Garapa é brutal na forma como retrata três famílias
que passam fome regularmente. É isso que quer o
diretor José Padilha: tornar pessoal, para quem não
é faminto, o problema de não ter o que comer
Isabela Boscov
A CARA DO PROBLEMA Robertina (ao centro) e sua família: 30 anos presumidos, onze filhos, muita água com açúcar nas mamadeiras e zero de perspectivas |
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Durante um mês, o diretor José Padilha, de Tropa de Elite e Ônibus 174, filmou na íntegra o dia a dia de três famílias cearenses que vivem em locais diversos. Lúcia e suas três filhas moram na periferia de Fortaleza; Robertina e os onze filhos, perto do pequeno município de Choró; e Rosa e os três filhos vivem semi-isolados no sertão. Todas foram escolhidas de forma aleatória – são as primeiras que o diretor encontrou em cada lugar visitado – entre um universo específico: o dos mais de 900 milhões de pessoas em todo o mundo que, segundo a FAO, o órgão das Nações Unidas para a agricultura e a alimentação, vivem naquilo que a linguagem burocrática chama de "insegurança alimentar grave". Em outras palavras, são pessoas que passam fome regularmente. Daí o título do documentário que estreia nesta sexta-feira no país: Garapa (Brasil, 2009), em referência não ao caldo de cana que a palavra também designa, mas à água com açúcar com que mães como as mostradas por Padilha enganam a fome dos filhos quando começa a faltar comida na casa.
Visto a seco, sem conhecimento do debate em que Padilha tem se engajado desde a primeira exibição do filme, no Festival de Berlim (que ganhou no ano passado, com Tropa de Elite), Garapa causa alguma perplexidade. Durante suas quase duas horas de duração, só o que se vê é o cotidiano brutalizante dessas famílias, até o limite do fastio. Robertina tenta manter a casa em ordem, mas o chão e as paredes de terra contribuem para que nuvens de moscas recubram as crianças, causando uma infecção horrenda numa delas. Lúcia, a de Fortaleza, consegue algum alimento de famílias de classe média e de um centro de nutrição (mantido por uma ONG suíça, e não pelo estado); mas tolera o companheiro alcoólatra que rouba a comida das crianças para trocá-la por bebida. Os três filhos de Rosa passam o dia nus, largados pelo chão, e seu marido obviamente já foi vencido pela prostração; durante todo o tempo em que Padilha acompanhou a família, ele não realizou nenhum tipo de trabalho. Nenhuma contextualização é oferecida, ainda que, em todas essas famílias, a fome seja decorrência evidente de problemas anteriores e crônicos: miséria, falta de instrução, ausência ou ineficácia do poder público e, claro, a corrupção, que muito contribui para manter esses grotões de atraso. Daí a perplexidade causada por Garapa e a sensação de que o documentário anda em círculos, fixando-se num efeito sem tocar em suas causas.
De acordo com Padilha, porém, é tão somente isso que ele pretende: mostrar pela ótica do faminto como é conviver com a fome todos os dias e, uma vez que a FAO calcula que neste momento o problema poderia ser resolvido com a ninharia, em termos globais, de 30 bilhões de dólares, tirar dele a impessoalidade das estatísticas. Essas, aliás, têm sido objeto de discussão desde a estreia do filme em Berlim, o que não muda o fato de que, se só essas três famílias vivessem em tal penúria, já seriam famílias demais. O documentário começa também a virar uma peça na discussão sobre o Bolsa Família, já que Lúcia e Rosa mencionam que ele compõe a quase totalidade de sua renda – Robertina não o recebe por não ter certidão de nascimento nem qualquer outro documento. (Em entrevista a VEJA, o diretor argumentou que "o mérito do programa é ser simples; um mérito essencial, uma vez que ele é operacionalizado por um imbecil e incompetente – o estado".) Padilha já planeja um próximo filme em que formulará uma espécie de teoria geral de como a corrupção intoxica todas as etapas da vida no país. Entretanto, ele aqui dá cara e nome a algumas das vítimas desse envenenamento. Por exemplo, Robertina, uma mulher inteligente e uma agregadora natural, mas que aos 30 anos presumidos tem já onze filhos que não consegue alimentar. Os quais, seguido o curso presente, terão também eles outros tantos filhos destinados a subsistir com o socorro da garapa.
'Filmar em Hollywood é uma experiência relevante para um diretor'
Padilha dirige cena de 'Tropa': continuação a caminho |
Por Maria Carolina Maia
No mercado cinematográfico internacional, a chamada retomada da produção brasileira não rendeu apenas apenas indicações ao Oscar e troféus em Berlim - levou também à exportação de diretores. Walter Salles fez Água Negra em Hollywood e depois rodou a coprodução Diários de Motocicleta, com o badalado ator mexicano Gael García Bernal. Cidade de Deus lançou Fernando Meirelles nas coproduções O Jardineiro Fiel e Ensaio sobre a Cegueira, com Julianne Moore. O próximo a seguir esse caminho é José Padilha, o diretor de Tropa de Elite, vencedor do Urso de Ouro de Melhor Filme no Festival de Berlim em 2008. Padilha, que acaba de ter seu último longa, Garapa, selecionado para a mostra competitiva do Festival de Filmes de Tribeca, programada para o mês que vem em Nova York, deve filmar em breve nos Estados Unidos. Ele recebeu um convite da Universal Pictures para filmar The Sigma Protocol ("Protocolo Sigma", numa tradução livre), e já trabalha no roteiro.
