de dez anos nos EUA, após realizar clássicos como "Paris, Texas", Wim Wenders está voltando para a Alemanha, onde começou sua carreira e produziu a obra-prima "Asas do Desejo". Walter Salles, ao contrário, se prepara para rodar nos EUA seu longa mais ambicioso, "On the Road", filmagem do livro de Jack Kerouac que inaugurou a contracultura. A Folha reuniu com exclusividade essas duas figuras-chave do cinema contemporâneo na cidade de Salônica, onde estavam para participar do Festival Internacional de Cinema da cidade. Eles discutiram sobre o destino da sétima arte -como tecnologia digital-, a importância da música, o cinema independente, a necessidade dos roteiros, além da morte, na última terça, de Robert Altman, decano do cinema independente norte-americano. Esse festival é um dos mais tradicionais da Europa e neste ano, em sua 47ª edição, homenageando os dois diretores. Acompanhe a seguir esse momento repleto de significados, quando o cineasta que reinventou a linguagem do cinema a partir dos anos 70 diz que seu "fracasso" nos EUA pode permitir que Salles seja bem-sucedido agora. Os dois mergulharam na América pelas mãos de Francis Ford Coppola, o diretor de "O Poderoso Chefão", que sonhou ressuscitar a Hollywood dos grandes estúdios. Para Wenders, Coppola "aprendeu" a lição a partir do fracasso de "Hammett" -o famoso filme "malsucedido" de Wenders dos anos 80 e que foi produzido por Coppola. É a primeira vez em que o diretor de "Buena Vista Social Club" fala abertamente desse episódio e expõe sua frustração por não ter conseguido "se tornar um americano". Para o cineasta alemão, Coppola não é mais o "teimoso" de antigamente e pode ser o produtor ideal para "On the Road" -filme que representa o sonho americano de Walter Salles, brasileiro a quem Wenders vê como seu seguidor.

FOLHA - (para Wenders) Os EUA foram um tema fundamental em sua carreira, de "Alice nas Cidades" e seus curtas iniciais até "Paris Texas". Agora você está deixando os EUA, depois de dez anos. Walter Salles faz o oposto: está "mergulhando" no país para fazer "On the Road".

WIM WENDERS - Fui lá em uma época e com uma idade de relativa inocência. Foi em 1977, eu estava com 32 anos, acho.

WALTER SALLES - Você foi o primeiro de seu grupo de amigos a ir para lá...

WENDERS - Quando filmei "Alice nas Cidades", alguns anos antes, nos anos 70, isso parecia um privilégio. Quando fui para lá, em 1977, muito jovem, vivenciei grandes experiências, viajei muito, fotografei cidades. Fui para lá com a idéia ingênua de que os filmes que me eram oferecidos, como "Hammett", me tornariam norte-americano, seriam ótimos. Depois de um ano ou dois, não filmando nenhum roteiro acabado e não chegando a lugar nenhum, usando um roteirista depois do outro, percebi que nunca encontraria uma saída. Não tinha nada. Podia olhar a história que tinha sido oferecida para mim e que eu tinha aceitado dirigir ["Hammett", produzida por Coppola] e poderia fazer o melhor para entender as idéias do produtor. Mas não poderia ser bem-sucedido e demorei algum tempo para perceber isso. Foi doloroso também porque achava que poderia me tornar um americano. Casei com Ronee Blakley, que aparece em "O Filme de Nick". Vi que não apenas não conseguiria fazer um filme americano mas também nunca me tornaria um americano. Continuava sendo um europeu e permaneceria um alemão. Não havia nada a fazer. Foi uma descoberta difícil, e o filme que fiz ["Hammett"] era vital para Francis [Ford Coppola]. Ele insistia nas suas idéias, enquanto eu insistia nas minhas. Essa briga prosseguiu até o último corte. Permanecemos amigos, nos respeitamos... No final do filme, Ronee e eu já estávamos separados... Percebi que não poderia voltar para casa, para a Alemanha. O filme que queria realizar ainda não tinha conseguido fazer. "O Estado das Coisas" [filmado na época] permitiu que eu sobrevivesse como artista. Não tinha a ver com um conflito de identidade, mas com minhas idéias sobre o que era fazer um filme. Eu não podia voltar para casa porque sentia que não tinha nada em minhas mãos. Felizmente pensei em "Paris, Texas". Ainda bem, o filme conseguiu cumprir tudo o que eu desejava. Permitiu que eu voltasse para casa e deixasse os EUA. Achava que minha aventura americana tinha sido um fracasso, tinha medo de voltar para casa. Os dois filmes que eu tinha feito eram claramente europeus ["O Estado das Coisas" e "O Filme de Nick"]. Apenas quando me reuni com Sam [Shepard] e Ry Cooder e fiz "Paris, Texas" senti que tinha mostrado capacidade de fazer algo nos EUA. Podia, então, voltar para casa e fazer meus próprios filmes. Fiquei em Berlim de 1984 a 1996, antes de meu segundo período nos EUA, que durou mais dez anos. Dessa vez eu não era mais tão ingênuo, sabia que permaneceria um alemão, que não me tornaria um americano. E "O Fim da Violência", "O Hotel de Um Milhão de Dólares" e "Estrela Solitária" eram filmes de um europeu filmando os EUA. Não tentei fazer filmes americanos. Entendo sua situação agora [dirigindo-se a Walter Salles]. Por um lado, eu não saberia que conselhos dar a você. Sei que muita coisa se passou, agora é uma época muito diferente, e os EUA também mudaram. Sei que Francis [Ford Coppola, produtor de "Hammett" e de "On the Road"] não é mais o produtor teimoso que costumava ser. Ele tinha o sonho de ser um grande produtor, recriar os estúdios de Hollywood de antigamente. Eu estava no começo desse processo. ["Hammett"] não fracassou por minha causa, mas porque Hollywood inteira não queria que ele desse certo. Francis estava interferindo em todo e qualquer aspecto do filme. E ele aprendeu que isso não é possível. Depois nos encontramos quando realizava outros filmes, como "Até o Fim do Mundo" [1991]. Foi no momento em que eu o editava, e ele foi muito generoso. Sei que ele é uma pessoa muito diferente agora. Acho que a experiência comigo pode tê-lo transformado no produtor ideal para "On the Road". Por outro lado, os EUA estão vivendo um momento tão difícil... Não saberia que conselho dar agora a você [dirigindo-se a Salles]. Você vê? Acho que seguir seus instintos, já que Francis te chamou. Acho que foi uma grande idéia sua pensar: espere um minuto, deixe eu antes explorar o território e ver o que está acontecendo [a respeito do documentário "Searching for On the Road", que Salles já filmou e está editando]. O pior que pode acontecer é ele ficar melhor do que o filme... (risos) Desejo de coração que você faça ["On the Road"]. Ao mesmo tempo, conheço as armadilhas e espero que você não caia nelas, ainda que algumas já pertençam ao passado.

FOLHA - Como entendem a utilização de gêneros no cinema (drama, western, ficção científica) e a diferença entre ficção e documentário?

SALLES - Em relação a "On the Road", de alguma forma o filme tem a ver com a história de filhos de imigrantes. Kerouac era filho de franco-canadenses, Ginsberg era filho de imigrantes da Europa Oriental, seus pais eram simpatizantes do Partido Comunista -o que não era muito popular na época. Lawrence Ferlinguetti e Diane di Prima, dois poetas que pertenciam ao coração do movimento beat, vinham de famílias italianas.

WENDERS - Você os filmou?

SALLES - Sim... Acho que é a história de filhos de imigrantes que recusaram o papel que lhes estava destinado. O que é interessante para começar a trabalhar. Quando você começa a rodar um filme, especialmente de época, acho que precisa se questionar sobre o que tem a ver com o período atual. Nesse sentido, senti que a melhor maneira de fazer um filme de ficção era começando por um documentário que contasse o legado da geração beat e de Kerouac.

WENDERS - Você vai filmar "On the Road" em preto-e-branco?

SALLES - Essa é uma boa pergunta...

WENDERS - Em "Hammett", eu briguei com todas as minhas forças para filmar em preto-e-branco. Lutei de todas as formas, mas não consegui.

FOLHA - Há uma similaridade entre alguns filmes que vocês realizaram. "Central do Brasil" parece se relacionar com "Alice nas Cidades", enquanto "Terra Estrangeira" parece se relacionar com "O Estado das Coisas", ainda que reflitam sobre conflitos diferentes -a crise política brasileira, em um caso, e a crise do cinema, em outro...

WENDERS - Eu acrescentaria ainda uma relativa similaridade entre "Diários de Motocicleta" e "No Decorrer do Tempo". Os dois têm a ver com uma jornada de descoberta, de formação. Em "Diários de Motocicleta" há uma compreensão política do mundo, você pode sentir uma transformação acontecendo nos personagens. Você quase sente a mudança de um jovem que quer se tornar um médico e descobre um outro caminho. É uma jornada de formação, de conhecimento. É o mesmo que acontece com os dois personagens de "No Decorrer do Tempo". Gosto do paralelo entre esses filmes. E deve haver outros.

SALLES - Fico um pouco tímido ao falar disso... Meu desejo de fazer filmes foi de fato influenciado pela experiência de assistir "Alice nas Cidades" e "No Decorrer do Tempo"... Não vejo relação entre "O Estado das Coisas" e "Terra Estrangeira", mas talvez você tenha alguma razão. Ainda que "Terra Estrangeira" seja um filme sobre um tipo de exílio, envolve dois continentes. "O Estado das Coisas" é sobre a imobilidade que é causada por uma forma predominante de cinema.

WENDERS - Mas os personagens [de "O Estado das Coisas", uma equipe de cinema que é forçada a interromper uma filmagem] também estão exilados do potencial deles, de alguma forma.

SALLES - Acho que posso falar sobre o que aprendi assistindo "Alice nas Cidades" e "No Decorrer do Tempo". Em cinema, o que é invisível é mais importante do que é visível...

WENDERS - Acho que essa é a manchete [desta entrevista]... (risos)

SALLES - ... o que se sente é mais importante do que aquilo que se verbaliza. A proximidade que senti desses personagens foi maior do que qualquer outra que já havia sentido em cinema. Eles eram estrangeiros à minha cultura, e mesmo assim pude me identificar. Eram talvez a melhor descrição dos dilemas de nossos tempos. Representavam todas as crises possíveis. As crises que eu conhecia ou sentia, pelo menos. Eles refletiam melhor o que eu conhecia. Uma crise pessoal mas também uma crise geral de identidade nos anos 70 e 80, uma época de formação para mim. Sinto ao mesmo tempo uma timidez com essa possível correlação mas ao mesmo tempo não posso negá-la, porque fui tão formado pelo cinema que você dividiu conosco...

WENDERS - Seus filmes têm tanta força na expressão que não devem nada a ninguém. É esse o meu sentimento real... Nem a mim nem a ninguém. E mesmo porque o "road movie" é um gênero tão puro... Acho que estamos todos de alguma forma no mesmo território. Você está seguindo seus próprios caminhos, seu próprio território. Acho impossível fazer um filme que não se relacione a algo. No mínimo, isso acaba em uma entrevista que algum jornalista fará... (risos)

SALLES - Acho que, quando você começa um filme, você precisa esquecer tudo o que conhece, de uma forma consciente. Tem a ver com ter todas as informações e deixá-las de lado. Discutimos isso em profundidade no caso de "Diários de Motocicleta". Preparamos o filme minuciosamente. Antes de começar a filmar, decidimos deixar tudo de lado e começar como um grupo, da forma como a história deveria ser contada, de uma forma original. No primeiro dia, na primeira seqüência que foi filmada, procurei esquecer tudo o que tinha reunido de informações até aquele momento.

WENDERS - Onde essa seqüência foi filmada?

SALLES - Em algumas ruas de Buenos Aires... Estava procurando encontrar o caminho que servisse da melhor maneira para esse filme. Bem, ontem [terça] soubemos da morte de Robert Altman. Sua perda foi sintomática da morte de um certo espírito independente na cena americana. Não sei se você [dirigindo-se a Wenders] concorda com isso, mas era o caso dele e de David Lynch assim como de poucos e extraordinários diretores.

WENDERS - Sim, claro, mas nós temos origens distintas. Para mim, o cinema americano, como um todo, foi uma enorme influência. De um modo muito diferente, Fritz Lang, que infelizmente não cheguei a conhecer, é para mim o melhor diretor dos EUA. Aprendi tanto com o cinema americano -com Samuel Fuller, John Ford-, mais do que com qualquer pessoa que eu tenha conhecido. Para mim, ir para lá filmar significava que eu iria para o lugar onde todo o cinema que eu adorava tinha sido feito. E isso no sistema dos grandes estúdios [de Hollywood], onde trabalharam os caras que eu admirava. Bem, Nicholas Ray e Samuel Fuller sempre foram de alguma forma rebeldes, renegados. Ainda assim, quando fui para lá sentia que ia para o verdadeiro coração do cinema. Não sabia que estava indo para o "coração das trevas" [dupla referência ao filme "Apocalypse Now", de Coppola, e ao livro de Joseph Conrad que o inspirou].

SALLES - É engraçado, porque, para mim, o cinema americano não é formador nesse sentido. Fui mais influenciado pelo neo-realismo, pela nouvelle vague, pelo cinema novo e pelos filmes da Verlag der Autoren... [produtora independente alemã dos primeiros filmes de Wenders] (risos). E pelo cinema cubano de Tomás Gutiérrez Alea, de "Memórias do Subdesenvolvimento". Esses filmes foram muito mais importantes para mim do que os filmes que mencionou. Eu os admiro, mas não consigo relacioná-los com a minha própria experiência. E Billy Wilder? [dirigindo-se a Wenders]

WENDERS - Gosto muito de seus filmes, especialmente de suas comédias. Mas nunca me influenciou muito. Fui mais influenciado pelos outros. Fassbinder foi influenciado por Douglas Sirk de outra forma...

