sexta-feira, março 03, 2006


Histórias do outro mundo

Com várias formas de interação cultural, universo do game Second Life já conta com mais de 1 milhão de "habitantes"
Reprodução



Personagens virtuais passeiam por uma das ruas do Second Life.

ALEXANDRE MATIAS COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Um videogame sem regras, em que o usuário pode fazer o que quiser -até mesmo nada. Ninguém perde, mas é possível ganhar de formas completamente diferentes da lógica tradicional dos games. "Vencer" pode ser tanto encontrar um desconhecido com a mesma afinidade que a sua, comprar MP3s ou assistir a um show virtual. E nunca, depois da "vitória", o jogo termina.Assim é o Second Life, um fenômeno comportamental que funciona como uma realidade digitalizada em três dimensões, quando o jogador assume um avatar -uma personalidade virtual- que tem completa liberdade para agir num mundo que já conta com 1 milhão de "habitantes".Mais do que realidade virtual, o Second Life é um novo ambiente para que artistas e o mercado de entretenimento possam dialogar com seus clientes e fãs. Isso tem mexido com a publicidade mundial de forma que, aos poucos, empresas têm comprado territórios on-line para oferecer aos seus possíveis consumidores, além de bandas (como Duran Duran e U2), autores (Howard Rheingold e Kurt Vonnegut) e executivos do cinema (Disney e Fox) usarem a plataforma como um novo meio para interagir com seu público.Criado pela empresa Linden Labs em 2003, o Second Life tem potencial para ser maior do que o Orkut e o MySpace juntos -apesar de parecer apenas mais um game em três dimensões para vários jogadores (conhecidos pela sigla MMORPG - Massive Multiplayer On-line Role-Playing Game, Jogo de Interpretação On-line Massivo para Múltiplos Jogadores). A diferença entre o Second Life e qualquer outro jogo é simples: não há objetivos definidos e não há regras. Ou seja, não é um jogo.Primeiro milhãoMais do que isso: há possibilidades infinitas. É possível voar ou tomar forma de um animal, fazer sexo e mudar de aparência, teletransportar-se de um lugar para o outro e até comprar e vender coisas on-line, usando a moeda virtual do lugar -os linden dollars, cuja cotação flutua entre L$ 250 e L$ 300 para cada dólar americano do mundo real.E, no mês passado, a população do Second Life chegou ao seu primeiro milhão de habitantes, em pouco mais de três anos de atividade. "Trinta mil diferentes computadores brasileiros diferentes se conectaram à rede SL nos últimos 60 dias", diz o diretor de marketing da Kaizen Games, Jorge Filho, que representa alguns jogos da linha MMORPG no Brasil. "É a terceira geração da internet, em que você tem uma versão sua em três dimensões dentro da rede", diz. Além de meramente explorar o mundo digital, ainda é possível criar seu próprio negócio e procurar pessoas com interesses parecidos para conversar e conhecer -dentro e fora da rede.Próxima mídia"A transmissão da experiência é algo novo e não é a "next big thing'", escreve o fundador do Second Life, Bill Lichtenstein, em seu manifesto "The Transmission of Experience". "É literalmente a próxima mídia na velha progressão das formas de comunicação, da fala para a palavra escrita, para os livros, para o rádio, para o cinema, para a TV. Isso mudará a forma como nós nos comunicamos e vivemos, que aprendemos e fazemos negócios, da mesma forma que qualquer outra mídia que surgiu antes. Simplesmente porque agora, pela primeira vez, conseguimos transmitir experiência."E é daí que vem o dinheiro que financia o software. Gratuito, entrar no Second Life só requer a instalação de um programa e sua atualização. Mas qualquer um pode comprar um terreno virtual pagando dinheiro de verdade, e com isso, receber uma cota mensal de linden dólares para gastar no ambiente -como bem entender.Mas o Second Life não é apenas uma nova forma de fazer compras e consumir cultura. O Centro de Diplomacia Pública da University of Southern Califórnia criou uma ilha para estimular a discussão sobre o papel dos MMORPGs na diplomacia mundial, o New Media Consortium está construindo um campus universitário inteiro (com biblioteca, auditórios e um planetário), o Creative Commons está construindo seu instituto on-line e instituições médicas dão noções de primeiros socorros para pessoas reais por meio de avatares digitais.

