quinta-feira, março 13, 2008

Fernando Meirelles pena na finalização de "Blindness - Ensaio Sobre a Cegueira"



09/03/2008 - 18h03

Da Redação

O diretor Fernando Meirelles, em fase de finalização do seu próximo filme "Blindness - Ensaio Sobre a Cegueira" (adaptação da obra de José Saramago), vive, literalmente, um período de provação. O cineasta conta em seu blog as dificuldades e tensões da etapa de montagem até a pré-mixagem neste mês.


Alice Braga e Denny Glover em cena
FILMAGENS DE "BLINDNESS' EM SP
MEIRELLES FALA SOBRE O FILME
Desde o final das gravações em outubro, o filme passou por diversos cortes em busca de aceitação popular. De exibições fechadas para amigos, produtores e distribuidores até os discutidos 'test screenings' (sessões para grupos testes com intuito de medir a reação audiência, como fazem alguns programas de TV como as telenovelas), a produção foi revista e alterada pela menos seis vezes.

Alguns dos problemas de recepção detectados por Meirelles no público presente nas exibições foram a dificuldade de se relacionar com os personagens sem nome e história (seguindo o modelo literário de Saramago) e a intolerância à intensa violência do filme.

"Havia 540 pessoas na sala e gente para o lado de fora. Até o meio do filme senti que a platéia estava comigo, então veio a primeira cena de estupro, quando umas 16 mulheres foram levantando e saindo. 'Será que passamos do ponto?', me perguntei. Veio então a segunda cena de estupro e mais 42 (!) mulheres deixaram o cinema. 'Sim, passamos do ponto!', respondi para mim mesmo", descreve o autor em seu artigo.

Meirelles conta que, em novembro, quando estava fechando o quarto corte do longa, acreditava que estar próximo da versão final. Mas, passados quatro meses e chegada a décima edição, o diretor divide com seus leitores as inseguranças sobre a sua derradeira apresentação.

"Blindness - Ensaio sobre a Cegueira" retrata uma epidemia de cegueira que se alastra rapidamente no mundo. Integram o elenco da co-produção Brasil/Canadá nomes como Mark Ruffalo, Julianne Moore, Gael Garcia Bernal, Danny Glover, Jorge Molina, Sandra Oh e a brasileira Alice Braga. O filme teve locações em Toronto, Montevidéu e São Paulo e sua estréia está prevista para o segundo semestre de 2008.

segunda-feira, março 10, 2008


A revolução será televisionada

Usando as mesmas armas da internet, redes de TV podem dar a volta por cima e atrair mais público que o mundo virtual


A web "é chata e está morta"; é exatamente aí que estão o problema e a oportunidade que a TV tradicional precisa encarar