FOLHA - Vocês já trabalharam em "road movies" sem utilizar roteiros. Quando o diretor deve utilizá-los?

WENDERS - Sempre que escrevia um roteiro, e não importa a qualidade dele, pensava que ele não era necessário, que seria muito mais divertido trabalhar sem ele. Quando não tinha um roteiro, pensava que seria muito melhor se eu tivesse um... Acho que o roteiro é um pretexto para produzir um filme. E, quando se está filmando e trabalhando com atores, o material que você ou o escritor imaginou há seis meses ou um ano não pode mais ser tão bom quanto se imaginou. O diretor está lá, filmando as paisagens, juntando as peças, e é esse o momento em que você enxerga a verdade das coisas. E, como já sei que as coisas são assim, procuro não investir muito em um roteiro. Quero evitar a situação em que esteja preso e não tenha outra alternativa a não ser seguir o roteiro. Tenho convicção de que é sempre possível melhorar um roteiro quando se está filmando. O pior que pode acontecer é ficar preso na armadilha de seguir um roteiro por pressão de produtores ou distribuidores. Esse é o pior roteiro possível.

SALLES - Em português, a palavra roteiro tem a ver com rota. É o que o roteiro deveria ser -indicar um caminho a seguir. Não deveria encerrar oportunidades, mas ampliá-las. Trabalhei com roteiristas muito instruídos, com os quais a história final era o resultado do que havíamos esboçado no início do processo. Mas "acidentes" aconteceram "on the road", e também "nas margens" da estrada. Um exemplo é uma seqüência de "Terra Estrangeira" que foi completamente transformada pelo nosso encontro com uma comunidade de angolanos, cabo-verdianos e moçambicanos. Nem Daniela Thomas [co-diretora do filme] nem eu havíamos visto essas comunidades em nenhum filme português. Mesmo assim estavam lá, presenças importantes e palpáveis diante de nossos olhos. Alteramos o roteiro para incorporar esses personagens à história, porque ela tinha a ver com o exílio -num sentido existencial mas também político. Esses personagens eram como os brasileiros. Então os incorporamos. A história foi transformada pela experiência da realização. O filme deve ser a grande pergunta cuja resposta você começa a responder durante o processo. E o roteiro deve permanecer como a base que vai permitir responder -ou não- às perguntas no final da jornada. Por outro lado, um roteiro mais estruturado, como era o caso de "Diários de Motocicleta", escrito por Jose Rivera, era excelente no início...

WENDERS - Mas, nesse caso, era um filme de época.

SALLES - Sim, mas o que percebi é que, quanto mais estruturado ele é, mais você pode ter opções. Um pouco como o jazz, no sentido de que é mais fácil se afastar do bom roteiro inicial, porque você sempre pode achar o núcleo da melodia novamente. Foi um processo libertador, os dois processos foram libertadores.

WENDERS - Há tanto investimento emocional nos roteiros, procurando imaginar o filme bem demais. Por exemplo, alguns roteiristas colocam muitos detalhes no roteiro. Quando a pessoa se levanta, quando se vira, se está com uma caneta ou tem uma certa expressão, não importa. Odeio isso. O pior é quando o roteirista coloca "cortes" no roteiro. O roteiro deve ter apenas o diálogo, o lugar, o que se passa. Idealmente, a pessoa que escreve o roteiro deve estar com você no set de filmagem. Se você confia no escritor, não há nada melhor, na minha experiência, do que tê-lo com você no set. Não significa que vá funcionar necessariamente, mas...

SALLES - Aconteceu comigo em "Terra Estrangeira" e "Central do Brasil". Em "Terra Estrangeira" porque um dos co-diretores era co-roteirista do filme e acompanhou a jornada até o final. No caso de "Central do Brasil", um dos roteiristas acompanhou todo o filme.É útil poder reinventar o filme a cada dia, porque as condições que você encontra, especialmente se está rodando "road movies", serão constantemente alteradas. A realidade vai transformar o filme, sua textura, diariamente.Se não for permeável a isso, o filme vai certamente perder a espontaneidade.

FOLHA - Peter Handke [autor de "O Medo do Goleiro Diante do Pênalti" e de monólogos de "Asas do Desejo"] foi o roteirista com quem você melhor trabalhou?

WENDERS - Peter nunca esteve num set comigo, nunca quis participar. Queria estar fora das filmagens. As boas relações que tive com escritores foram com Michael Meredith, em "Medo e Obsessão", e com Sam Shepard, em "Estrela Solitária". Neste último, não havia problemas de ego, queríamos fazer o roteiro da melhor maneira possível. Enquanto estava rodando, na maior parte das vezes, quando eu dizia que estava faltando algo, ele apenas sentava e escrevia.

SALLES - "Alice nas Cidades" e "No Decorrer do Tempo" não tiveram um roteiro preestabelecido... Você escrevia à noite o roteiro que seria filmado no dia seguinte?

WENDERS - Sempre escrevia à noite e filmávamos de dia. Em "No Decorrer do Tempo", tínhamos um plano, mas depois de dois dias desistimos. Os que deviam escrever os diálogos estavam cansados demais no final do dia para escrever... Eu assumi e escrevia à noite. E isso não foi ruim. Em geral o ideal é escrever o roteiro cena a cena, cronologicamente. A mesma coisa vale para "Alice nas Cidades". Exceto que, nesse filme, eu tinha um roteiro, mas nunca o segui. Desviei-me inteiramente dele. Em "No Decorrer do Tempo", não tivemos isso.

FOLHA - Como vocês vêem a importância da música no cinema?

WENDERS - Você [Salles] já viu "Summer in the City"?

SALLES - Sim, uma homenagem ao The Kinks.

WENDERS - Sempre fui influenciado pelo rock e pelo blues, a música que me atraía. Eu deveria ter me tornado um médico, um advogado ou um padre, mas decidi ser um pintor, músico ou um fotógrafo. Não me tornei nada disso. Eu me dei conta, mais tarde, de que havia um trabalho que unia tudo aquilo de que gostava -que era ser cineasta. Música e rock, especialmente dos anos 60 -Van Morrison, Bob Dylan e os Rolling Stones-, foi fundamental para a minha geração. A coragem de contar ao meu pai que não seria médico, mas um pintor, eu tirei das capas de todos os LPs dos Rolling Stones, de Bob Dylan e dos Beatles que tinha... (risos)

SALLES - Gostaria de ter a mesma relação com a música... Até "Diários de Motocicleta", pensava nela só depois que o filme tinha sido rodado. Mas ouvimos tanta música dos anos 50 e música latino-americana que isso realmente alterou a textura do filme. A ponto de Gustavo Santaolalla fazer a música do filme antes de ele ser rodado. Ao fazer a música após o filme, ela tende a sublinhar as imagens, e o ritmo já foi predeterminado pelas imagens. Ao fazer antes, há um verdadeiro diálogo.

FOLHA - A tecnologia digital é positiva para o cinema?

WENDERS - É uma coisa estranha. Acabei de discutir longamente sobre o cinema digital em uma palestra [no Festival de Salônica], mas não consegui expressar meus verdadeiros sentimentos sobre ele. Talvez porque eu não ache que seja correto avaliar o digital em oposição à película. Eu me recuso a fazer isso. Acho as duas tecnologias fantásticas. Não que uma seja melhor que a outra. Depende da história que você quer contar, de qual seja a melhor ferramenta e o melhor vocabulário para contá-la. Trabalhei com pessoas que começaram a trabalhar na época do cinema mudo. Henri Alekan [fotógrafo de "Asas do Desejo"] começou a trabalhar como assistente de câmera de um dos mestres do cinema mudo. Também trabalhei com atores que atuaram nessa época. Tive muita sorte de poder trabalhar com pessoas do início do cinema, aprender com as suas ferramentas. Trabalhei com câmeras digitais de alta definição, gosto delas. Mas, exatamente por gostar tanto delas, valorizo outras ferramentas. Viajo muito e vejo a realidade de jovens, do mundo contemporâneo... Temos que filmar esses meninos numa linguagem que seja própria deles, com ferramentas digitais. Por isso, acho que tendo sempre a filmar mais com o digital, para estar mais em contato com as novas gerações.

FOLHA - Quando você filmou "Até o Fim do Mundo", tinha planos de filmar no Brasil?

WENDERS - Sim, no roteiro original estava prevista a filmagem em Brasília. Mas o roteiro estava muito grande, e precisamos cortar as partes na América Latina e na África.Cheguei a pensar em filmar em Salvador, mas não levei adiante a idéia. Bem, filmei há pouco tempo no Rio. Mas isso foi para um comercial, então não conta... (risos)

"Central do Brasil" projetou Walter Salles no exterior

Nascido no Rio em 1956, o cineasta é filho do embaixador e banqueiro Walter Moreira Salles e foi criado entre o Brasil, a França e os EUA. Fundou a produtora VideoFilmes em 1985, com seu irmão documentarista João Moreira Salles. Nesse mesmo ano chamou a atenção da crítica com o filme "Krajcberg, o Poeta dos Vestígios".Ganhou projeção internacional com "Central do Brasil", indicado para o Oscar de melhor filme estrangeiro e melhor atriz. "Terra Estrangeira" (1995), que considera seu primeiro longa, recebeu prêmios na Itália e França. Como produtor, assinou em 2002 o sucesso "Cidade de Deus", dirigido por Fernando Meirelles e Kátia Lund. A VideoFilmes também é responsável por outros sucessos, como "Madame Satã", de Karim Aïnouz, e "Edifício Master", de Eduardo Coutinho.

Hollywood e rock sempre fascinaram Wim Wenders

Nascido em Düsseldorf em 1945, Ernst Wilhelm Wenders abandonou os estudos de filosofia e medicina para tornar-se artista. Em Paris, não conseguindo ingressar na Escola de Belas Artes, tornou-se aprendiz do gravurista americano Johnny Friedlander. Nesse período, que durou um ano, freqüentou assiduamente a cinemateca da cidade. Voltou à Alemanha, formando-se em cinema em Munique. Nos anos 70, encabeçou, com Werner Herzog e Rainer Fassbinder, o "novo cinema alemão".A cultura americana é influência recorrente em sua obra ficcional. Nos intervalos da conturbada produção de "Hammett" (este próprio uma homenagem a um romancista policial americano), fez o reverente "O Filme de Nick", sobre Nicholas Ray, diretor de "Juventude Transviada" (1955).

+ Filmografias

Walter Salles

Japão, uma Viagem no Tempo - Kurosawa, Pintor de Imagens (1986) - Documentário de cinco horas sobre o conflito entre tradição e modernidade no Japão que homenageia o cinema japonês nas figuras do ator Toshiro Mifune e do diretor Akira Kurosawa.

Krajcberg - O Poeta dos Vestígios (1987) - Documentário sobre o escultor polonês Franz Krajcberg.

A Grande Arte (1991) - Co-produção Brasil-EUA baseada na obra de Rubem Fonseca, narra a decadência do fotógrafo Peter Mandrake no submundo carioca em busca do estuprador de sua namorada.

Terra Estrangeira (1996) - Co-dirigido por Daniela Thomas, seu segundo longa de ficção é um filme de baixo custo feito em 16mm e considerado um dos marcos da "retomada" do cinema brasileiro. O roteiro retrata a crise econômica no país no início dos anos 1990, quando brasileiros intensificaram a emigração ilegal para os Estados Unidos e a Europa em busca de vida melhor.

Central do Brasil (1998) - Fernanda Montenegro interpreta Dora, uma mulher que escreve cartas na estação de trem Central do Brasil, no Rio, e que decide ajudar o jovem Josué (Vinícius de Oliveira) a encontrar seu pai, após sua mãe morrer atropelada.Sucesso internacional, com duas indicações ao Oscar, rendeu ao diretor e à atriz os principais prêmios em Berlim e no Globo de Ouro. O filme retrata a busca da identidade, dos personagens e do próprio país. O menino transforma a vida da escritora de cartas, que sofre com a mudança do espaço, do confinamento urbano rumo ao amplo e desconhecido sertão.

O Primeiro Dia (1998) - Filme franco-brasileiro co-dirigido também por Daniela Thomas. Ambientado no Rio de Janeiro na noite de 31 de dezembro de 1999, quando um prisioneiro foragido (Matheus Nachtgaele) e uma professora vítima de depressão (Fernanda Torres) são unidos pelo acaso quando os fogos de artifício caem sobre a praia de Copacabana.

Abril Despedaçado (2001) -Em 1910, no sertão brasileiro, vive um jovem de 20 anos, Tonho (Rodrigo Santoro), que recebe de seu pai a ordem para vingar a morte de seu irmão mais velho, assassinado por uma família rival. Dividido entre cumprir o dever ancestral e rebelar-se contra ele, o personagem se depara com a passagem de um circo mambembe por onde mora sua família. Baseado no romance homônimo do albanês Ismail Kadaré, adaptado por Karim Aïnouz.

Diários de Motocicleta (2004) - Baseado nos livros de Ernesto "Che" Guevara de La Serna ("Notas de Viaje") e Alberto Granado ("Con el Che por America"), conta a aventura dos dois argentinos em 1952 na viagem iniciática pela América do Sul em que fazem a travessia, de motocicleta, de Buenos Aires a Caracas.

Água Negra (2005) - Remake americano de filme de terror japonês, com Jennifer Connelly como protagonista, que enfrenta com a filha estranhos fenômenos em sua casa.

Wim Wenders

O Medo do Goleiro diante do Pênalti (1971) - Baseado em livro de Peter Handke, tem como protagonista um goleiro que, expulso de uma partida, sai para uma aventura criminosa.

Alice nas Cidades (1973) - No primeiro filme de Wenders com filmagens nos EUA, um repórter alemão aceita tomar conta temporariamente de uma menina e acaba tendo de viajar em busca da família dela.

No Decorrer do Tempo (1976) - Um solitário técnico de equipamentos de projeção divide uma viagem pela Alemanha com um suicida. Ganhou o prêmio da crítica em Cannes.

