terça-feira, abril 29, 2008

Civilidade política

David Mamet encontra o escritor Gore Vidal em Los Angeles

Diretor de "Cinturão Vemelho", que estréia no Brasil em junho, David Mamet passa em revisão suas convicções, influenciadas pelas ideologias dos anos 60, e critica o papel do governo nas sociedades

[George W. Bush] roubou a eleição na Flórida; Kennedy roubou a dele em Chicago
DAVID MAMET
John Maynard Keynes foi ironizado por mudar de idéia. Ele respondeu: "Quando os fatos mudam, eu mudo minha opinião. E o senhor, o que faz?". Meu exemplo favorito de mudança de opinião aconteceu com [o escritor] Norman Mailer no "Village Voice".Norman assumiu o papel de crítico de teatro e deu sua opinião sobre a estréia nova-iorquina de "Esperando Godot". A maior peça do século 20. Sem dar-se ao trabalho de ir vê-la, Mailer a qualificou de lixo.
Quando, mais tarde, ele assistiu à peça, deu-se conta do erro que cometera. Mas não era mais colunista do "Voice", então comprou uma página no jornal e publicou um artigo em que se retratou, saudando a peça como a obra-prima que ela é.
O sonho de todo dramaturgo. Certa vez, venci uma das "Competitions" de Mary Ann Madden, na revista "New York". A tarefa proposta era nomear ou criar um "10" de qualquer coisa, e a minha foi a "Resenha Teatral Mais Perfeita do Mundo".
Ela dizia o seguinte: "Nunca entendi o teatro até a noite de ontem. Por favor, perdoe tudo o que já escrevi. Quando o sr. ler isto, eu já estarei morto". Essa, é claro, é a única resenha que alguém que trabalha com teatro deseja receber.
Meu prêmio -uma ironia espantosa- foi uma assinatura de um ano da "New York", pasquim que (com a exceção da "Competition", de Mary Ann) considero uma ferida purulenta no corpo das letras mundiais -isso devido à presença em suas páginas de John Simon, cujo amálgama estarrecedor de arrogância e selvageria, ao longo dos anos, foi apreciado pela parcela dos leitores que vive em busca de um endosso da mediocridade pró-ativa.
Mas estou divagando.
Escrevi uma peça sobre política ("November", em cartaz no teatro Barrymore, na Broadway; alguns lugares ainda disponíveis). E, como parte do "processo de criação" -creio que é assim que é descrito-, comecei a refletir sobre política. Esse comentário não é realmente tão inepto quanto pode parecer.
"Porgy and Bess" é uma coletânea de ótimas canções, mas não tem nada a ver com relações raciais, a bandeira de conveniência sob a qual navegou.
Pontos de vista opostos
Mas minha peça, conforme ficou claro, era de fato sobre política, ou seja, sobre a polêmica entre pessoas que defendem pontos de vista opostos. O argumento de minha peça se dá entre um presidente que defende interesses próprios, é corrupto, aliciado e realista, e a redatora de seus discursos, esquerdista, lésbica e socialista utópica.Ao mesmo tempo em que garante uma gargalhada por minuto, a peça é uma disputa entre a razão e a fé ou, possivelmente, entre a visão conservadora (e trágica) e a esquerdista (ou perfeccionista).
O presidente conservador, na peça, defende que as pessoas querem sobretudo ganhar a vida individualmente e que a melhor maneira de o governo facilitar o trabalho delas é ficar fora de seu caminho, já que os inevitáveis abusos e deficiências desse sistema (o da economia de livre mercado) são menores que os que decorrem da intervenção governamental.
Durante muitas décadas eu aderi à visão esquerdista, mas creio que mudei de idéia. Como filho dos anos 1960, aceitei como artigo de fé que o governo é corrupto, que as grandes empresas nos exploram e que a maioria das pessoas, no fundo, tem coração bom.Com o passar dos anos, esses preceitos tão valorizados foram se entranhando em mim como preconceitos cada vez mais impraticáveis. Por que digo "impraticáveis"? Porque, embora eu ainda aderisse a essas idéias, já não as aplicava em minha vida. Como sei disso? Minha mulher me informou do fato. Estávamos andando de carro, ouvindo a NPR [Rádio Pública Nacional, rede provedora de conteúdo para emissoras não comerciais].Senti meus músculos faciais enrijecendo, e as palavras "cale a boca!" se formando em minha mente. "?", ela me espicaçou.