MICHAEL HIRSCHORN

Uma das coisas mais cansativas nos devotos das novas mídias é a sua convicção, em nada diferente daquela ostentada por pessoas que aderem a cultos religiosos: para eles, ou uma pessoa "entende" o que é importante ou não entende. Ainda que seja um costume cansativo, isso não quer dizer que não estejam certos, pelo menos em certa medida.
Um exemplo clássico seria a maneira como Steve Jobs [principal executivo da Apple] transformou a indústria fonográfica em refém e praticamente a destruiu. As grandes gravadoras, ao concederem à Apple o direito de vender faixas individuais por US$ 0,99, solaparam o modelo de negócios que as sustentava -vender grupos de canções unidas em um produto chamado "álbum", por até US$ 20 a unidade.
O que elas não perceberam foi o fato de que as pessoas estavam prontas para começar a consumir música de maneira inteiramente nova. As gravadoras viam o iTunes como uma maneira de ganhar dinheiro sem despesas -como uma fonte "subsidiária" de receita, no sentido legal do termo.
Jobs tomou essas canções baratas e as vendeu abaixo do preço, como forma de estimular a compra dos dispendiosos iPods fabricados por sua empresa, e o setor de música em sua forma tradicional agora está despedaçado.
Como trabalho no setor de TV convencional, não tinha percebido até agora que exatamente a mesma coisa está acontecendo no mercado de vídeo. Eu certamente acompanhei a ascensão de serviços de vídeo online como o YouTube.
O iTunes também começou a operar no mercado de vídeo, oferecendo uma combinação entre vídeos profissionais e podcasts em vídeo de amadores e quase amadores.
Como as gravadoras antes deles, as redes de TV e estúdios de cinema licenciaram parte de seu conteúdo para a Apple, permitindo que o iTunes vendesse programas e filmes com a mesma estratégia de preço único que ela havia adotado para a música (US$ 1,99 no caso dos programas de TV e US$ 9,99 para filmes).
O iPod Video, que concorre com os celulares capazes de exibir vídeos e outros aparelhos capazes de exibir essa forma de conteúdo, permitiu que o conteúdo visual chegasse ao mercado móvel, o que deu início a um período de vídeo acessível a qualquer hora, em todo lugar e de imediato.
Tudo isso parecia apenas ruído de fundo, resmungo digital, porque uma coisa era óbvia: as pessoas amam a televisão. Jamais deixarão de assistir à TV.
O YouTube pode ser popular mas não conta, porque não é TV de verdade. Seus vídeos são curtos, e muitos deles são esquisitos. A TV profissional apresenta mais brilho, narrativas mais agradáveis. E esses valores seriam eternos.
Mas uma recente visita a Houston me convenceu de que eu não estava entendendo a situação. Meu amigo Mike e sua mulher haviam dispensado completamente o televisor e, em lugar disso, utilizavam um iMac com tela de 20 polegadas como uma espécie de home theater improvisado, sem perdas dolorosas de qualidade.
O conteúdo vinha do iTunes, de outros serviços de mídia na web e de DVDs. Ao fazê-lo, dispensaram as polpudas contas da TV a cabo e afirmaram uma forma iconoclasta de controle sobre a mídia em suas vidas.
A experiência tradicional de assistir à TV não precisa necessariamente morrer, mas, para salvá-la, o complexo mídia-indústria terá que agir de modos não-tradicionais e desconfortáveis e terá, igualmente, que repensar "o que é TV".
No momento, isso significa assistir a um programa de vídeo produzido profissionalmente. O telespectador é um participante passivo e usa um televisor ligado a um decodificador que recebe conteúdo de um serviço de cabo ou transmissão digital.
No futuro, a TV será uma cacofonia de conteúdos profissional e amador, em forma longa ou curta, distribuídos por uma variedade de plataformas e recebido por uma variedade de aparelhos.
O conteúdo recebido será editado, comentado, parodiado e retransmitido pelo antigo "telespectador" -agora chamado "usuário"- para quem quer que ele deseje. Determinar quem pagará a quem para fornecer que serviço a quem mais representa a grande questão para esse novo modelo, em torno do qual todas as revoluções da mídia parecem girar.
E não há nada que indique que as pessoas que vêm sendo pagas agora continuarão a sê-lo dentro de alguns anos. O modelo surgido depois da Segunda Guerra, de conteúdo em vídeo dispendioso movimentando um setor de produção de conteúdo imensamente lucrativo (todos aqueles filmes com orçamentos de US$ 200 milhões) está sob certa ameaça.
A grande greve dos roteiristas encerrada recentemente nos EUA e uma possível greve dos atores na metade deste ano representam a grande batalha final pelo controle dos lucros do conteúdo em um momento que talvez seja o último em que disputar esse controle valha a pena -mais ou menos como as greves dos operários siderúrgicos nos anos 1980.
A história quanto ao vídeo difere da história que aconteceu no setor de música de maneira crucial. Ser um fã de música tradicionalmente envolvia ir à loja de discos, dedicando quantias consideráveis a um artefato do qual você conhecia apenas uma ou duas canções, e o processo todo, em geral, resultava em decepção com o produto recebido.