O Amigo Americano (1977) -Um pai de família com uma doença grave conhece um negociante de arte que lhe propõe matar uma pessoa por dinheiro. Baseado no personagem Ripley, de Patricia Highsmith.

Hammett (1982) - Homenagem ao escritor de histórias de detetives Dashiell Hammett. A primeira produção hollywoodiana de Wenders foi marcada por discordâncias entre ele e o produtor Francis Ford Coppola.

O Estado das Coisas (1982) -Filmado em Portugal, apresenta as dificuldades de uma equipe cinematográfica que tenta refilmar uma obra do diretor americano Roger Corman. Autobiográfico, faz referência às ingerências sofridas por Wenders em Hollywood.

Paris, Texas (1984) - O "road movie" passado em ambientes áridos dos EUA conferiu fama mundial a Wenders e lhe valeu a Palma de Ouro em Cannes.

Asas do Desejo (1987) - Wenders joga com cores (e a ausência delas) ao apresentar um anjo que, apaixonado por uma mortal, deseja tornar-se humano. Melhor direção em Cannes.

Tão longe, Tão Perto (1993) - A história de alguns anjos que se preocupam com os mortais no pós guerra fria em Berlim. Wim Wenders explora com maestria os vôos dos anjos, mostrando toda a sua habilidade de lidar com os movimentos de câmera e sua maneira de filmar contornando os atores como se mostrasse uma escultura em alguns travellings de tirar o fôlego.

O Céu de Lisboa (1994) - Cineasta pede ajuda a amigo engenheiro de som que, indo a seu encontro, descobre o filme sobre Lisboa a ser sonorizado e a capital portuguesa a seu redor.

O Fim da Violência (1997) - Rico produtor de cinema e marido ausente é seqüestrado. Quando se abriga num esconderijo, sua personalidade até então alienada volta a aflorar.

Buena Vista Social Club (1999) - Documentário baseado em entrevistas com veteranos da música cubana que se preparavam para a gravação de um "reencontro", organizado pelo músico e produtor americano Ry Cooder. O filme reergueu carreiras como as de Compay Segundo (1907-2003) e Ibrahim Ferrer (1907-2005).

O Hotel de Um Milhão de Dólares (2000) - Uma morte ocorre no local que dá título ao filme, onde vivem excêntricos e excluídos da sociedade. A investigação por um detetive depara com um ambiente ambíguo, que questiona os limites entre sanidade e corrupção. Urso de Prata em Berlim.

Medo e Obsessão (2004) -Uma filha de missionário volta aos EUA depois do 11 de Setembro. Sua fé no ser humano contrasta com a desconfiança inspirada pelo terror, personificada pelo tio truculento que ela vai encontrar.

Estrela Solitária (2005) - Ator em fim de carreira desaparece de filme em produção e parte em busca da família que ele abandonara.

quinta-feira, outubro 12, 2006


Entrevista

Um construtor de utopias
Mariluce Moura


Fernando Birri

“A palavra cinema já me soa conservadora. A imagem audiovisual tem outras formas possíveis além do cinema. Estou falando de uma nova maquinaria de imagens, de novas fantasmagorias, novas e insuspeitadas sombras eletrônicas, ou melhor, luzes eletrônicas que por enquanto apenas entrevemos.” No palco da imensa sala 1 do Memorial da América Latina, bem iluminado só em uma pequena área destinada ao personagem em cena, Fernando Birri, 81 anos, mirava assim o futuro, em sua aula magna no final da manhã de 14 de julho, logo após ser apresentado à platéia pelo presidente do Memorial, Fernando Leça.

Na verdade, a maioria das pessoas reunidas ali para ouvi-lo, faixa etária amplíssima, entre menos de 20 e mais de 80 anos, sabia muito bem quem era aquela figura venerável de longas barbas brancas, a lembrar um profeta nordestino, na visão de alguns, ou Leon Tolstoi, no olhar de outros. Porque para aficionados do cinema produzido fora do mainstream, como era o caso de quase todos ali, o nome de Birri, cineasta argentino e cidadão do mundo, é nada menos que uma metáfora da capacidade de resistência e de múltiplos renascimentos do cinema latino-americano, em mais de cinco décadas. Com certa freqüência a ele se atribui a paternidade do Novo Cinema Latino-Americano.

A aula magna fazia parte do 1º Festival de Cinema Latino-Americano, promovido pelo Memorial e pela Secretaria Estadual de Cultura de São Paulo, que coincidentemente tem à frente nesse momento o cineasta João Batista de Andrade. O evento fora aberto na noite do domingo, 9, com o mais recente filme de Fernando Birri, o documentário Za-2005. Lo viejo y lo nuevo, um megaclipe, como ele mesmo define, uma colagem de cenas tiradas de algumas das melhores produções do continente em diferentes épocas. Nele, trechos de clássicos como Memórias do subdesenvolvimento, do cubano Tomás Gutiérrez Alea, Vidas secas, do brasileiro Nelson Pereira dos Santos, e Tire Dié, do próprio Birri, considerado uma obra-prima fundadora, dialogam com cenas de trabalhos cinematográficos recentes de alunos da Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antonio de Los Baños, em Cuba (EICTV). Como disse em O Estado de S. Paulo o crítico Luiz Zanin Oricchio, o filme “é a perfeita imagem do seu autor – fala do sonho de um cinema latino-americano que se impõe por seu rigor, por sua força e qualidade, e cresce à margem da grande indústria mundial do entretenimento”.

Fernando Birri, casado há 46 anos com Carmen, é, registre-se logo, bem mais que um cineasta: é um teórico do cinema, professor e educador que plantou múltiplas experiências de ensino de cinema e televisão, entre as quais a escola de Cuba é sem dúvida a mais reluzente e avançada. É pintor, escritor, poeta. É um visionário, um libertário – e bela amostra de tudo isso junto está no texto denso e vigoroso de “Acta de Nacimiento de la Escuela Internacional de Cine y TV”, que integra o livro El alquimista democrático, cuja edição brasileira deverá ser publicada em breve, graças ao empenho de Sergio Muniz, documentarista brasileiro, primeiro diretor docente da EICTV. Birri é, finalmente e acima de tudo, alguém que jamais abriu mão de seu direito de construir coisas baseadas em seus sonhos mais utópicos, com método e rigor.

Gostaria de começar pelo final de sua aula, quando você disse que há algo novo que emerge no panorama da imagem, algo como uma nova “imageria” que iria muito além de um novo cinema. Como é isso?
Ainda o vejo muito nublado, a bola de cristal ainda está empanada, em brumas, não sabemos inteiramente, porque o que tem que vir nunca se sabe acertadamente, até que vem, tautologicamente. Mas sinto, intuo que efetivamente há algo, algo está se passando que se entrevê mais que se vê. Esse festival, muito sério, muito bonito – pelos filmes que se viu e tantas coisas mais – , serviu muito para isso, acima de tudo por haver recuperado uma tradição dos festivais do novo cinema latino-americano que só nos 50 teóricos se viu assim. Tínhamos ali painéis, mesas-redondas com personagens do cinema, muito importantes, e parece realmente uma preocupação... Isso por um lado. De outro lado, o Brasil sempre foi um ambiente de buscas, estudos, inquietudes e preocupações, capaz de sinalizar rumos. Aqui a elaboração teórica do cinema alcançou realmente um nível muito alto, comparado a outros países da América Latina.

Nas universidades?
Sim, nas universidades, na crítica, mesmo entre cineastas como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Roberto Santos, Leon Hirzman e tantos outros, não? Teria que fazer uma lista de nomes, com Joaquim Pedro de Andrade, Cacá Diegues, Ozualdo Candeias, Geraldo Sarno, enfim, todos cineastas que fizeram acompanhar sua obra de elaborações teóricas sumamente importantes. Esse aporte de material teórico caracteriza o cinema novo brasileiro.

Mas este “novo” que você agora entrevê tem a ver mais com as técnicas de filmagem, com a estética cinematográfica ou com a reflexão teórica?
A verdade é que eu jamais seria capaz de separar todas essas coisas. Acho que elas só se separam como objeto de estudo, de análise, como por exemplo quando Leonardo da Vinci secciona um corpo e analisa um pequeno músculo que corre para que um dedo se mova, mas há que analisar-se o próprio homem, e creio que são imprescindíveis um e outra: o pequeno tendão do dedo da unha e a alma do homem que move o dedo. Creio que nesse sentido realmente o que está se passando agora é que há coisas que estão vindo como respeito a todo um material, um background que o novo cinema latino-americano elaborou em quase meio século de vida e, sim, o que acontece com sinceridade é que muitas das coisas que foram elaboradas já não são válidas, ou melhor, são válidas para ajudar a pensar, mas nas circunstâncias já não bastam. E já não bastam porque há coisas novas que estão vindo aí, e nesse sentido há que assimilá-las e interpretá-las. Por exemplo, há duas coisas que surgem desse encontro latino-americano e que me parecem muito importantes. A primeira delas é que aqui se está lançando com muita insistência não o novo, mas os novos cinemas latino-americanos, meio século depois. Existe uma pluralidade nesse movimento e isso é absolutamente novo. Num poema que escrevi nos anos 80 para um grande encontro na Alemanha chamado Horizontes, (leia o poema) e me pediram então um prólogo para um enorme catálogo, fiz esse "Poema em forma de ficha filmográfica", em que dizia que somos um na diversidade e diversos em nossa unidade. Dizia que havia que manter sempre essa característica, esse tao, essa dialética, como você preferir, que em definitivo enriqueceu esse momento antidogmático por excelência. Quero dizer que agora essa diversidade vem assumindo muito mais força, muito mais evidência, e numa explicação simplista podemos dizer que há muito mais cinemas do que havia há 50 anos. Há 50 anos falar de cinema na América Latina era falar quase exclusivamente dos cinemas argentino, brasileiro e mexicano. Depois, em meados do século passado, aparecem outros, nos anos 60 aparece a cinematografia cubana com grande força. Mas hoje não há país latino-americano que não produza cinema. E eu não limitaria a palavra produção ao set cinematográfico, mas a usaria como produção de sentidos cinematográficos, estendendo-a assim para a produção de revistas, de crítica, de análises...

E de televisão?
... E aí vem o ponto crítico, e é justamente que de alguma forma a palavra cinema já não basta.

Foi isso o mais instigante de sua fala: como assim, a palavra cinema não basta, o que é preciso criar em seu lugar para ampliar o próprio sentido do que ela nomeia?
Há que inventar uma palavra que antecipe a invenção real do meio. Por ora podemos nos conformar em amarrar algumas palavras que existem para isso, como por exemplo “imageria” audiovisual, que me agrada muito. Ou imago, imagem, que tem um prestígio muito grande, quase fantasmagórico. É como um fantasma audiovisual, quiçá possamos dizer mesmo como um ectoplasma, como uma nebulosa que se está completando de diversas formas e da qual o cinema é uma só uma expressão...

Para além do cinema, em curta, média ou longa metragem, você está contemplando algo que se apresenta por vários meios...
Claro, mas não vamos exagerar, vamos ficar um pouquinho mais próximos, e para começar podemos nos deter em todas essas formas que já existem de fato, não de modo antecipatório. E nesse sentido há o que Pasolini chamava "contaminatio" : a contaminação de gêneros. Assim, ocorre que mesmo no cinema visto na tela normal é por vezes muito difícil separar as coisas, o que é documentário, o que é ficional... E desde já em muitos filmes existe uma intersecção, existe uma interinfluência dos gêneros tradicionais com coisas que não conhecemos ainda.

Daí a idéia do "docfic".
Claro, docfic é isso, é uma reformulação proposta por Orlando Senna na Escola de Cinema de Cuba em princípio dos anos 90, a que eu adiro porque me parece realmente que ele atinge uma intuição que de alguma maneira define uma coisa que também já está sendo. Mas deixe-me concluir o que queria dizer: onde me parece que realmente aponta tudo isso, como ponto extremo, como uma new frontier, uma nova fronteira até a qual alguns já chegaram e a estão ocupando para depois partir para outros territórios incógnitos, é o cine virtual, é a imagem virtual. Essa imagem virtual, que para a maioria, digamos assim, de um público de espectadores, de fruidores, ainda permanece algo secreto e proibido, existe para uma minoria superespecífica, por exemplo, no Massachusetts Institute of Technology (MIT), lugar onde se pratica faz décadas... é um cinema muito especial, que se pode tocar verdadeiramente, e umas tantas coisas que seguem de alguma maneira enquanto se fazem as novas tecnologias. E aqui temos uma questão que você me propunha antes: é que as novas tecnologias, as novas expressões, as novas críticas, seguem juntas, não são coisas que apontam umas para um lado e outras para um outro. É possível, sim, separá-las com a finalidade de vivissecção, de estudo, a exemplo da anatomia, mas para que o corpo caminhe, viva, respire e ame tem que estar completo e, se não o assumimos em sua completude, esse corpo...

Estamos falando entre outras coisas, aqui, das experiências do Medialab, do MIT?
Sim, claro, eles têm um dos laboratórios mais avançados no aspecto da imagem virtual e, por suposto, de todas as antecipações que de alguma maneira derrubam as classificações atuais, ou que julgamos atuais e que são velhas, do cinema.

Tudo isso que você vislumbra de novo de alguma forma se vincula a todo o trabalho de meio século de ensino de cinema na América do Sul que começa com a escola de Santa Fé? Como se juntam essas duas pontas em sua reflexão?
Lamentavelmente, por ora não se juntam. Ainda não estamos em um momento de síntese. Se me permite dizer como você, ainda estou tentando entender, não tenho resposta a revelar, não há resposta pré-fabricada para essa questão. Pensemos juntos todos nesse sentido... de alguma maneira, contudo, talvez o que nos ajude realmente a pensar um pouco a produção dos fenômenos culturais da América Latina, seja um dos mais reveladores e mais ilustrativos deles, ou seja, o fenômeno religioso, quase diria antropológico-religioso – mas me refiro concretamente ao sincretismo, o famoso fenômeno sincrético na América Latina.