"Vai ser um filme no gênero de Os Três Dias do Condor", adianta Padilha, citando o longa de Sydney Pollack de 1975. No filme, um suspense, um agente da CIA descobre que está marcado para morrer - ele sabe demais - e, ao lado de uma fotógrafa, empreende uma fuga para salvar a própria vida. Outra referência citada por Padilha é Marathon Man (1976), de John Schlesinger, produção sobre um estudante de história que de repente se vê envolvido em uma conspiração internacional ligada ao tráfico de diamantes. "Ainda não sei quando o filme será rodado, mas estamos desenvolvendo o roteiro", diz Padilha. O site da revista The Hollywood Reporter noticiou que Sigma Protocol terá como base o último livro de mesmo nome de Robert Ludlum, o escritor americano que forneceu matéria-prima para a trilogia Bourne, com o ator Matt Damon.
Além de The Sigma Protocol, o ativo Padilha - que no mês passado esteve em Berlim apresentando Garapa, documentário sobre a fome - trabalha no roteiro da continuação de Tropa de Elite (2007) e no projeto Nunca Antes na História Deste País. O longa, sobre política, terá roteiro do antropólogo Luiz Eduardo Soares, autor de Elite da Tropa, o livro que deu origem ao maior hit da carreira do diretor. Padilha tem ainda no currículo o documentário Ônibus 174 (2002), sobre o sequestro de um ônibus no Rio de Janeiro que foi acompanhado ao vivo pela televisão e que terminou em tragédia, chocando o país, em junho de 2000. Apesar de sua carreira regular, Padilha acha difícil apontar os motivos que tornam os diretores nacionais atraentes aos olhos de outros mercados. Ele conversou com VEJA.com sobre esse e outros temas.
Como surgiu o convite para dirigir The Sigma Protocol e do que trata o filme?
The Sigma Protocol é um filme no gênero de Os Três Dias do Condor e de Marathon Man. Os produtores, que são muito bons, me enviaram um roteiro, me oferecendo a direção do longa. Perguntei se poderíamos modificá-lo, e eles me disseram que sim. Fizemos então um contrato de desenvolvimento, e agora estamos trabalhando nisso. Ainda não sei quando o filme será rodado. Também não há nenhuma previsão de nome para o elenco. Se rolar, este será um filme americano de estúdio, totalmente da Universal Pictures.
A que você atribui essa procura do cinema de Hollywood por diretores brasileiros?
Talvez ao fato deles gostarem dos nossos filmes. Mas, na verdade, é difícil definir as razões. São muitos os profissionais brasileiros, cada um com o seu estilo e a sua forma de trabalhar. Não acho que exista um aspecto único, comum a todos os diretores brasileiros que têm trabalhos fora do país, algo que explique porque são procurados.
A exportação de diretores para Hollywood é benéfica para o cinema brasileiro?
Filmar, ou mesmo desenvolver um filme de estúdio, é uma experiência de vida relevante para um diretor. Da minha parte, estou aprendendo bastante.
O ano começou com o recorde de Se Eu Fosse Você 2, que se tornou o filme mais visto da retomada. O cinema brasileiro vai longe em 2009?
Se Eu Fosse Você 2 é um filme bom e bastante engraçado. E os atores estão muito bem. O sucesso do longa se explica por isso, e é genial para o cinema brasileiro, é uma grande notícia. Isso mostra que o público comparece quando o filme fala com ele da maneira certa. Se tivesse que chutar, diria que o cinema nacional terá um ano 20% maior que o passado. O que, com a crise que está aí, me parece muito bom.
E Tropa de Elite 2, vai sair mesmo?
Se Deus quiser, teremos a continuação de Tropa de Elite. É difícil dizer quando será lançado. Já estamos trabalhando no roteiro, mas só vamos filmar quando estivermos prontos. Além de Tropa de Elite 2 e de The Sigma Protocol, estou trabalhando em Nunca Antes na História Deste País, um filme sobre a política brasileira e sua desonestidade estrutural. O roteiro é de Luiz Eduardo Soares. Os prazos do filme ainda dependem da captação de recursos.
Como foi voltar a Berlim após o Urso de Ouro de Tropa de Elite?
É sempre muito bom ter um filme em Berlim, e isto é verdade a despeito do resultado do Tropa no ano passado. As seções do Garapa estavam todas lotadas, com gente sentada no chão, e as pessoas ficaram bastante impactadas. A crítica internacional foi realmente muito boa, sobretudo na Alemanha. Estamos recebendo muitos convites de outros festivais importantes, de modo que Berlim, mais uma vez, está nos ajudando muito!