O modelo que o iTunes criou no setor de música e o modelo do download ilegal representaram um salto quântico em termos de satisfação dos consumidores, diante dos modelos anteriormente existentes: tornou-se possível pagar apenas pelas canções realmente desejadas (ou obtê-las sem pagar coisa nenhuma!).
Além disso, o método oferecia um sistema de armazenagem conveniente, que permitia dispensar todas aquelas caixas quebradas de CDs.
Já o modelo tradicional da TV é muito mais amistoso para com os usuários. Os programas são gratuitos ou, ao menos, seu custo fica soterrado em meio às faturas da TV a cabo.
Assistir a vídeos na web, ao contrário do que a tendência pareceria indicar, é uma experiência mais analógica do que assisti-los em um televisor. Na TV é possível selecionar entre centenas de ofertas instantaneamente ou escolher entre dezenas de programas que você tenha preservado em seu gravador digital de vídeo.
Na maioria dos sites de vídeo, no entanto, clicar de programa a programa envolve abrir e fechar software de mídia e assistir a intermináveis anúncios que surgem na tela antes do programa.
A qualidade continua abaixo da média, com definição baixa, programas de reprodução de mídia que oferecem telas reduzidas e problemas de sincronização de áudio e vídeo. A seleção disponível não é das mais amplas, e não existe um guia central que informe o que está disponível, onde e quando.
É fácil dizer que esses problemas terminarão resolvidos, mas restará sempre a suspeita de que a experiência propiciada é desagradável intencionalmente, para que as pessoas não abandonem os seus televisores rápido demais.
Como diz Mark Cuban, empresário de internet, proprietário do time de basquete Dallas Mavericks, a curva de inovação na web está estagnada, e a largura de banda disponível também está chegando ao limite.
Em outras palavras, há um limite para o volume de dados que pode ser distribuído pelos nódulos da internet, e essa limitação estrutural torna improvável que a web venha a propiciar uma experiência lisa de vídeo, pelo menos no futuro previsível.
É por isso que Cuban afirmou no ano passado, contrariando as opiniões dominantes, que a web "é chata e está morta". E é exatamente aí que estão o problema e a oportunidade que a TV tradicional precisa encarar.
O avesso da teimosia do setor de música é a mentalidade de rebanho -"precisamos acompanhar o que a garotada faz". Essa mentalidade dispõe que, a menos que a empresa aposte todas as fichas na internet, ela não está "sacando a coisa".
Mas "sacar a coisa" não significa necessariamente ceder ao coro dos digitais, especialmente se isso significa destruir seu negócio no processo. Nos dois últimos anos, as redes de TV colocaram programas na web de maneira desordenada. A lógica é que, caso não o façam, alguém mais o fará.
Mas, como o setor de música logo aprendeu (a exemplo do setor jornalístico anteriormente), esse modelo rapidamente faz de um negócio uma organização de caridade, o que solapa o valor de seu produto, ainda que exponha o conteúdo a uma audiência maior.
Isso ocorre porque anunciantes e redes abertas ainda não definiram um protocolo para a venda de publicidade que acompanhe a quase infinidade de conteúdo disponível, e os consumidores ainda não estão preparados para gastar muito dinheiro pagando por downloads.
Existe uma solução, e ela está bem debaixo dos narizes das redes de TV: transformar a televisão em algo mais parecido com a internet. Em diversos posts na web, Cuban vem promovendo imensas inovações que devem surgir com a TV de alta definição, entre as quais funções plenas de internet nos televisores e decodificadores de próxima geração.
A televisão com recursos de web provavelmente significaria uma profunda perda de controle para os programadores de TV, porque as prerrogativas tradicionalmente reservadas a quem controla datas e horários se tornariam irrelevantes. O mesmo se aplicaria ao conceito de "rede" de TV, já que a maioria dos programas se tornaria igualmente acessíveis, não importa quem os exiba.
Na medida em que avançamos na direção de uma cultura em que as escolhas cabem mais e mais ao consumidor, a TV certamente precisa acompanhar isso, não importa o quanto pareça modismo.
Mas não há motivo para que a própria TV não concorra como versão futura da web, segundo a visão de Cuban, oferecendo escolhas ilimitadas (imensos estoques de filmes, temporadas inteiras de seriados), capacidades de edição e distribuição por usuário (ou seja, a possibilidade de enviar a um amigo um trecho do episódio de alguma série que você acabou de assistir), reprise, armazenagem, WiFi...
E, como todos os dados percorrerão a mesma "tubulação", mas sem a influência desestabilizadora da internet, a TV poderá oferecer resolução excelente, mesmo em um televisor de 60 polegadas.
E eis a última das inversões: à medida que TV e internet convergem como parte de algo genericamente conhecido como banda larga, as distinções entre as duas logo se tornarão irrelevantes, do ponto de vista dos consumidores. Mas será que o híbrido resultante se parecerá mais com a TV, acrescida de interatividade, ou com a internet, acrescida de TV?
A distinção valerá bilhões para quem chegar primeiro e organizar a bagunça de maneira satisfatória para o consumidor.