Mas você não se refere aos novos movimentos religiosos, o pentencostalismo...
Vou um pouco mais atrás, digamos assim. O conceito é o seguinte: isto que estamos usando, a imagem de alguma maneira, na realidade é nessa perspectiva que estamos tentando entrever, é ainda uma apreciação sincrética do fenômeno, é um momento prévio ao momento analítico e muito anterior ainda ao momento sintético, que acredito que é aquele em que se produzirá finalmente a eclosão do fenômeno como um fenômeno social, coletivo.

Ou seja, em seu olhar estamos agora no momento de florescimento de variadas coisas, muito antes que se chegue a uma nova forma para o velho cinema, que, entretanto, não sabemos qual é.
Sim, você já pode afirmar isso na entrevista. Creio que a virtude e os riscos desse momento é que é um momento antecipatório. E todo momento antecipatório, todo momento em que o novo se apresenta de alguma forma, se intui, o espírito humano tem diversas atitudes, mas há duas fundamentais: a primeira é ousar, atirar-se num duplo salto mortal sem rede no vazio... e voar. Aí pode ocorrer tudo. A segunda é voltar para trás.

E o que é, no caso, voltar para trás?
Prosseguir falando de cinema.

Mas corremos esse risco?
Sim, claro. Não apenas o corremos, mas hoje ainda o praticamos concretamente, cotidianamente.

Em seu filme ZA-2005, sua preocupação era mostrar um pouco essa possibilidade de colagens, de sincretismo, da América Latina? Qual é a relação entre esse filme e tudo que você entrevê como panorama da” imageria” contemporânea?
São duas perguntas em uma. A primeira resposta é: busco nesse filme o que quero em todos, mas um pouco mais, porque tento abarcar um período histórico, enfrentando algumas seqüências dos filmes fundadores do cinema latino-americano e os filmes de teses produzidos pelos estudantes da escola [de Cuba] nesses 20 anos. Então isso me dá motivo para pôr umas ante as outras como espelhos, em primeiro lugar para ver se uma produção reflete a outra, ou, pelo contrário, se não se olham, se rechaçam, se quebram por inteiro, ou, a última alternativa, se indiferentemente uma dá de ombros para a outra, e não são espelhos, são simplesmente superfícies de vidro e mercúrio que não refletem nada. Essa é a preocupação do filme, em princípio uma verificação, uma operação de constatação de algo que se tenta compreender. E cada um assuma sua posição, tire suas próprias conclusões, e, nesse sentido, o filme não tem a pretensão de impor nada, mas sim tenta propor. A segunda questão: o que tem a ver esse filme com o que falávamos antes? Muito, tudo. Porque ao fazer essa espécie de balanço de alguma maneira também estamos como que fechando uma janela e abrindo uma porta, o que significa dizer, isto é de um jeito, vamos para outro – e não vou lhe dizer agora, porque seria muito óbvio, que se trata de ciclos culturais, que começam, chegam a sua conclusão, terminam. Julgo que nesse sentido o filme também propicia esse tipo de preocupação que tenho nesse momento e, como digo no começo do filme, trata-se de compartilhar tudo isso com uma espécie de megaclipe didático e coletivo para tentar entender algo – veja, não para ensinar algo, mas para tentar aprender algo, coletivamente. E nesse sentido, porque nada nasce de nada, esteve muito presente a parte de Zavattini, não em seqüências, mas o nome e o espírito. Está também muito presente um outro diretor italiano que nos últimos anos de sua vida trabalhou muito nesse sentido, que foi Rossellini. O grande diretor de Roma cidade aberta, de Paisá, de belos filmes, nos últimos anos de sua vida se dedicou à televisão (1970), fazendo filmes de uma hora cada um, como Sócrates, como Atti degli Apostoli, como La toma del poder por Luis XIV...

Isso foi no final dos anos 80...
Sim, mais ou menos. Eram filmes de uma hora, muito simples, muito elementares, destinados a difundir a vida, o paradigma, o exemplo, a referência em que se constituíram grandes personagens da humanidade. E também, muito abertos, muito pouco acadêmicos ou antiacadêmicos em sua maneira de contar a história.

Como com tanta repressão que as expressões culturais sofreram na América Latina é possível que se entreveja agora esse novo, no âmbito do cinema, surgindo aparentemente com grande vigor na totalidade do continente? Quais são as raízes dessa força latino-americana?
É uma pergunta ao mesmo tempo muito difícil e muito fácil. Muito difícil se a quisermos assumir numa análise que não seja somente a da euforia. E mais fácil se... Vamos dizer de outra maneira: é uma pergunta muito difícil se aplicamos o close-up. Mas se a tomo com teleobjetiva torna-se um pouco mais fácil ou pelo menos mais gratificante respondê-la, porque assim, com a teleobjetiva, estou falando de 500 anos de história e um pouco mais para trás. Então, vendo a América Latina nessa perspectiva inversa, digamos assim, fica mais fácil compreender que nesses 500 e tantos anos de história, incluindo a fase pré-colombina, de uma riqueza impressionante, realmente este continente fisiologicamente se mostra destinado a ser aquilo que está sendo, ou seja , a elaborar a química do novo. Porque é isso.

Como começou sua experiência de ensino na área de cinema?
Começou porque eu justamente queria aprender a fazer cinema na Argentina, ali pela metade dos anos 50 e não havia onde fazê-lo. Então, a única maneira possível era ir a um estúdio e trabalhar com alguém que fazia filmes e aprender na prática ao lado dessa pessoa. Mas quando tentei fazer isso em Buenos Aires, inclusive por todos os meios possíveis e impossíveis – me ofereci até para trabalhar varrendo o estúdio –, para que em troca me deixassem ver como se fazia um filme, mas isso não funcionava na indústria, não era habitual.

Havia então estúdios de cinema em Buenos Aires?
Claro, a Argentina tinha vários estúdios importantes. Ali estavam Argentina Sonofilm, San Miguel, Lumiton, estúdios que faziam parte da indústria tradicional da Argentina. Naquele momento eu me dei conta, refletindo um pouco depois sobre isso, que em geral todas as coisas que terão um destino nascem de uma carência. Veja, por exemplo, estava pensando esta manhã nesta conversa que teríamos... Como explicar o que lhe dizia? O fogo, por exemplo, nasceu da escuridão. Depois, bom, serviu para cozinhar também, mas o fogo nasceu da necessidade de derrotar a escuridão. Então o ser humano diante de uma carência inventa coisas, com sua grande capacidade imaginativa. Portanto, na Argentina não conseguia estudar, e esse momento coincidia com uma situação política muito tensa...

Era o primeiro período do peronismo.
Sim, para mim um momento muito dificil, mas não falo especificamente do peronismo, falo especificamente da situação do cinema durante o peronismo. O primeiro é um conceito político muito mais complexo e teria que articulá-lo de outra maneira. Estou me referindo especificamente ao cinema e à necessidade que tinha uma pessoa, um rapaz anônimo, sem nenhum antecedente, de aprender a fazer cinema nesse país.

Você de alguma maneira já convivia com o cinema? Como surgiu seu interesse nesse primeiro momento nos anos 50?
Veja, eu era de uma família de artistas, meus tios todos de alguma maneira estavam ligados à arte, música, pintura... Meu pai era professor de ciências políticas e sociais, mas esta na verdade era uma carreira que sobreveio e sufocou, de outro lado, sua verdadeira vocação que era de pintor. Eu cresci nesse ambiente, e o cinema foi um pouco um sucedâneo da minha infância, da atividade que dominou minha vida ou à qual entreguei minha vida, que era um teatro de títeres, entende?

Sim, teatro de títeres, de marionetes.
E nisso seguimos. Depois eu escrevia poesias, pintava desde jovenzinho. Também comecei uma carreira de advogado, mas isso me criou um problema terrível, uma crise, afinal mandei ao diabo essa carreira. Sabe que quando o diabo se apresentou a Lutero ele lhe atirou a Bíblia para que a lesse, não? Em meu caso não o fiz com a Bíblia, mas com um livraço de capa vermelha, que era A economia política, de Gide, um economista francês, no qual estudávamos. No momento mais alto da minha crise, eu lia, lia, lia e não entendia “páparos”, então o atirei contra a parede, como Lutero contra o diabo, e decidi ali que não ia ser advogado, mas um diretor de cinema.

Quantos anos você tinha então?
Penso que um pouco menos de 20 anos, 17 anos. Bem, como disse, eu escrevia poesia, pintava, havia fundado o primeiro teatro experimental da Universidade Nacional do Litoral, em Santa Fé, e de outro lado também havia fundado o Cineclube Santa Fé, quer dizer, já tinha um vínculo com o cinema, havia uma predisposição, mas...

Então o mundo perdeu um advogado...
Teve a sorte... (recíproca)

Buenos Aires não o aceitava...
Não, o que não me aceitava era o cinema em Buenos Aires. A cidade era fascinante, encontrei muita gente, amigos, estava Ernesto Sábato, Xul Solar, Mario Trejo, outros, muita gente, todo um clima muito simpático, e trabalhei também como ator numa obra surrealista de García Lorca que se chamava Assim que passem cinco anos, mas com o cinema se deu essa dificuldade política mais a impossibilidade de aprender, e além do mais tudo isso coincidiu com um fenômeno histórico muito importante que era o neo-realismo italiano. Estávamos nos anos em que chegavam à Argentina os primeiros filmes italianos, Roma cidade aberta, de Rossellini, vários outros... aliás, digo-lhe que na Argentina havia uma cultura cinematográfica... Por exemplo, [Sergei] Eisenstein, eu conheci antes por lê-lo do que por vê-lo, porque tinha sido traduzido do russo O sentido do cinema, um livro determinante, e isso e mais o realismo italiano foram grandes impulsos para eu seguir. Então me decidi a ir para a Itália, e foi um primeiro exílio, digamos assim.

O exílio dos anos 1950.
Exato. Saí disposto a experimentar a cinematografia e estudei no Centro Experimental num momento em que já chegavam outros estudantes da América Latina atraídos pelo neo-realismo, dos quais os dois primeiros foram este que lhe fala e um compatriota seu de quem gosto muito, que é Rudá de Andrade, uma pessoa adorável.

Quem eram seus professores em Roma?
Nesse momento havia no Centro professores fixos, como o crítico Mario Verdone, por exemplo, um grande historiador do cinema italiano, mas de outro lado vinham nos dar aula os grandes diretores como Vittorio de Sica, Luchino Visconti ou mesmo Roberto Rossellini... Também Renoir... era realmente uma plêiade de grandes diretores que vinham periodicamente dar suas aulas. Era um ensino muito sério, de muita formação.

E então os dois jovenzinhos da América Latina receberam sua formação de cinema dos grandes mestres italianos.
Exato. E depois vieram outros latino-americanos, veio García Márquez, veio Tomás Gutiérrez Aléa, de Cuba, mesmo Glauber Rocha passou pelo Centro Experimental, e tanta gente mais... Tarik Souki, da Venezuela, Julio Garcia Espinosa, também de Cuba... uma grande quantidade de companheiros.

E quanto tempo você terminou ficando nesse período em Roma?
Terminei meus estudos no Centro Experimental, que foram dois anos, me graduei, e ao mesmo tempo comecei a trabalhar no cinema italiano, em várias coisas. Trabalhei como ator, no primeiro filme de Francesco Maselli, Gli sbandati, con Lucia Bose e outras pessoas, depois trabalhei como assistente de direção de Carlo Lizzani, um grande cineasta que depois foi também diretor do Festival de Veneza, trabalhei como assistente de Vittorio de Sica e de Cesare Zavattini no filme Il tetto. Zavattini foi meu grande amigo, foi a pessoa com quem tive o diálogo mais sério, mais profundo e mais determinante para mim em minha futura carreira, porque era um vulcão, numa erupção de idéias permanente, um grande inovador, um precursor de muitas coisas, do que depois vai ser o cinema novo, o “nuevo cine”, o "free cinema", o cinema democrático, o vídeo democrático de que se fala tanto agora. Ele foi o primeiro homem que lançou os famosos "cinegiornali liberi", os cine-diários livres, que eram como noticiários, mas absolutamente antioficiais, contra a cultura oficial, contra a retórica da cultura oficial, muito provocadores, nessa época mais forte, mais florescente e produtiva do neo-realismo. A Zavattini, e justamente por isso, dedico Za05 - Lo viejo y lo nuevo, um megaclipe didático e coletivo em homenagem aos 20 anos da EICTV, a Escola de Cinema e Televisão de Cuba, que se completam agora.

E, afinal, quantos anos você ficou nesse tempo de estudos e trabalhos italianos?
Fiquei até 1955, passei portanto seis anos, contados desde 1950. E depois voltei, porque parecia que a Argentina ia tomar outro rumo, outros caminhos, havia interesse em minha experiência e eu cria que já sabia fazer um filme. Já tinha feito vários documentários, havia feito Immagini popolari siciliane, Selinunte, Alfabeto notturno, também já tinha trabalhado como assistente em vários filmes de ficção. Dessa forma decidi que era chegado o momento de voltar à Argentina, voltei já com um projeto de filme que era Los inundados, e nesse sentido já havia lido, amadurecido e escrito uma espécie de primeiro treatment.

