SUCESSO JAPONÊS DOS ANOS 1930, "MUSASHI", AGORA LANÇADO NO BRASIL, TEM A ESTRUTURA FOLHETINESCA DE "HARRY POTTER" E A ETNICIDADE DE "O CAÇADOR DE PIPAS", MAS SEM TOMAR O OCIDENTE COMO REFERÊNCIA
WALNICE NOGUEIRA GALVÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Telenovela A despreocupação com o verossímil e o desenvolvimento frouxo em episódios que podiam ser costurados infinitamente, precedendo a coerência integrada do romance, já vinham da novela de cavalaria, primeira ofensiva da ficção em prosa. Hoje, o folhetim de cada dia foi parar na telenovela, com suas peripécias mirabolantes e reviravoltas surpreendentes.
Pairam os clichês do gótico: órfãos, gêmeos rivais, vinganças imemoriais, segredos guardados a sete chaves, nascimentos obscuros subitamente revelados como principescos, tesouros enterrados e heranças que caem do céu, parentescos ignorados gerando incestos.
Impera o maniqueísmo, com heróis bondosos e valentes de um lado, do outro lado vilões como madrastas, padres maquiavélicos e milionários corruptos. Há uma dúzia de enredos entrecruzados. Tudo isso marca a popularização do romance burguês à época e sua aliança com a disseminação do jornal. No folhetim, o valor de entretenimento da literatura sobrepuja qualquer outro. Interessantíssima é essa ressurreição em nosso tempo, embora não mais em episódios diários no jornal, de que, afora o ciclo de "Harry Potter" [de J.K. Rowling], são exemplos "O Senhor dos Anéis" [de J.R.R. Tolkien], "As Brumas de Avalon" [de Marion Zimmer Bradley] e vários outros, justamente quando a morte da leitura e do livro vinha sendo decretada.
É fenômeno intrigante, sobretudo quando se pensa nas questões suscitadas pelo uso do computador desde a infância, tais como o déficit de atenção, a instantaneidade da percepção da imagem contra o texto, a atrofia da faculdade de acompanhar raciocínios complexos. Enquanto isso, e deixando para outro argumento a estratégia de marketing, as crianças do mundo inteiro, sem consultar ninguém, ressuscitam livro e leitura com "Harry Potter".
Épica étnica
A presente publicação de "Musashi" visa certeiramente a moda do romance étnico, que muitos chamam de pós-colonial. A globalização trouxe seu correlato literário, a idealização do multiculturalismo e da diversidade cultural, outros nomes para o exótico. O romance étnico é, desde alguns anos, o best-seller absoluto, e em matéria de ficção quase não se vê outra coisa nem nas livrarias nem no Prêmio Nobel.
Se o assunto for a adaptação dos desterrados, o entrecho se situará nos encraves de estrangeiros de pele escura nos países ricos. Para os demais, o cenário comum é o torrão natal, usualmente forasteiro -Iraque, Irã, Afeganistão, nações africanas, Índia, Brasil.
Quase sempre o romance étnico é escrito em inglês para o público ocidental, de preferência mostrando como são bárbaros os povos de cor, ou os que não têm cabelos louros e olhos azuis.
Vejam-se "O Caçador de Pipas" [de Khaled Hosseini] , "Feras de Lugar Nenhum" [de Uzodinma Iweala], "Cidade de Deus" [de Paulo Lins] -não é outro o alcance do premiadíssimo filme "Quem Quer Ser um Milionário?".
Raramente se expressa em outra língua que não a "koiné" de nosso tempo, e, se incorrer nesse defeito, será rapidamente traduzido. Raciocinando pela outra ponta, podemos ver nessa safra aquilo que Toynbee chamaria de "a revanche do proletariado externo". Segundo o grande historiador inglês, que aliás era conservador, todos os impérios caem da mesma maneira, ou seja, quando o proletariado externo, que eles consolidam nas colônias para servir a sua cobiça, reflui para a metrópole e ali se encontra com o proletariado interno.
