quinta-feira, março 19, 2009

Cultura/Livros - Faz muito tempo que nós consumimos o mesmo formato de contar histórias

Me enrola que eu gosto

SUCESSO JAPONÊS DOS ANOS 1930, "MUSASHI", AGORA LANÇADO NO BRASIL, TEM A ESTRUTURA FOLHETINESCA DE "HARRY POTTER" E A ETNICIDADE DE "O CAÇADOR DE PIPAS", MAS SEM TOMAR O OCIDENTE COMO REFERÊNCIA

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WALNICE NOGUEIRA GALVÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Com espadachins, monges guerreiros, peregrinação, busca espiritual, amores frustrados, os três polpudos tomos de "Musashi" [trad. Leiko Gotoda, ed. Estação Liberdade, 1.800 págs., R$ 218], de Eiji Yoshikawa [1892-1962], constituem um folhetim de não botar defeito. Inclusive na forma clássica da apresentação original, em prestações diárias no jornal. Escrito e publicado na década de 1930 em Tóquio, ficcionaliza a formação deste célebre samurai da crônica japonesa, mestre de esgrima a quem se atribui a autoria do duelo a duas espadas simultaneamente brandidas. Retrocedendo aos anos de 1600, quando se instaurava a vigência do xogunato, leva a fama de ser o livro mais lido em toda a história do país. Os folhetins ou romances seriados nasceram no início do século 19 como truque para vender jornal, como se sabe. Entre seus autores mais renomados, figuram Alexandre Dumas ("Os Três Mosqueteiros", "O Conde de Monte Cristo"), Charles Dickens ("As Aventuras do Sr. Pickwick", "Oliver Twist"), Eugène Sue ("Os Mistérios de Paris"), Ponson du Terrail ("Rocambole"). Todo mundo os lia no jornal, e novamente quando se tornavam livros em numerosos volumes. Invenção estrutural do folhetim é a ciência da interrupção a cada capítulo, criando o suspense para titilar a avidez do leitor pela continuação.
Telenovela A despreocupação com o verossímil e o desenvolvimento frouxo em episódios que podiam ser costurados infinitamente, precedendo a coerência integrada do romance, já vinham da novela de cavalaria, primeira ofensiva da ficção em prosa. Hoje, o folhetim de cada dia foi parar na telenovela, com suas peripécias mirabolantes e reviravoltas surpreendentes.
Pairam os clichês do gótico: órfãos, gêmeos rivais, vinganças imemoriais, segredos guardados a sete chaves, nascimentos obscuros subitamente revelados como principescos, tesouros enterrados e heranças que caem do céu, parentescos ignorados gerando incestos.
Impera o maniqueísmo, com heróis bondosos e valentes de um lado, do outro lado vilões como madrastas, padres maquiavélicos e milionários corruptos. Há uma dúzia de enredos entrecruzados. Tudo isso marca a popularização do romance burguês à época e sua aliança com a disseminação do jornal. No folhetim, o valor de entretenimento da literatura sobrepuja qualquer outro. Interessantíssima é essa ressurreição em nosso tempo, embora não mais em episódios diários no jornal, de que, afora o ciclo de "Harry Potter" [de J.K. Rowling], são exemplos "O Senhor dos Anéis" [de J.R.R. Tolkien], "As Brumas de Avalon" [de Marion Zimmer Bradley] e vários outros, justamente quando a morte da leitura e do livro vinha sendo decretada.
É fenômeno intrigante, sobretudo quando se pensa nas questões suscitadas pelo uso do computador desde a infância, tais como o déficit de atenção, a instantaneidade da percepção da imagem contra o texto, a atrofia da faculdade de acompanhar raciocínios complexos. Enquanto isso, e deixando para outro argumento a estratégia de marketing, as crianças do mundo inteiro, sem consultar ninguém, ressuscitam livro e leitura com "Harry Potter".