Você efetivamente fez esse filme.
Sim, foi meu primeiro filme de ficção, de longametragem. Mas para fazê-lo tampouco encontrei a possibilidade de que a indústria cinematográfica se interessasse, quisesse fazê-lo em Buenos Aires, e então decidi queimar os navios, romper com tudo o que era instituição, o aparatschnik oficial, e voltei a Santa Fé para começar desde o chão. Então fiz um seminário em Santa Fé, onde tive quase cem alunos, que nunca haviam feito cinema. Havia de tudo: donas-de-casa, pintores, bombeiros, estudantes universitários... Enchemos uma sala e aí fizemos praticamente os primeiros fotodocumentários, que era a maneira mais simples de fazer um projeto de filme, com fotos e com papéis, com epígrafes, saindo para encontrar as pessoas. Saindo para falar com as pessoas, perguntar de seus problemas, suas aspirações, suas raivas, seus desejos, suas esperanças, seus sonhos... e ao final, depois de dois anos de trabalho, já nos havíamos organizado como grupo na universidade, através de um Instituto de Sociologia que era muito progressista, muito liberal...

Um instituto da Universidade Nacional do Litoral...
Sim, em Santa Fé. Aí praticamente nasceu Tire Dié, que é a primeira “encuesta” social que se filma na América Latina. É um filme muito polêmico, que dividiu a Argentina em a favor e contra, teve enormes detratores e teve muita gente que o apoiou. Ele tem a ver diretamente com o tema sobre o qual você está me perguntando, o do ensino. Por quê? Primeiro, porque há um paradoxo, dado que vou à Argentina para fazer um filme de ficção, e, ante a impossibilidade de fazê-lo, volto à estaca zero e faço um documentário como uma espécie de exploração de campo que depois se vai traduzir na base do filme de ficção que faço mais adiante, Los inundados. Então, entre Tire Dié – que começa a ser feito em 1955, no qual se trabalha durante todo o ano de 1956 mais 1957, e tem a primeira cópia pronta em 1958 – e Los inundados há um ar de família total, digamos. Mas agora vem o que nisso se vincula diretamente com algo que estamos falando: é que Tire Dié é um filme-escola. É minha maneira de fazer escola. Faz tempo que sei que cinema se aprende fazendo cinema. Então as especulações teóricas são fundamentais e imprescindíveis na medida em que tenham sua contrapartida da práxis. Teoria e prática andam juntas, e então enfrenta-se uma fórmula que é mais ou menos inclusive a européia, na qual se privilegiava muito a teoria. Eu faço um pouco ao revés: parto de uma práxis e nela analiso a teoria em que a sustento. É isso que se passa com Tire Dié, por isso é um filme-escola, é um filme feito para que essas quase cem pessoas que o fazem aprendam a fazer cinema. Façam cinema pela primeira vez em sua vida. Por isso, ao lado de ser um filme-escola, é também um filme coletivo. E essa é outra das minhas idéias fixas, de minhas obsessões – o cinema como arte coletiva.

Mas você é o diretor. Como o filme, sendo uma obra sua, é simultaneamente uma obra coletiva?
É porque não fui nunca um diretor no sentido convencional, tradicional, da palavra.

Você nunca teve uma visão autoral, digamos assim?
Sim, claro, o autor de todos os meus filmes são o coletivo, somos todos diretores. É o que eu faço sobre todos, e nesse sentido Tire Dié foi determinante, tem uma função de estímulo, como uma pessoa que provoca, suscita... Visão autoral sim, mas autoritária não.

Mas as raízes dessa abordagem, dessa sua forma de fazer as coisas, em seu caso, estão lançadas numa formação marxista?
Sim, é uma parte das coisas, mas não só isso. Porque sou marxista, mas sou também tântrico, sou zen... rechaço os pequenos rótulos, porque sou cronópio, sou fama... Mas é verdade que há raízes marxistas, essa concepção parte de uma visão comunitária da vida, ou da vida como um projeto comunitário e utópico, dois conceitos que animaram todo o meu trabalho, e espero poder “tirar la pata”, como dizem, ou respirar meu último respiro (viva Buñuel!) vivendo dentro disso que lhe digo.

É bom pensar a vida como um projeto comunitário e utópico?
Se não fosse assim, que graça teria? Não teria me divertido (e sofrido) como tenho feito tanto nesta vida, com todos os dramas e as tragédias das quais participei, fui parte e sigo participando e compartilhando, ao mesmo tempo sabendo que definitivamente isso é o que dá sentido às coisas, pelo menos a mim assim parece.

Quanto tempo durou a experiência de Santa Fé?
Para mim durou até 1963 mais ou menos, um pouco antes, talvez, digamos princípio dos anos 60. Porque então a situação política se pôs outra vez muito feia na Argentina, o vírus fascista e ditatorial voltou a impregnar toda a sociedade argentina. Houve um período mais ou menos democrático do presidente Arturo Frondisi, mas os militares voltam uma outra vez a sacar suas asquerosas botas, voltam a pisotear todos e a acabar com tudo. E então para preservar um pouco a escola cujo nome oficial era Instituto de Cinematografia da Universidade Nacional do Litoral, mas que passou à história do cinema com o nome de Escola Documental de Santa Fé, decidi que não me restava outra opção senão ir-me...

Mas quantos documentários foram feitos enquanto você estava à frente da escola de Santa Fé?
Foi bastante, mas não quero dar um número que pode não corresponder à realidade.

E estão todos preservados?
Alguns sim, outros não. Por exemplo, o segundo documentário importante que a escola fez, Quarenta quartos, de um cineasta que se chama Oliva, que havia sido meu aluno, o presidente argentino desse momento o proibiu, não pôde ser visto. As coisas já se punham muito duras, muito rígidas. E ao final, depois já na época mais dura da ditadura, nos anos 70, terminaram por fechar a escola. Fecharam-na, e os militares pegaram todas as coisas, as câmaras, as moviolas... chegaram numa noite com dois grandes caminhões, com dois toldos, lonas, puseram tudo lá dentro e... desapareceu a escola. Mas tudo isso não é uma história trágica, senão o contrário, porque agora a escola existe outra vez.

Quando a escola foi reaberta?
Há alguns anos, quando retornou a democracia, foi proposto que se reabrisse a escola. Isso aconteceu e há três ou quatro anos ela tem inclusive um status já reconhecido oficialmente, chama-se Instituto de Meios Audiovisuais e é dirigido por um ex-aluno meu que se chama Rolando Lopez, uma pessoa muito boa e capaz. E justamente ontem [23 de agosto] me mandou um e-mail dizendo que terão uma casa grande para trabalhar, com cursos, formando gente, um lugar muito ativo com muitos bons professores, o Fernando Solanas, Dolly Pussi, Tristan Bauer, outros cineastas argentinos...

E você também dá alguns cursos?
Sim, eu vou uma vez por ano e dou uns seminários. Agora tenho que ir em novembro. Fico um mês, porque em seguida vou fazer outro seminário numa nova escola que vai ser inaugurada na Universidade San Martín, na província de Buenos Aires. É uma universidade muito nova, avançada e progressista, que funda uma escola de cinema documental.

Você dizia que partiu mais uma vez no começo dos anos 60, quando as coisas voltaram a ficar rígidas na Argentina. Dessa vez, para onde?
Para o único lugar onde pensava que de alguma maneira poderia ter portas e janelas abertas. Mandei uma carta, ou chamei por telefone, já não recordo, a um amigo em São Paulo, e então lhe disse que estávamos em uma situação insustentável, tínhamos que sair da Argentina, e queria saber se havia alguma possibilidade de virmos ao Brasil. E então esse amigo que era o querido Vlado [Vladimir Herzog], que havia estado com Maurício Capovila na escola de Santa Fé, o que me disse foi simplesmente “venham, estamos esperando”. Era em 1963 e o Brasil vivia uma abertura democrática incrível. A Argentina... bem, em poucas palavras: deixávamos para trás a escola, éramos quatro companheiros, homens e mulheres: Edgardo Pallero, sua companheira Dolly Pussi, Manuel Horácio Gimenez e minha companheira Carmen. Em São Paulo nos organizaram uma palestra na cinemateca, onde estava Paulo Emílio [Salles Gomes]. Quem organiza é Rudá de Andrade, e junto com ele está Vlado e também Sérgio Muniz, está toda a turma com a qual, quando termina a palestra nesta mesma noite, saímos todos com um entusiasmo único, falando em fazer muitos filmes, e isso e aquilo – havíamos apresentado Tire Dié e outros documentários da escola –, e então se aproxima um senhor, jovem ainda, porém um pouquinho mais velho do que nós, que diz “que bom... tenho uma casa de fotografia que tem aparelhos”... e esse senhor...

Thomaz Farkas!
Sim, Thomaz Farkas, grande Thomaz! Nasce então aí o movimento documentarista paulistano. E Thomaz decide levar adiante essa empresa, a assume economicamente, produz os documentários, e nós ficamos uns meses mais, depois vamos ao Rio porque a possibilidade de fazer filmes estava mais no Rio, uma vez que eu já vinha preparando um projeto com Ferreira Gullar, que era João Boa Morte.

Como você disse que se chamou a mobilização para a produção de documentários, Movimento Documentarista de São Paulo?
Agora o chamamos assim, no momento não lhe dávamos nome. Fazíamos coisas, os nomes viriam depois. É como os bebês, eles não nascem com nomes. Bom, então vamos ao Rio, trabalho com Ferreira Gullar na direção de João Boa Morte, se produz aquela coisa incrível quando as terras são dadas aos camponeses [o decreto da Supra, Superintendência da Reforma Agrária], esses também são os meses em que estréiam Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos, e Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha...

Nossas duas obras-primas...
Sim, mas há toda uma efervescência bonita mesmo, um momento único. Lembro da comemoração do que deveria ser o princípio do fim do latifúndio, com os camponeses enchendo a praça, chegavam com os tratores, as foices, feixes de trigo – me fazia pensar en La tierra, o filme de Dovsenko, dos começos da cinematografia soviética –, uma coisa incrível, impressionante... Era o começo de uma era, e justamente por isso uma semana depois se trunca e já vem o contragolpe, e os próprios companheiros brasileiros me aconselham que deixe o Brasil, somos una complicação também para eles porque já nesse momento não há mais garantia de segurança para ninguém. E assim é a coisa, tenho que ir-me outra vez.

Estamos em 1964 e você volta à Itália.
Não, passo primeiro por Cuba, e lá também não posso fazer nada porque a cinematografia desse país está num momento economicamente muito difícil. E então vou à Itália e aí começa um período que continua de certa forma até o presente momento em que estou falando. Foi um período dolorosamente frustrante no início, muito ativo depois, no qual praticamente alguém já passa a ser um cidadão do mundo. E há uma frase muito desgarradora de um cineasta argentino, que foi morto pela ditadura em Paris, Jorge Cedrón, que desde então passa a ser meu lema: “Minha pátria são meus sapatos”. A vida me obrigou a isso, então eu o assumo, assumo bem, e com sonhos de futuro. Ponto e basta.

Quando você voltou à Itália, voltou a trabalhar com os diretores do neo-realismo?
Não, praticamente voltou à Itália meu corpo, mas não voltou a minha alma. Minha alma seguiu não sei onde, e começou um período muito duro, que alguns chamam de "exílio interior"... Bom, que seja, o exílio exterior, o exílio interior é tudo uma grande ausência e, em troca, eu o evoco num filme que me tomou dez anos de trabalho, que se chama Org. É um nome inventado (cuja raiz etimológica está na palavra orgasmo), é um filme que eu dedico a Che Guevara, a Mèliès, o cineasta de Viaje a la luna, e dedico a Wilhelm Reich, o autor da revolução sexual. Porque creio que são três figuras emblemáticas que ficam do final dos anos 60, quando o homem chega à Lua, em 1969, e antes, em 1967, quando se produz a morte de Che, e quando a situação política explode, em 1968, no maio francês, no projeto de um novo mundo e de um mundo que se transforma. O filme trata de tudo isso, e é também um manifesto "por um cinema cósmico, delirante e lúmpen". É um filme absolutamente demencial, mas que traduz as Utopias (positivas) e Distopias (negativas) desse momento de demência única. De certo modo, é um filme que participa das tensões de A idade da terra, de Glauber. São dois filmes irmãos.

Desta segunda vez, até quando você ficou na Itália?
Até que terminei Org e voltei à América Latina pela Venezuela. No norte da Venezuela, em Mérida, havia um departamento de cinema de antigos companheiros meus em Roma. O diretor era Tarik Souki. Voltamos a nos encontrar e ele me levou à Universidade dos Andes, em Mérida, onde fundei no começo dos anos 80 outra escola, o Laboratório Ambulante de Poéticas Cinematográficas. Era alguma coisa muito simples, que dizíamos que estava feita para fazer cinema, ler e pensar cinema. Aí trabalhei vários anos, terminei em 1983 meu filme Rafael Alberti, un retrato del poeta por Fernando Birri, e depois de vários anos de trabalho voltei à Itália, e daí à Nicarágua e a Cuba.

Porque era ambulante? Porque estava em cima de um carro, uma caminhonete, algo do gênero?
Não, porque estava em cima de meus sapatos. O laboratório ia aonde eu ia, essa era a idéia. Assim o laboratório esteve em muitas partes do mundo.

Você podia brincar, parodiando o lema de Glauber, do Cinema Novo, “uma câmara na mão e uma idéia na cabeça”...
Sim, exatamente, uma câmara sobre meus sapatos... mas o laboratório foi a muitas partes. Desde a Suécia até Angola e Moçambique, passando pela Alemanha, claro que viajou dentro da América Latina, na Nicarágua, México, Colômbia, Brasil, Argentina... meio mundo e um pouquinho mais. Aonde eu ia mostrar meus filmes, fazer minhas conferências, meus seminários, ia o laboratório. E era uma maneira de já ir difundindo, ir semeando, ir plantando as sementinhas do novo cinema latino-americano.

Nesse momento ainda eram difíceis grandes encontros de cinema latino-americano?
Não, não mais. No princípio, sim, era quase impossível. E depois de muitos anos, depois do final dos anos 50, o primeiro encontro foi no Sodre de Montevidéu, para o qual convidaram o Nelson [Pereira dos Santos], eu, e estava o diretor da cinemateca do Uruguai, Martinez Carril, que havia organizado isso, e foi o primeiro momento em que num evento público, como um festival, começamos a nos encontrar, nós, os latino-americanos.