MICHAEL HIRSCHORN foi vice-presidente executivo da VH1, um dos canais da MTV. É colunista da revista "Atlantic Monthly", onde a íntegra deste texto foi publicada. Tradução de Paulo Migliacci . Fotógrafo/artista: Kyu Oh.



Um gênio sem idade


Lendo "Vestido de Noiva", entendemos que poderia ter sido feita na Inglaterra do século 16

UNS TEMPOS atrás, assistindo a uma montagem prodigiosa de "Macbeth", em Londres, confesso que fixei um momento da peça que merece partilha. Leitores, aproximem-se: trata-se do delírio do general Macbeth (Patrick Stewart, na peça), que acredita ver o fantasma do rei por ele assassinado a irromper pelo banquete.
Tudo na cena é memorável: o cenário, uma mistura de cozinha com matadouro, sob forte iluminação asséptica, de uma frieza hospitalar. A mesa do banquete ao centro, com os comensais em traje militar e soviético (um "modernismo" tolerável). E, ao fundo, um elevador metálico, que permitia aos atores as entradas e saídas de cena.
Subitamente, o cenário começa a tingir-se de uma luz vermelha, como se houvesse sangue a escorrer pelas paredes. O elevador é ativado e começa a descer em direção ao palco. Então, a porta se abre (rangendo pesadamente), e de dentro do elevador sai o rei Duncan, figura sepulcral, que caminha literalmente sobre a mesa do festim, em direção a Macbeth. E, este, perante a indiferença dos comensais (que riem e conversam), aponta para o rei e grita de horror ante a visão da sua própria consciência.
Se fixei a cena, não foi apenas pelas qualidades plásticas (e bem aterrorizadoras) da encenação, que provocou algumas desistências ao intervalo (palavra). Foi sobretudo pela inteligência do jovem encenador Rupert Goold. Na peça, a assombração do rei fechava a primeira parte. Mas notável era a forma como se iniciava a segunda: o mesmo cenário, os mesmos comensais, repetindo os mesmos gestos e palavras com que terminava a primeira parte. Como se alguém tivesse recuado o "filme" alguns minutos. E, subitamente, Macbeth volta a apontar (desta vez, para o vazio) e grita novamente de horror.
No fim da primeira parte, o público assistia, por dentro, à alucinação de Macbeth. No início da segunda parte, assistia, por fora, à realidade de Macbeth. Ou, se preferirem, o público tinha duas perspetivas: a do próprio Macbeth e a dos seus convidados perante a loucura aparentemente inexplicável do general. No meu caderno de notas, apontei de imediato duas palavras: Nelson Rodrigues.
E se agora relembro a seqüência, foi por força das circunstâncias. Em coleção que só pode cobrir um português de inveja, a Folha resolveu publicar alguns clássicos da literatura brasileira. Machado de Assis, Lima Barreto, Rubem Fonseca. E o incontornável Nelson Rodrigues, com "Vestido de Noiva", a peça que praticamente reinventou o teatro brasileiro.
Li e reli a peça nos últimos dias, para escrever uma breve apresentação dela. Sempre com desconforto e fascínio crescentes. E o que impressiona em Nelson Rodrigues não é apenas a qualidade da linguagem (inultrapassável nas crônicas) nem as obsessões permanentes do autor, dilacerado por um desejo de pureza e pela certeza de que esta é inalcançável por material humano tão corrupto. O que impressiona é a absoluta modernidade de Nelson.
Em "Vestido de Noiva", Nelson Rodrigues não se limita a escrever sobre uma mulher, Alaíde, tragicamente atropelada na cidade. Nelson vai mais longe e escreve sobre a consciência dessa mulher: a forma como, habitando um limbo entre a vida e a morte, a mente de Alaíde se desdobra em três planos distintos -realidade, alucinação e memória- capazes de nos revelar a verdade mais profunda sobre ela.
Tal como em "Macbeth", é na consciência de uma personagem que encontramos os seus desejos, os seus caprichos. Os seus terrores. No caso de Alaíde, a atração inconfessável pela prostituta Clessi, um símbolo de libertação e de transgressão. A vontade igualmente inconfessável de matar Pedro, o marido. A forma velhaca como usou e abusou de Lúcia, sua irmã, seduzindo o homem que ela amava. E o temor de Alaíde de que Lúcia e Pedro conjuram para assassiná-la.
No plano da realidade, Alaíde está entre a vida e a morte. Mas será Alaíde vítima ou algoz daqueles que a rodeiam? Como em Shakespeare, não interessa apenas a Nelson Rodrigues aquilo que mostramos. Interessa o que mostramos, o que fomos e o que somos. Três estados para uma mesma condição.
"Vestido de Noiva" foi escrito e encenado em 1943. Lendo a peça, hoje, entendemos de imediato que ela poderia ter sido escrita e encenada na Inglaterra isabelina do século 16. Ou no Rio de Janeiro dos nossos dias. Ou num dos palcos do West End londrino. É a marca do gênio. Porque só os gênios não têm idade.

JOÃO PEREIRA COUTINHO - Folha de São Paulo