Épica étnica
A presente publicação de "Musashi" visa certeiramente a moda do romance étnico, que muitos chamam de pós-colonial. A globalização trouxe seu correlato literário, a idealização do multiculturalismo e da diversidade cultural, outros nomes para o exótico. O romance étnico é, desde alguns anos, o best-seller absoluto, e em matéria de ficção quase não se vê outra coisa nem nas livrarias nem no Prêmio Nobel.
Se o assunto for a adaptação dos desterrados, o entrecho se situará nos encraves de estrangeiros de pele escura nos países ricos. Para os demais, o cenário comum é o torrão natal, usualmente forasteiro -Iraque, Irã, Afeganistão, nações africanas, Índia, Brasil.
Quase sempre o romance étnico é escrito em inglês para o público ocidental, de preferência mostrando como são bárbaros os povos de cor, ou os que não têm cabelos louros e olhos azuis.
Vejam-se "O Caçador de Pipas" [de Khaled Hosseini] , "Feras de Lugar Nenhum" [de Uzodinma Iweala], "Cidade de Deus" [de Paulo Lins] -não é outro o alcance do premiadíssimo filme "Quem Quer Ser um Milionário?".
Raramente se expressa em outra língua que não a "koiné" de nosso tempo, e, se incorrer nesse defeito, será rapidamente traduzido. Raciocinando pela outra ponta, podemos ver nessa safra aquilo que Toynbee chamaria de "a revanche do proletariado externo". Segundo o grande historiador inglês, que aliás era conservador, todos os impérios caem da mesma maneira, ou seja, quando o proletariado externo, que eles consolidam nas colônias para servir a sua cobiça, reflui para a metrópole e ali se encontra com o proletariado interno.
Pense-se em Roma, por exemplo. E é o que se vê na Europa e nos Estados Unidos nesta fase da história em que os brancos perderam a hegemonia, mas ainda não perceberam. Tal safra celebra o refluxo do proletariado externo. Passa pelos indianos e negros caribenhos da Inglaterra, os árabes e africanos da França, os turcos da Alemanha, os asiáticos um pouco por toda parte.
Quem não se lembra do orgulhoso vice-reinado da Índia, joia da coroa britânica, cantado em prosa e verso pelas letras inglesas, Rudyard Kipling [1865-1936] à frente com "Kim" e "O Livro da Jângal"? Nos EUA, a invasão de latinos de cambulhada -chicanos, cubanos, caribenhos, dominicanos, brasileiros- já tornou o espanhol a segunda língua europeia do mundo, contando, afora jornais e revistas, com estações de rádio e canais de TV.
Há que refletir sobre o seguinte: essa literatura oferece aos brancos ricos aquilo a que eles aspiram, reassegurando-os em sua supremacia sobre árabes, africanos, asiáticos ou brasileiros, todos apresentados como mestiços facinorosos. Assim, os países periféricos fazem literatura e cinema "de exportação", ou seja, exportam matéria-prima colonial em nível simbólico.

Lembrando "Xógum"
Por séculos, o mais conhecido romance japonês e o mais lido no Ocidente foi "Genji Monogatari", narrativa galante-cortesã de quase mil anos atrás, tendo em primeiro plano os feitos donjuanescos do príncipe Genji, filho do imperador, e como pano de fundo as intrigas palacianas. É coisa da aristocracia, e não plebeu como "Musashi". Infelizmente, "Musashi" não é um romance étnico perfeito. Em primeiro lugar, é japonês de três quartos de século atrás, e não de agora. Em segundo lugar, é só japonês, não há ocidentais nele. Em terceiro lugar, foi escrito em japonês para japoneses, e não em inglês. Para efeitos de comparação, basta lembrar o best-seller "Xógum", um dos vários livros da vasta "asian saga" de James Clavell, aliás excelente, de assunto japonês, mas escrito em inglês para leitores ocidentais.
Ali se percebe como o afã do autor é destrinçar as peculiaridades da sociedade e da cultura japonesas, revestindo-as de explicações palatáveis, propriamente decifrando-as para outro código. Simpático aos japoneses, é tanto mais admirável por tratar-se do esforço de quem foi prisioneiro de guerra e passou muitas agruras tentando entender as indignidades a que o submetiam.
Repassa a história do Japão desde o primeiro contato com os ocidentais -o desembarque do piloto inglês é o estopim do entrecho-, apenas mudando os nomes dos principais atores desse painel do xogunato.
E traz a graça do refinamento estético nipônico e do intrincado protocolo das cortes do país, com sua rígida hierarquia e a ritualização dos cerimoniais. O que se encontra também no kabuki, no teatro nô e no cinema. Mas não é o caso de "Musa- shi", predominantemente plebeu. Que propósito poderia ter esta narrativa e sua extraordinária popularidade entre 1935 e 1939, às vésperas da Segunda Guerra Mundial?
Tudo indica tratar-se aqui de um romance bélico, que, embora não retrate uma guerra, vai de duelo em duelo até cobrir todo o território japonês de esgrimistas. A mensagem que sobrenada, apesar de toda a discussão do enriquecimento espiritual e dos benefícios do controle individual sobre a violência, soa como uma declaração de princípios e como uma conclamação para a Segunda Guerra, que se avizinhava: somos um povo guerreiro, em suma.
Ao longo da narrativa, o "bu- shido", o código de ética do samurai, vai sendo enfaticamente reatualizado. Por tudo isso, é uma experiência curiosa ler "Musashi" com essas duas ópticas, a coeva e a de hoje, a um só tempo na mira.

WALNICE NOGUEIRA GALVÃO é professora de teoria literária na USP. Recebeu o Prêmio Mário de Andrade da Biblioteca Nacional por "Mínima Mímica" (Companhia das Letras).