Mas então ali estava a escola, o laboratório ambulante nos anos 80...
... vai se movendo, vai fazendo coisas, e quase lhe diria que, numa conseqüência lógica, normal, porque o movimento do cinema latino-americano estava sendo incrementado, o festival de Havana se tornava forte, tudo isso, então, na metade dos anos 80, em 1986, nasce a Escola Internacional de Cinema e Televisão, que é um projeto da Fundação do Novo Cinema Latino-Americano. Fundação que está formada por todos nós, muitos brasileiros inclusive, como Cosme Alves Neto, determinante nesse processo, Geraldo Sarno, Silvio Tendler, agora também Wolney Oliveira, tantos companheiros... Orlando Senna, grande figura... E justamente quando me encarregam de formar a escola de Cuba, que é um projeto absolutamente autônomo, original, porque reconhece todas as experiências, mas não quer imitar nenhum modelo, entre as pessoas que chamo para colaborar comigo estão Sérgio Muniz e Orlando Senna, que depois vai ser meu sucessor na escola, com uma qualidade humana e artística de primeira ordem, e que introduz o conceito do docfic, uma tendência estética onde de alguma maneira se superam as velhas formas arterioesclerosadas da ficção, por um lado, e do documentário por outro. Docfic é uma palavra inventada por Orlando.

Sei que você já contou isso muitas vezes, mas faça, por favor, um breve resumo da fundação da escola de Cuba, processo em que você foi uma figura central.
Muito rapidamente, porque isso já foi contado tantas vezes! Uma madrugada, Espinosa, que nesse momento era presidente do Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficos (ICAIC) e estava acostumado a me chamar nas piores horas, quando sempre estava dormindo por causa da diferença de fuso horário, me despertou e disse: “Fernando, você tem que vir!”. Disse-lhe sim, você já me chamou outras vezes, e ele: “Não, você tem que vir agora, esta manhã”. Ri, lhe disse, “mas como?, é quase manhã”. E ele me perguntou quando eu poderia ir: “Depois de amanhã”, lhe disse. Embarquei. E quando cheguei vi que já estava García Márquez, que já havia confabulado com Espinosa e com Fidel, e a idéia era me encarregar da direção – mais que a direção, era realmente a fundação da escola de cinema –, e então pensei um pouco, porque imaginava o grande trabalho que íamos ter, o que ia significar não fazer uma coisa dejá vu, haveria que pensar tudo, desde o projeto, as pessoas, até a instalação do tubo que levaria água para os chuveiros...

Enfim, todas as questões práticas e teóricas estariam a seu encargo.
Bem, um momento, a responsabilidade era minha, mas o trabalho era de todos, aí voltava essa noção do conceito de que falamos antes, o coletivo, a equipe. A escola foi o resultado desse trabalho coletivo. Convocamos companheiros de todos os países da América Latina, que vieram dar sua colaboração. Sérgio Muniz veio como diretor docente, Tarik Souki como diretor de produção, Orlando Senna como professor do staff de direção. Foi um trabalho compartilhado. E, para começar, o verdadeiro nome da escola era Escola dos Três Mundos: América Latina e Caribe, Ásia e África. Isso tinha um sentido polêmico, porque nesse momento na Europa falava-se muito no Terceiro Mundo, uma denominação que eu sempre abominei, sempre reneguei, porque me parecia indigna... ora, ninguém no mundo se sente de terceira categoria, e só pode dar essa denominação somente um mundo que se atribui a condição de primeiro. Então, para romper esse equívoco, chamei nossa escola "de três mundos", que permaneceu como um sobrenome. Enfim... havia outras necessidades formais, então mantivemos esse nome meio secreto nem tão secreto. Bem, a escola nasce com parâmetros muito específicos e muito inovadores. Porque veja, ela se propõe como escola de documentário e de ficção.

García Márquez, em Como contar um conto, dá um testemunho fantástico da experiência da escola, de como se podia ir montando coletivamente roteiros...
Sim, está muito bem contado, e ele sempre esteve muito identificado com essas experiências da escola. Trabalhava-se no roteiro, e já nas últimas oficinas dele, depois do celuloide já estava incorporado à prática da escola o teipe magnético. Na metodologia cuidou-se sempre de prática e teoria juntas.

E como lhe parece que está a escola hoje?
Muito bem. Creio que é preciso atualizar algumas coisas, por conta das dificuldades econômicas que houve. A escola era gratuita, hoje cobra, e é importante a gratuidade porque na América Latina a cobrança é sempre discriminatória. A escola tem um grande e justo prestígio internacional, mantém-se a ligação entre prática e teoria, os alunos filmam como uns loucos, não há dia nem hora em que não esteja às voltas com câmeras e gravadores... Mas creio que é hora de expandir a área das tecnologias eletrônicas. Creio que isso é o que tem que fazer a escola nesse momento, porque é o que vai continuar autorizando-a a ser uma escola de vanguarda, futurista, como foi no momento em que a criamos. Há um obstáculo, que são os custos da eletrônica, que ainda são altos. Mas sonho que a escola tenha um departamento de imagem virtual.

E assim voltamos ao princípio de nossa entrevista. Mirando o futuro, a” imageria” nova.
Exatamente. É esse o sentido da coisa: estimular uma “imageria” e uma imaginação que de alguma maneira antecipem o futuro. Se o audiovisual, o velho cinema, já não servem para nada, se são obsoletos, se significam sonhar os velhos sonhos, todas as noites precisamos cerrar os olhos para sonhar os novos sonhos. Lia outro dia que Negroponte, o mago branco da Intermídia, MIT, está numa campanha absolutamente louca e bela de fazer computadores que não custem mais do que US$ 120, US$ 150. Bem, isso em minha opinião é algo como a invenção da imprensa por Gutenberg. Produz-se uma revolução dos meios e muda já algo dentro da cabeça dos homens e das mulheres. É para o que estamos vivendo e para ter um pouquinho de felicidade, se for possível.

Pesquisa FAPESP - Edição Impressa 127 - Setembro 2006

domingo, setembro 03, 2006


O ideal hippie da web

Em livro lançado nos EUA, o professor de Stanford Fred Turner defende que a internet é um legado da contracultura dos anos 60.

ERNANE GUIMARÃES NETO - FOLHA DE S. PAULO


A internet é um legado tecnológico dos hippies. Essa é a tese do livro "From Counterculture to Cyberculture" (Da Contracultura à Cibercultura, University Of Chicago Press, US$ 29, R$ 63), de Fred Turner, que acaba de sair nos EUA. O autor, professor de comunicação na Universidade Stanford, na Califórnia (EUA), argumenta que os cientistas responsáveis por certas redes de segurança usadas na Guerra Fria -que deram origem à internet- "nadavam" em contracultura. Os valores hippies teriam impregnado a tecnologia hoje mundialmente disseminada -a comunicação entre pares, sem hierarquia, que é a web. Uma peça-chave dessa influência, segundo Turner, foi o "Whole Earth Catalog" (Wec), a enciclopédia alternativa editada por Stewart Brand, que se autodenominava um livro de "acesso a ferramentas" como mapas, bibliografia, endereços de cursos e instituições, receitas "faça-você-mesmo" -sempre de acordo com o viés do comunitarismo alternativo da contracultura. Em entrevista à Folha, Turner qualificou sua obra como um trabalho de "história cultural da computação" e estabeleceu ligações entre a tecnologia disponível e a forma como a cultura alternativa dela se apropria.

FOLHA - Como define seu livro?

FRED TURNER - Penso nele como uma história cultural da computação. Com isso quero dizer que, normalmente, se conta a história dos computadores como uma história de máquinas, de mudanças tecnológicas, enquanto meu livro tenta contar uma história "tecno-social".

FOLHA - O livro gira em torno da história do "Whole Earth" e de Stewart Brand. Qual sua importância para os desdobramentos da web?

TURNER - Foram muito importantes nas mudanças tecno-sociais, mas não tiveram reconhecimento. Foram eles que reuniram engenheiros, cientistas, representantes da contracultura e artistas. Juntos, esses grupos decidiram o sentido cultural do computador. Eles ficaram famosos, mas seu poder não foi reconhecido -o de juntar grupos que não se ligavam.

FOLHA - Eles deram cara à web?

TURNER - Muito. Pelo menos a forma como os norte-americanos a enxergam.

FOLHA - Por que o grupo de Brand teve tanta influência?

TURNER - Vamos imaginar a região de San Francisco em 1971, 1972. A era dos hippies, do rock and roll havia passado e San Francisco era o centro disso. O pessoal do computador, na época, estava fora da contracultura. Eles não eram "os bacanas". Uma vez perguntei a um deles por que se aproximou de Brand. "Porque Stewart Brand arrumava namoradas." Assim, Brand e a contracultura trouxeram um valor social que eles não tinham. Queriam ser legais, arrumar namoradas, ter estilo. Mais tarde, no início dos anos 80, quando a contracultura já havia morrido, pessoas como Brand se voltaram para os pesquisadores em computação -que passaram, então, a ser as pessoas "bacanas"- e os ajudaram a recuperar seu status cultural.

FOLHA - Como comparar os anos 1960, quando havia muita discussão política e de modelos econômicos, aos dias de hoje, em que hackers e ativistas digitais têm questionado o capitalismo?

TURNER - É uma conseqüência negativa importante das coisas que assinalei no livro. A cultura hacker é geralmente sobre como invadir máquinas e fazer dinheiro; a luta política, para eles, é o mundo da engenharia. Enquanto pessoas morrerem no Iraque e no Afeganistão, alterar a configuração de um computador não é necessariamente um ato político forte.

FOLHA - Então os hippies não mantiveram seus ideais vivos, no esforço conjunto com os "nerds"?

TURNER - Eles mantiveram seus ideais, mas eram ideais antipolíticos. É o modelo hippie: dar as costas à política e construir uma vida privada melhor.
FOLHA - Mas isso não é o que qualquer pessoa comum faz?

TURNER - Concordo. Nos anos 60, as pessoas formavam comunidades, mas que se pareciam muito com os subúrbios que elas haviam deixado para trás: as distinções de gênero, o racismo freqüente etc.

FOLHA - E as comunidades virtuais têm os mesmos problemas?

TURNER - Em muitas comunidades, há uma retórica da comunicação entre pares, um legado da contracultura. Uma grande esperança da contracultura é erigir uma sociedade de iguais, sem governo hierárquico. Mas as pessoas não funcionam assim, nem a internet. Mesmo quando não há moderadores, há pessoas de diferentes capitais sociais -educação, relações, dinheiro.

FOLHA - Com as ferramentas de busca, as minorias podem se encontrar mais facilmente. Como isso afetou a contracultura?

TURNER - Ao tornar mais fácil a busca por outras pessoas, a internet exigiu menos compromisso do indivíduo. Nos anos 60, para encontrar quem compartilhasse de seus ideais, era preciso ler o jornal, usar o telefone ou, mais provavelmente, pegar um carro e ir até onde estavam. Isso dá trabalho. Hoje, basta estar on-line, o que não exige tanto compromisso, mas dá a sensação de estar atuando. Há a ilusão de que falar é mudar, que é o aspecto ruim dos blogs. Falar às vezes gera mudança social, mas não com a freqüência que os falantes imaginam.

FOLHA - O sr. acredita que dessas palavras possa virá a ação?

TURNER - Não sei muito sobre a nova geração de ativistas, mas, em relação àqueles que vejo, são um pouco como os antigos. Não estão dando as costas ao capitalismo; ao invés disso, estão usando negócios para agir. A maioria dos meus alunos, por exemplo, só quer saber de arrumar um emprego.

FOLHA - Então o sr. acha que os mais jovens tendem a deixar de lado esse viés revolucionário da internet?

TURNER - Há o indymedia [http://www.indymedia.org/], que faz coisas para gerar mudanças. Mais poderosas que essas são as manifestações anônimas em sociedades mais repressivas, como a iraniana e a chinesa. Nos EUA, muitos acham que a expressão individual é um ato revolucionário. É um pouco, mas não é o mesmo que formar um partido político.Ainda não tivemos bons exemplos da internet como um lugar para forte organização. Ela funciona bem para juntar dinheiro, mas não para reunir pessoas e formar partidos.A internet ainda está lá, pode ser usada por quem pensa em mudanças, mas aqueles que querem mudanças sociais precisam se concentrar em organização social, em política, e usar as ferramentas da internet -a habilidade de conectar, falar, representar- como apoio para a construção de novas instituições políticas -não apenas espaços de conversação política; esses já existem em número mais do que suficiente.

ONDE ENCOMENDAR - Livros em inglês podem ser encomendados no site http://www.amazon.com/

segunda-feira, agosto 21, 2006


Caetano Veloso é verbo e adjetivo


Caetano Veloso é reconhecido mundialmente. Em julho último, em Roma, durante turnê italiana, a procura por ingressos foi tão grande que a capacidade do anfiteatro de Ostia Antiga teve de ser ampliada, com a colocação de lugares extras nas escadarias. Entre músicas de seu repertório, ele cantou "Il mondo". A platéia foi ao delírio. Mas Caetano não é só um dos maiores nomes da história da música brasileira. É, também, influente pensador e crítico da nossa cultura. Dotado de clareza e sensibilidade, apurado sentido literário e valores humanos bem desenvolvidos. Tem densidade ética, um profundo sentido estético e a generosidade de poeta abençoado por todos os santos. Ajudou a moldar o comportamento de sucessivas gerações nas últimas quatro décadas e faz 64 anos de idade este mês. O "Leãozinho" Caetano Veloso recebeu a equipe da CULT no apart-hotel em que vive sozinho, no Leblon, Rio de Janeiro. Participaram do encontro o ensaísta carioca Francisco Bosco, a jornalista Fernanda Paola e o fotógrafo Emiliano Capozoli Biancarelli. A poeta carioca Claudia Roquette-Pinto, também presente, hospedou gentilmente em sua casa os jornalistas de São Paulo, que perderam o vôo de volta. Não foi uma entrevista convencional, ortodoxa, mas uma conversa informal, alimentada a sucos e sanduíches, em um lindo sábado de sol. Caetano acabou de gravar seu 40º disco, depois de seis anos sem lançar um com composições inéditas - as últimas estão em Noites do Norte, de 2000. Cê, que sai pela Universal, foi produzido pelo filho Moreno Veloso e pelo baixista Pedro Sá. Apenas três músicos participaram das gravações e estão presentes em todas as faixas: o próprio Pedro Sá, Ricardo Dias Gomes e Marcelo Callado "São doze canções, como nos LPs de vinil, e foram gravadas rapidamente, em dois meses", diz Caetano. O autor de Verdade tropical, livro "importante e notável" segundo o crítico Roberto Schwarz, já disse e repetiu: "o Brasil vai dar certo porque eu quero". CULT acha que vale a pena acreditar nessa possibilidade. Depois de tantas esperanças desfeitas, a aposta na idéia forte e luminosa de Caetano tem no mínimo razões tão factíveis quanto as que nos levaram a embarcar com a mesma fé em outros barcos. Então, ficamos assim: o Brasil vai dar certo porque Caetano quer, a revista quer, o leitor quer e todos nós queremos.