Pense-se em Roma, por exemplo. E é o que se vê na Europa e nos Estados Unidos nesta fase da história em que os brancos perderam a hegemonia, mas ainda não perceberam. Tal safra celebra o refluxo do proletariado externo. Passa pelos indianos e negros caribenhos da Inglaterra, os árabes e africanos da França, os turcos da Alemanha, os asiáticos um pouco por toda parte.
Quem não se lembra do orgulhoso vice-reinado da Índia, joia da coroa britânica, cantado em prosa e verso pelas letras inglesas, Rudyard Kipling [1865-1936] à frente com "Kim" e "O Livro da Jângal"? Nos EUA, a invasão de latinos de cambulhada -chicanos, cubanos, caribenhos, dominicanos, brasileiros- já tornou o espanhol a segunda língua europeia do mundo, contando, afora jornais e revistas, com estações de rádio e canais de TV.
Há que refletir sobre o seguinte: essa literatura oferece aos brancos ricos aquilo a que eles aspiram, reassegurando-os em sua supremacia sobre árabes, africanos, asiáticos ou brasileiros, todos apresentados como mestiços facinorosos. Assim, os países periféricos fazem literatura e cinema "de exportação", ou seja, exportam matéria-prima colonial em nível simbólico.
Lembrando "Xógum"
Por séculos, o mais conhecido romance japonês e o mais lido no Ocidente foi "Genji Monogatari", narrativa galante-cortesã de quase mil anos atrás, tendo em primeiro plano os feitos donjuanescos do príncipe Genji, filho do imperador, e como pano de fundo as intrigas palacianas. É coisa da aristocracia, e não plebeu como "Musashi". Infelizmente, "Musashi" não é um romance étnico perfeito. Em primeiro lugar, é japonês de três quartos de século atrás, e não de agora. Em segundo lugar, é só japonês, não há ocidentais nele. Em terceiro lugar, foi escrito em japonês para japoneses, e não em inglês. Para efeitos de comparação, basta lembrar o best-seller "Xógum", um dos vários livros da vasta "asian saga" de James Clavell, aliás excelente, de assunto japonês, mas escrito em inglês para leitores ocidentais.
Ali se percebe como o afã do autor é destrinçar as peculiaridades da sociedade e da cultura japonesas, revestindo-as de explicações palatáveis, propriamente decifrando-as para outro código. Simpático aos japoneses, é tanto mais admirável por tratar-se do esforço de quem foi prisioneiro de guerra e passou muitas agruras tentando entender as indignidades a que o submetiam.
Repassa a história do Japão desde o primeiro contato com os ocidentais -o desembarque do piloto inglês é o estopim do entrecho-, apenas mudando os nomes dos principais atores desse painel do xogunato.
E traz a graça do refinamento estético nipônico e do intrincado protocolo das cortes do país, com sua rígida hierarquia e a ritualização dos cerimoniais. O que se encontra também no kabuki, no teatro nô e no cinema. Mas não é o caso de "Musa- shi", predominantemente plebeu. Que propósito poderia ter esta narrativa e sua extraordinária popularidade entre 1935 e 1939, às vésperas da Segunda Guerra Mundial?
Tudo indica tratar-se aqui de um romance bélico, que, embora não retrate uma guerra, vai de duelo em duelo até cobrir todo o território japonês de esgrimistas. A mensagem que sobrenada, apesar de toda a discussão do enriquecimento espiritual e dos benefícios do controle individual sobre a violência, soa como uma declaração de princípios e como uma conclamação para a Segunda Guerra, que se avizinhava: somos um povo guerreiro, em suma.
Ao longo da narrativa, o "bu- shido", o código de ética do samurai, vai sendo enfaticamente reatualizado. Por tudo isso, é uma experiência curiosa ler "Musashi" com essas duas ópticas, a coeva e a de hoje, a um só tempo na mira.
WALNICE NOGUEIRA GALVÃO é professora de teoria literária na USP. Recebeu o Prêmio Mário de Andrade da Biblioteca Nacional por "Mínima Mímica" (Companhia das Letras).