Isto é second life

O que é Second Life? É um mundo virtual em três dimensões idealizado pela empresa norte-americana Linden Lab, em que é possível, além de reproduzir ações do dia-a-dia, realizar feitos fantásticos, como voar, mudar a própria aparência em segundos e teletransportar-se. Sua interface e funcionamento lembram o de um videogame de RPG, mas o fato de ele se basear em comunidades e nos gostos pessoais de seus participantes, torna-o semelhante a outras redes de relacionamento, como Orkut e MySpace
Como fazer parte?O cadastro é gratuito e basta instalar um software que pode ser encontrado no site oficial do ambiente (http://www.secondlife.com/). Nos EUA, há sistemas com assinaturas que dão direito a benefícios, mas é possível permanecer on-line sem fazer pagamentos; no máximo, atualizações do software
Quem sustenta o Second Life?Ao imaginar um mundo visualmente reconhecível e navegável em 3D, o diretor de tecnologia da RealNetworks, Philip Rosendale (fundador da Linden Labs), pensou em um ambiente em que empresas e marcas pudessem se expor de forma diferenciada em relação à publicidade tradicional. Usuários pagam assinaturas para obter privilégios (como comprar territórios), mas não são a principal fonte de renda do mundo virtual
É um jogo? É um site?Nem um nem outro. Second Life faz parte de um conceito que parece ser crucial no marketing de entretenimento para 2007 e além: a transmissão da experiência. Enquanto muitos apostam na experiência ao vivo como estratégia adequada para consagrar marcas (vide festivais e premiações), várias empresas preferem eventos que podem ser experimentados em rede, atingindo um público que antes pertencia à TV via satélite, sem a interatividade. Estamos, portanto, diante de uma nova plataforma e um velho conceito, o da realidade virtual.

Game se inspira no universo pop

COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Apesar de criado como uma plataforma de relacionamento on-line, algumas idéias do Second Life se inspiram na ficção pop. O próprio conceito de um ambiente em rede que deu origem ao software nasceu em obras básicas do cyberpunk, subgênero da ficção científica surgido nos anos 80 -o ciberespaço concebido por William Gibson em "Neuromancer" e o Metaverso imaginado por Neal Stephenson em "Snow Crash".O próprio U2, um dos primeiros conglomerados pop a perceber a importância do SL e a dar shows exclusivos para o ambiente (trechos podem ser vistos no YouTube ou no site da "turnê" - http://www.u2insl.com/), também já havia flertado com essa possibilidade de existir virtualmente nas letras de discos como "Achtung Baby" e "Zooropa", nos anos 90.Já o ato de criar objetos do nada, uma ação chamada de "rez", na linguagem do ambiente, vem do verbo "desrez", neologismo inventado pelo filme "Tron" (1982), também sobre realidade virtual, para os avatares que "morrem" nesta interface virtual. (AM)