Daysi Bregantini


CULT - Um traço marcante do seu pensamento é a ternura. Seu pensamento crítico sobre o Brasil, conquanto sempre exigente, é impregnado dessa ternura. Você se refere ao povo santamarense ( Santo Amaro da Purificação, na Bahia, cidade natal de Caetano) como "povo doce e moreno". No entanto, há indícios de mudanças significativas nesse êthos coletivo: o agravamento da miséria, a hostilidade entre classes sociais distintas, o caráter não pragmático da violência, entre outros. Você acha que o Brasil está perdendo a ternura?

Caetano Veloso - A essa lista que você apresentou faltou um traço essencial, que é a novidade do fator racial à frente de todas as diferenças. Eu acho que essa entrada do fator racial como motivo de ódios organizados é a novidade mais contundente contra essa auto-imagem terna. É uma outra maneira de se referir ao famoso homem cordial, que é uma expressão criada pelo Sérgio Buarque de Holanda, mas, para ele, tinha um sentido diferente daquele que veio a ter popularmente. Todas as ressalvas que ele fez depois, e que outros também fizeram, são válidas e intelectualmente necessárias. Mas a visão que ficou consagrada revela alguma coisa que está mais no fundo da própria idéia do Sérgio; a visão popular atingiu o inconsciente do conceito dele. Eu penso que a imagem do brasileiro como terno e doce está sendo posta em xeque historicamente, mas, sobretudo, está sendo muito atacada por movimentos da alma que se querem, talvez, superiores a isso. Acho que eles complexificam a nossa imagem. O elemento fundamental dessa mudança é o fator racial. Eu já estou um pouco cansado de tantos ataques. É como se dentro de mim tivesse uma virada em defesa do homem cordial e da democracia racial contra esse racismo.

CULT - Contardo Calligaris, em um artigo publicado há alguns anos, na Folha de S.Paulo, fala sobre o fim do homem cordial. Segundo ele, grosso modo, a realidade econômica do Brasil ficou tão estratificada que não é possível mascarar o conflito racial através do afeto. Na sua opinião, além disso ser uma dinâmica de contradições internas da própria sociedade brasileira, por quem a ternura e a cordialidade estão sendo atacadas? Pelos movimentos negros, que assumem estratégias políticas fundamentadas em modelos americanos?

C.V. - Sim, mas não exclusivamente. O Contardo Calligaris, por exemplo, sem que aquilo fosse propriamente uma grande novidade, defendeu, no livro Hello Brasil (que saiu justo quando eu estava escrevendo Verdade tropical, no qual polemizo sobre isso, pois é uma reportagem comprida, tudo que me passava pela cabeça naquela época eu escrevia), uma atitude bem veemente contra a idéia da democracia racial, a antropofagia de Oswald de Andrade e esses mitos brasileiros autocomplacentes e auto-indulgentes. Eu respeito muito esses ataques. Há ataques de vários lados. No ensaísmo, no movimento negro. Outro dia tive uma discussão com MVBill a respeito disso. Ele estava se reportando a um embate que teve sobre essa questão com o Arnaldo Jabor, que estava numa posição oposta à dele. Eu acabei não me contendo e iniciei uma discussão, onde eu queria fazê-lo ver que ele precisava levar em conta que grande parte do que é, não só movimento de consciência da questão racial, como o movimento específico do hip hop, ao qual ele se filiou, tem muito do desejo brasileiro exposto em várias áreas de ansiosamente imitar os americanos. E, de certa forma, com isso, se reafirmava uma humilhação dos brasileiros perante os americanos, o que não difere da humilhação dos negros perante os brancos. Há alguma coisa aí que fica de fora quando a pessoa não coloca certos elementos na equação. Eu pedi a ele que pusesse.

CULT - A sua posição é de que a gente deve borrar as fronteiras da raça, ao invés de radicalizar a segregação, mas ao mesmo tempo sem cair numa autocomplacência edulcorada da nossa realidade?

C.V. - Isso. Não tenho nada a opor a isso.

CULT - Sobre a questão das cotas para negros nas Universidades, qual a sua opinião a respeito?

C.V. - Eu não sou muito simpático, não. Acho que não é assim tão fácil. Não é uma solução simples e nunca será. Há nisso um desejo de imitação dos programas americanos.

CULT - O que pensa dos Estados Unidos?

C.V. - Eu sou um grande admirador dos Estados Unidos, não tenho raiva nem ressentimento. Não acho que nossa miséria é uma conseqüência da maldade, do egoísmo deles. A nossa miséria é resultado da nossa própria incompetência, e a grandeza deles é conseqüência da competência deles, que se expressou na visão espetacular dos fundadores da democracia americana. Muita gente diz que o povo brasileiro tem um grande ressentimento contra os Estados Unidos, que se sente oprimido e que tem vontade de dar o troco. Houve até quem aplaudisse a derrubada das torres do World Trade Center. Uns, publicamente, outros, à surdina, mas não que eu não ficasse sabendo. E, possivelmente, muitos eu não soube. Mas, por outro lado, o Brasil é um país onde as pessoas pobres batizam seus filhos com nomes de Jefferson, Washington, Wellington, o que eu acho maravilhoso. Quando vai modernizando coloca Michael, por causa do Michael Jackson. Eu acho que isso quer dizer muita coisa e de certa forma, fala de algumas regiões mais profundas da alma brasileira do que essa raivinha impotente contra os Estados Unidos.

CULT - Em plena onda antiamericana, você lançou o CD A Foreign Sound...

C.V. - Fiquei muito contente com essa coincidência. Foi a única coisa de que eu gostei muito no CD. Fazer com tanto atraso um disco, que eu nem queria mais fazer, achava desnecessário, atrasado e irrelevante por causa de tantas coisas que aconteceram na música nesse século. Mas a coincidência de ser no ápice do antiamericanismo internacional foi um aspecto que me pareceu interessante. Estimulou-me a continuar fazendo A Foreign Sound.

CULT - No livro O mundo não é chato (Companhia das Letras, 2005) há duas palavras que são fundamentais para seu pensamento crítico, e também norteadoras de suas produções artísticas. Uma delas é a competência. Em um dos momentos mais surpreendentes do livro, você fala sobre Carmen Miranda, chamando atenção à competência dela, à precisão de seus gestos, que se parecem com os de um desenho animado. Falando sobre o Cinema Novo, você comenta a precariedade técnica, aquele velho problema crônico do cinema nacional. Você fala também da competência do cinema contemporâneo, da destreza de um Cacá Diegues. Você se queixa da má qualidade das gravações de seus discos das décadas de 1960 e 1970. Mas, em contrapartida, conserva uma exigência não menos importante, que é a da experimentação. No visionário ensaio "Diferentemente dos americanos do Norte" você exige que o Brasil radicalize sua experiência histórica, afirmando e consolidando sua singularidade. Você acha que o Brasil tem se tornado mais competente porém menos experimental?

C.V. - Começando por sua observação sobre Carmen Miranda, chamo a atenção para um fato curioso: Carmen não sabia sambar. Sendo exímia dançarina, ela estilizou os movimentos oriundos do candomblé - segundo Caymmi, ensinados a ela por ele - num idioma gestual espanhol, com mãos em flamenco kitsch; mas será que nem olhou para os pés das passistas? Ao mesmo tempo, há malandragem carioca nas recuadas da parte baixa de seu corpo. Tudo isso faz com que se pergunte: as meninas brancas terão aprendido a sambar décadas depois do auge de Carmen? Mas, voltando ao sentido de sua pergunta sobre a competência e a experimentação: será que uma coisa é o preço da outra? Em geral não acredito nas exclusões. Lembro-me que uma vez o Eduardo Giannetti me perguntou se eu não achava que ao respeitar os sinais de trânsito, parar no sinal vermelho e ter uma vida civil mais racional o brasileiro perderia o jeito, a inspiração e o charme que ele tem de ser brasileiro. Eu sinceramente não soube responder, mas dentro de mim, que respondo agora a uma pergunta semelhante feita por você, não consigo acreditar nessas exclusões como necessárias. Suponho que há sempre uma terceira saída. Já escrevi, e reafirmo agora, que o Brasil precisa tornar-se o mais diferente possível de si mesmo para poder se encontrar.Algumas das aventuras experimentais mais notáveis produzidas por brasileiros eram também vitórias no desafio da competência. João Gilberto, por exemplo.

CULT - E quanto ao Cinema Novo?

C.V. - O Cinema Novo é o que há de oposto. O Glauber Rocha é um caso oposto, a verdade é essa. Você gosta do filme Deus e o Diabo na terra do sol, não porque seja mais bem feito que Casablanca ou Cidadão Kane, mas porque é um filme cheio de sugestões e com algo que não se vê em outros filmes, com uma grande liberdade em experimentar algumas coisas no cinema do Brasil. É claro que Glauber recebeu elogios, até um muito longo de Scorsese, que, quando foi homenageado pelo Cahiers du Cinéma, em um número todo dedicado a ele, escreveu apenas um artigo e era sobre Glauber. Há também um filme de Godard, O vento do Leste, no qual Glauber aparece em uma bifurcação de estrada. Bonita a cena, meio alegórica. Então o Glauber mereceu de grandes figuras do cinema internacional o reconhecimento, tal como o João Gilberto recebeu de Milles Davis e de muitos outros. Porém, os aspectos que interessaram aos colegas de João incluíam a excelência técnica, e os aspectos que interessaram aos colegas de Glauber, evidentemente, se resumiam mais ao espírito da coisa do que à capacidade de feitura.

CULT - E a competência em relação ao seu próprio trabalho?

C.V. - Penso nisso porque sou muito crítico e o considero muito insatisfatório. Nem todos os discos brasileiros têm essa exibição de incompetência que aponto nos meus e de alguns colegas próximos. Lembro de uma época em que eu e Gil ficávamos perguntando por que nossos discos não saíam com um som como o dos de Roberto Carlos. O contrabaixo dos discos do Roberto saía com um som redondo, preenchia quase como uma gravação americana e a gente não conseguia. Então o Gil dizia assim: "tem um espírito do subdesenvolvimento que fica aqui dentro do estúdio". O violão do João Gilberto nos três primeiros discos ( Chega de saudade, O Amor, o sorriso e a flor, João Gilberto) é gravado de uma maneira extraordinariamente boa. Nunca mais o violão dele foi tão bem gravado, tão bem microfonado. As gravações dos Mutantes, feitas na mesma época que as nossas, eram infinitamente superiores às nossas. O Gil, como músico, é a competência top. Eu sou meio incapaz musicalmente. Agora, do disco Caetano em diante - por exemplo em Estrangeiro - eu venho conseguindo fazer discos mais profissionais.

CULT -Mudando um pouco de assunto, o que você achou da repercussão crítica do livro O mundo não é chato? Você acha que há uma espécie de resistência oficial ao seu pensamento crítico? Uma espécie de correlato do velho problema que certos discursos eruditos e acadêmicos têm em relação à legitimação do vigor, da radicalidade, da inventividade e do caráter crítico da canção popular? Quando você lançou o filme O cinema falado houve uma resistência prévia ao filme, que revela, necessariamente, um fisiologismo de defesa de território. Você acha que, assim como alguns cineastas não lhe deram o direito de fazer um filme, há forças intelectuais no Brasil que não lhe dão o direito de exercer a prosa crítica?

C.V. - Ninguém me tira o direito, não. Ninguém me impede de publicar. Mas também eu não tenho a ambição de publicar textos críticos. A primeira vez foi em Alegria, alegria - coletânea de textos dispersos e publicados entre 1966 e 1976, organizada por Waly Salomão - que eu ouvi esse mesmo tom de desprezo. Mas não fico frustrado, não espero muito. Agora, isso que você descreveu quando falou de O cinema falado é verdade. Isso acontece comigo e continua acontecendo, talvez seja a razão porque não há a atenção que você desejaria a um livro como O mundo não é chato. Eu nem prestei muita atenção à repercussão que teve esse livro... Verdade tropical, sim, mas porque tinha acabado de escrever e quis saber o que as pessoas falavam. Tem coisas muito chatas também. A Folha de S. Paulo fez todo um número da Ilustrada ou do Mais!, não me lembro, para criar problemas com o livro. Não para uma apreciação remotamente razoável. Era um negócio programaticamente chato. E acho que se deve a isso mesmo que você descreveu: ressentimento. Mas, por outro lado, não acho que seja só isso. Acho que há desinteresse genuíno. Não sou um sujeito preparado pra isso. Não me preparei nem estou me preparando para ser um ensaísta. Eu me lembro que, quem primeiro falou contra isso de uma maneira contundente e que me impressionou muito bem, foi o José Guilherme Merquior.

CULT - Ele disse que você é um "pseudo-intelectual de miolo mole"...

C.V. - Eu adoro "pseudo-intelectual de miolo mole" (risos). Ele, Merquior, foi o primeiro que explicitou a questão tão honestamente, defendendo o território. Eu concedi uma entrevista a IstoÉ, na qual fiz uma brincadeira sobre ele, que acabara de sair numa revista posando no meio de livros. Era gozado, porque ele falava mal de Freud e da psicanálise dizendo que não valem nada. Eu disse que detestei aquilo porque ele estava falando mal de narcisismo e ficava posando no meio de livros como um pop star. Ele levou isso como se eu estivesse dizendo que os ensaístas estavam querendo tomar o meu lugar. Fez uma inversão inteligente. Bem sacada, de polemista experimentado. Merquior não era bom crítico literário. Quando conheci o Augusto e o Haroldo de Campos, li tantos artigos maravilhosos deles, que percebi que José Guilherme, do ponto de vista da apreciação literária, deixava a desejar. Mas eu não sou um intelectual preparado para competir nem com ele, nem com um Roberto Schwarz . Não me preparei pra isso. Passo a maior parte do meu tempo em uma vida frívola de compositor de música popular. Fico no estúdio com colegas cantando, tocando, volto pra casa pra ver a música e tenho que relembrar. Posso captar uma harmonia com certa dificuldade, mas posso. Depois de algum tempo, esqueço. Minha acuidade musical não é muito forte, então tenho que me debruçar um pouquinho sobre canções. Por exemplo, eu quero cantar "Moon river" no show de abertura da exposição de Pedro Almodóvar em Paris, entre outras canções que tive que tirar. Umas são mais fáceis. "Ne me quitte pas", acho uma harmonia chata de tirar, feia. Mas "Moon river" queria tirar. Fiquei muitas horas perdendo ou ganhando meu tempo para cantar a música. "Moon river" não pode ser comparada com Ulisses, de James Joyce. Entende, eu não tenho tempo de estudar nem Derrida, Kant ou Proust. Não que não os tenha lido, li alguma coisa de todos eles, mas não posso me dedicar a isso.

CULT - A erudição também não é uma condição fundamental...

C.V. - Sim, mas o cara que se prepara para isso e vive concentrado nisso é mais capaz. Não me sinto assim. Sou aquele personagem "pseudo-intelectual de miolo mole", mas ao mesmo tempo consigo cantar. Tenho canções que fazem sucesso, outras nem tanto, mas não são irrelevantes. Minha opinião sobre mim é essa. Juro por Deus...Eu não acredito em Deus (risos).

CULT - O que pensa sobre a música popular brasileira de hoje? Volta e meia dizem que o momento está fraco. O Chico Buarque aventou, naquela entrevista à Folha de S. Paulo, a hipótese de que a canção talvez seja uma forma histórica acabada. Você acha que a canção acabou ou está acabando?

C.V. - O Chico conta que foi um italiano que perguntou a ele se não achava que a canção popular, como conhecemos, é um negócio do século 20 que acabou, como a ópera foi para o século 21. Ele disse que ficou pensando nisso, mas que não crê totalmente nisso e nem gosta, porque seria contra ele mesmo, que continua fazendo canções. Eu também não penso na morte da canção e no fim das coisas. Acho que o fim das coisas é uma moda que já passou.

CULT - O que te interessa mais na canção popular atualmente?

C.V. - A canção popular está cheia de vertentes. Coisas interessantes e continuidade. Tenho ouvido novamente a rádio MPBFM, que toca gravações brasileiras. Ouço rádio no carro, que são poucos minutos, mas me dá uma idéia. Convivo com Moreno, meu filho, com Kassin e Domênico, que convivem com Pedro Sá. Ouço coisas de Lucas Santana, de Max de Castro e de Ed Motta. Não consigo sentir que há uma falta de vitalidade. Acho que no momento não há uma indicação de qual é a perspectiva hegemônica, mas não sei se isso é mau. Não sou muito ouvinte de música, conheço gente no mundo inteiro que é ouvinte de música, que realmente ouve. Ouço, sempre ouvi, casualmente.

CULT - O que pensa sobre a crítica musical brasileira?

C.V. - Sinto que há uma tendência crítica no Brasil a adotar essa linguagem dos tablóides de rock'n roll inglês. São garotos que nem são tão mais garotos assim, que escrevem para tablóides de rock e tomam uma atitude como se fossem mais radicais que os músicos. Ficam ensinando atitude e rebeldia aos artistas. É engraçado, mas é tablóide, quem compra já sabe o que é. Já aqui se dá na grande imprensa. Outro dia li uma crítica sobre o show dos Mutantes em Londres, na qual o jornalista dizia que o show tinha sido tudo aquilo que os Mutantes nunca foram e nunca deveriam ser: previsíveis. Mas como aquilo poderia ter sido previsto? (risos) Era imprevisível até que acontecesse, ele queria o quê? Que o Serginho e o Arnaldo reaparecessem com 17 e 15 anos e surpreendessem a todos por terem voltado no tempo? No fundo é um negócio de purismo no rock, que é uma contradição em termos.

CULT - É certo que com a geração formada pela TV, a cultura brasileira vai se tornando menos letrada e cada vez mais dominada pelos signos visuais. Nesse processo a literatura é esvaziada, perdendo a força no jogo da cultura. Como você acha que isso se manifesta na MPB? Você pertence a uma geração que levou a aproximação entre a literatura e a canção às mais inventivas conseqüências. Como percebe, hoje, a relação entre literatura e canção popular, sobretudo nos compositores mais jovens?

C.V. - Acontece que sou da geração que pegou a moda da expressão não escrita, não livresca, não acadêmica, como importante. Em suma: nós tivemos animação com a posição de Marshall McLuhan, o fim dos livros. As imagens, a TV e a música popular, tudo fala mais alto que a cultura tradicional. É a contracultura. Mas o McLuhan tinha uma sistematização desse negócio muito interessante. Era uma coisa típica da minha geração. Evidentemente que eu tomava aquilo com um grão de sal. Nunca adotei, mas me interessou. Isso passa por Merquior, passa por Chico escrever romance e pela reação de críticos e colegas a isso. Algumas críticas foram inacreditáveis.

CULT - Você leu Budapeste?

C.V. - Li.

CULT - O Chico foi finalmente dar em Budapeste...(risos)

C.V. - É...Ele deu em Budapeste (risos). Gostei muito do livro, acho que dos três que ele escreveu é o mais lindo de todos. Agora, tive um impacto mais excitante com Estorvo, que foi o primeiro desse período. Mas não chega a ser um romance totalmente consumado como é Budapeste. O livro do meio, Benjamim, é o que menos gosto dos três. Também tem coisas lindas, soa bem...Ele tem aquele sentimento muito adequado aos sons das palavras e aos sentidos desses sons. Muito equilibrado, elegante, isso me dá prazer. Budapeste é um romance bem estruturado. Lembro que Diogo Mainardi foi quem mais esculhambou com o Chico. Fora aquele que é só crítico, Wilson Martins, que esculhambou com Estorvo e colocou-o junto ao livro de Jô Soares. Eu protestei no Fantástico de uma maneira um pouco grosseira, mas não podia deixar de reagir. Não tenho nada a perder. Não tenho uma reputação intelectual, não tenho porra nenhuma. Wilson Martins juntou os livros do Chico e do Jô porque, para ele, são pessoas que aparecem na TV e escrevem livros. Não tem nada a ver o Xangô...com Estorvo. Ele ainda diz que Estorvo é pior porque tem ambição literária maior. Só aparece o preconceito. Agora, quando saiu Benjamim, o Diogo Mainardi era crítico literário da Veja, isso foi antes de ele virar essa personagem. E, como crítico, ele escreveu um dos piores artigos de crítica da história do Brasil sobre Benjamim. Dizia assim: O Chico é bonito, ganha milhões fazendo canções, vendendo discos, tem os olhos verdes, as mulheres vivem atrás dele. Por que precisaria escrever um romance? E esculhamba. Deixa as últimas três linhas para dizer quase nada sobre o romance propriamente. Simplesmente desqualifica o fato de Chico ter tido a remota idéia de um dia escrever um romance. Esse mesmo cara diz, repetidas vezes, que o maior escritor brasileiro é Ivan Lessa, entende? Sou fã do Paulo Francis e do Millôr Fernandes desde menino. Do Millôr, desde os 11, e do Francis, desde os 17, quando meu irmão Rodrigo que é mais velho (dois irmãos acima de mim) e muito querido, fez uma assinatura da revista Senhor para mim, ainda lá em Santo Amaro. Eu fiquei fã do Francis para sempre. Mesmo inimigo dele continuei seu fã. Ele era um sujeito engraçado, tinha uma boa personalidade jornalística. Seus romances são ruins; As filhas do segundo sexo, pelo amor de Deus...É muito ruim! Cabeça de papel é um livro ruim com um título bom. Os livros dele mais jornalísticos, meio memorialistas, O afeto que se encerra e Trinta anos esta noite são melhores que as ficções, mas como figura jornalística ele era muito bacana, o mais inteligente de todos de O Pasquim. O Glauber me avisou que ali, um cara bom de coração, em quem se podia confiar, chamava-se Tarso de Castro. Porque Millôr e Francis não...É chato falar coisa que pessoa morta falou, porque pode parecer desonestidade, mas é fato. Não importa o que o Glauber disse ou não. Ele fazia a política dele com as pessoas e comigo também. Eu falei da minha admiração pelo Francis e pelo Millôr porque os acho grandes. O Lessa, não. Acho menor. Acho bonitinho e engraçado o que ele faz. Parece bibelô mofado. Não considero a sua prosa melhor que a do Chico. Para o mesmo cara que agrediu a literatura de Chico com tanta veemência dizer que o maior escritor brasileiro é o Lessa...

CULT - Entrando em política, nas eleições passadas, você flertou com o Serra e depois afirmou publicamente o Mangabeira Unger; acabou votando no Lula...

C.V. - Eu nunca flertei com o Serra. Meu candidato era Ciro Gomes. Quando foi acabando meu interesse pelo Ciro, em função de suas atitudes, acabei votando no Lula. Eu falei que nunca flertei com o Serra, mas já, sim: no segundo turno, sabendo que Lula ia ganhar, não votei no Serra, mas disse que votaria para que Lula entrasse sabendo que há uma resistência a atitudes inconseqüentes ou demagógicas que ele pudesse vir a tomar. Como um freio. Terminei vendo que as preocupações antes do Lula entrar eram que, por ele ser da turma da esquerda, do PT, se sentisse no direito de fazer coisas irresponsáveis que pusessem a economia brasileira em risco, de uma maneira não bem planejada. Porque eu gostaria que se mudasse essa filosofia, por isso me interesso pelo Mangabeira, porque ele é experimentalista e intelectualmente competente. O que aconteceu com o PT foi que eles ganharam e mostraram logo que não ofereciam risco na área da economia e se deram o direito geral no resto das coisas. Porque são de esquerda podem fazer o que quiser. Uma das burrices do Fernando Henrique Cardoso [FHC] foi a reeleição. É quase impossível, no Brasil, um presidente não se reeleger porque não há campanha igual à da presidência da república em um país onde tanta gente é mal informada. Ainda mais o Lula, que é um mito, uma figura simpática. O saldo da política econômica do Palocci [ Antonio Palocci, ex- ministro da Fazenda ] é competência e conservadorismo. O Lula, como um todo, não foi lá nem tão competente, nem tão conservador. Quanto à política internacional, não se sabe ao certo se foi mais inventiva e corajosa ou mais incompetente, porque no momento o Brasil está meio a reboque de Hugo Chavez [ presidente da Venezuela].

CULT - Em quem vai votar?

C.V - Não voto em Lula, de jeito nenhum. Li as entrevistas do Chico e não gosto desse aspecto. Ele disse que estou certo ao me referir que a esquerda acha que pode fazer o que quiser, mas que esqueci que com o FHC era a mesma coisa. Não era. FHC foi de esquerda, mas na presidência não era; isto é, tem uma trajetória pública de intelectual de esquerda, mas no exercício da Presidência da República era visto por muitos, sobretudo pelo PT, como sendo de direita. Seja como for, não havia precisamente essa mistura de arrogância e arbitrariedade que julga justificado subordinar os meios aos fins, que é o que fez o Zé Dirceu: acreditando que pode tudo porque é de esquerda. Isso leva a Stalin. Tenho horror a isso. Pavor desse negócio de esquerda: "Como nós temos a boa posição, primeiro vamos ganhar o poder. Nunca meu time ganha, agora que ganhou vem toda a elite branca contra, querendo derrubar". Ninguém fez o que eles fizeram. O Lula disse que foi traído - por quem? Ao mesmo tempo se dizia ameaçado pelas elites. Você não pode caracterizar como um golpe de elite porque os delitos foram todos comprovados. O Lula tirou Palocci, Zé Dirceu e o PT tirou Delúbio. Não é que houve uma tentativa de denegrir.

CULT - Você faz 64 anos este mês. Como é a experiência de envelhecer?

C.V. - Evidentemente que tem uma porção de coisas de envelhecer que são mesmo ruins. Por outro lado, você não liga muito mais para o que dizem sobre você. Mas não sou muito bom para ser maduro. Ainda tenho o espírito adolescente, então fica meio desconfortável.Quanto às coisas ruins: por exemplo, você está me vendo de óculos. Eu, que nunca tive problema de visão, para ler, preciso de óculos. No início é um aborrecimento danado, é mesmo aquela descrição da velhice, não como uma batalha, mas como um massacre, uma série de ataques sem apelação. Mas, no interior desses "ataques", surgem outras possibilidades; passei a sentir ternura pelos óculos, prazer em achá-los, pô-los, ver as letras em foco: assim, apesar de tudo, fica mais nítido que ser é gostoso.