Crítica Cinematográfica - Cinema Digital



Tsotsi

Murilo Costa de Paula - Aluno de Cinema digital

Vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2006, o filme Sul-africano é uma das surpresas do ano, tendo desbancado filmes como “Paradise Now” e “Joyeux Noel” na disputa da cobiçada estatueta. Dirigido de forma muito competente e segura por Gavin Hood, o longa nos conta a história de Tsotsi, um morador de favela que faz do crime sua profissão. Visto como um líder pelos amigos, ele é um criminoso frio e impiedoso.
Tsotsi e sua pequena gangue escolhem suas vítimas na estação da cidade, roubam-nas nos trens e dividem o dinheiro. Esses pequenos atos fazem parte da rotina do grupo, garantindo o dinheiro do pão e da cerveja consumidos no dia-a-dia. Mas em uma dessas ações as coisas se complicam; um homem esboça uma reação ao assalto, e é morto. Seu corpo é largado no vagão vazio, e todos fogem assustados.
O grupo já não é mais o mesmo. Tsotsi agiu precipitadamente ao matar o sujeito, e todos sabem disso. No bar onde vão após o assalto, o clima é tenso.. Todos na mesa têm medo de questionar a atitude de seu líder. Apenas o “professor”, Boston, toma coragem e enfrenta Tsotsi. O código moral deles foi quebrado; não se consideram criminosos, agem daquela forma por culpa da sociedade, tomando para eles o que lhes foi negado pelo regime cruel do capitalismo. É algo em que acreditam piamente, uma forma de manter sua decência. E Tsotsi infringiu as regras.
Por algum motivo, Tsotsi é frio e cruel. Boston o provoca, dizendo que algo destruiu o ser humano dentro dele, alguma decepção profunda levou sua decência; talvez uma mulher, ou os próprios pais.. Tendo sua autoridade confrontada, Tsotsi parte para cima do amigo e o espanca cruelmente. Temendo ter o mesmo destino de Boston, ninguém mais ousa enfrentar Tsotsi.
Tsotsi sai do bar e decide agir sozinho. Escolhe uma bela casa, em um bairro nobre. Uma mulher chega de carro, e é abordada por ele. Tsotsi rouba o carro, atira na mulher, e foge. Mas algo saiu errado: há um bebê no banco traseiro.
A partir desse momento, há uma grande mudança na narrativa. Tsotsi decide criar o bebê por sua própria conta, e vemos seu lado humano. Em flashbacks, conhecemos sua dura infância, com a mãe doente e um pai alcoólatra e repressor. Passamos a entender e compreender aquele personagem tão estranho e complexo.
Numa jornada de redenção, Tsotsi procura resolver seus traumas e conflitos internos, revisitando locais importante de sua infância, questionando o porquê de viver em condições miseráveis, tudo enquanto tenta cuidar em segredo daquela criança. Inicia assim uma reconstrução de sua “decência” e humanidade perdidas.
Os diálogos são muito interessantes, revelando personagens humanos e complexos. Destaque para o “professor” e para o mendigo da estação, sendo que este último participa de uma das melhores cenas do longa. Acuado por Tsotsi, e tendo o sentido de sua vida questionado, ele não consegue dar uma resposta satisfatória; não há um motivo palpável para a sua existência, ele apenas prossegue.
A fotografia do filme é muito boa, com belos planos gerais, enquadramentos e movimentos de câmera bem realizados. Não há grandes ousadias estéticas, mas aqui elas não fazem falta. O essencial está presente, e a composição cuidadosa dos planos resulta em belas seqüências visuais, como a que Tsotsi sozinho pelo campo, relembrando o mesmo caminho tomado anos atrás, quando fugiu de casa. Há também um plano que sintetiza a situação da África do Sul contemporânea: quando os policiais encontram o carro roubado e se dão conta da falta do bebê, a câmera faz um movimento de grua e sobe para revelar uma enorme favela no horizonte, para onde os policiais se voltam com uma expressão de derrota. A favela é vista como uma fortaleza impenetrável, um problema insolúvel, que assombra os moradores dos bairros nobres.
Sem grandes ousadias, o diretor nos mostra que é possível realizar um grande filme partindo de uma história simples, porém bem trabalhada, com atuações muito boas de todo elenco, e uma trama bem amarrada, sem buracos que dificultem sua assimilação. Em momento algum a narrativa cansa o espectador. Pelo contrário; o ritmo é forte, e deve agradar até mesmo os mais acostumados ao cinema hollywoodiano.
Um argumento comum, mas bem estruturado em seus personagens, em seu cenário e contexto histórico-cultural. Além de ser um cinema questionador e social, Tsotsi também é entretenimento de qualidade.
23/10/2006