E, como sempre, seu resumo enxuto e elegante me despertou para uma verdade mais profunda: eu vinha ouvindo a NPR e lendo diversos órgãos de opinião nacional havia anos, maravilhamento e raiva disputando espaço a tapas em minha cabeça. E mais: constatei que vinha me referindo a mim mesmo, havia anos -de maneira bastante charmosa, pensava- como "esquerdista tapado" e, à NPR, como "Rádio Nacional Palestina".
Isso, para mim, sintetiza a visão de mundo com a qual me descobri desencantado: a idéia de que tudo está sempre errado. Em minha própria vida, contudo, como revelou uma breve revisão, nem tudo estava sempre errado, e nem tudo estava errado sempre, tampouco, na comunidade em que vivo ou em meu país.
Ademais, tudo não tinha estado sempre errado nas comunidades em que eu vivera anteriormente e entre as diversas e móveis classes das quais, em momentos distintos, fui parte.
E me perguntei como eu pude ter passado décadas achando que eu pensava que tudo estava sempre errado, ao mesmo tempo em que achava que eu pensava que as pessoas eram basicamente boas.
A Constituição
Qual era a resposta? Comecei a questionar o que eu realmente pensava e descobri que não penso que as pessoas sejam fundamentalmente boas; de fato, essa visão da natureza humana tanto motivou quanto esteve na base de meus escritos nos últimos 40 anos.Acho que, em circunstâncias de tensão, as pessoas podem comportar-se como porcos, e que esse, de fato, não apenas é um tema apropriado para obras de teatro, mas, de fato, é o único apropriado.
Eu observara que a luxúria, a cobiça, a inveja, o ócio e seus colegas vêm dando muito trabalho ao mundo, mas que, não obstante, as pessoas, de um modo geral, parecem conseguir levar suas vidas adiante; e que nós, nos EUA, levamos nossas vidas adiante sob condições bastante privilegiadas e ótimas -que não somos e nunca fomos os vilões que parte do mundo e alguns de nossos cidadãos querem nos fazer parecer, mas que somos um misto de cidadãos normais (cobiçosos, desejosos, enganosos, corruptos, inspirados -em suma, humanos) que vivem sob um acordo espetacularmente eficaz chamado Constituição e que temos sorte de contar com ele.
Pois a Constituição, em lugar de sugerir que nos comportemos todos de maneira semelhante à dos deuses, reconhece que, pelo contrário, as pessoas são porcos e aproveitarão qualquer oportunidade que lhes aparecer para subverter qualquer pacto, visando a defender o que consideram ser seus interesses próprios.
Com essa finalidade em vista, a Constituição divide o poder do Estado naqueles três ramos que são, para a maioria de nós (eu me incluo nela), a única coisa da qual nos recordamos de 12 anos de ensino fundamental e médio.
Redigida por homens dotados de alguma experiência prática de governo, a Constituição parte da premissa de que o chefe do Executivo trabalhará para tornar-se rei, que o Parlamento vai conspirar para vender a prataria da casa e que o Judiciário vai considerar-se olímpico e fazer tudo o que puder para melhorar em muito (destruir) o trabalho dos dois outros ramos.
Por essa razão, a Constituição os opõe uns aos outros, não numa tentativa de alcançar a estase, mas de possibilitar as correções constantes necessárias para impedir que um ramo conquiste poder demais por tempo excessivo.
Muito brilhante. Pois, abstratamente, podemos idealizar uma perfeição olímpica de seres perfeitos em Washington trabalhando pelo bem de seus empregadores, o povo, mas qualquer um de nós que já esteve presente a uma reunião de discussão sobre zoneamento em que nosso imóvel estivesse em questão tem consciência do desejo premente de passar por cima de toda a baboseira e partir diretamente para as armas de fogo.
Constatei não apenas que não confio no governo atual (isso não foi surpresa para mim), mas que uma revisão imparcial revelava que as falhas deste presidente -a quem eu, bom esquerdista, via como monstro- diferiam em pouco daquelas de um presidente a quem eu reverenciava.
[George W.] Bush nos mergulhou no Iraque; JFK, no Vietnã. Bush roubou a eleição na Flórida; Kennedy roubou a dele em Chicago. Bush divulgou a identidade de uma agente da CIA; Kennedy deixou centenas deles morrerem na praia da baía dos Porcos [em Cuba]. Bush mentiu sobre seu serviço militar; Kennedy aceitou um Prêmio Pulitzer por um livro escrito por Ted Sorensen. Bush dividiu uma cama com os sauditas; Kennedy, com a máfia.
Oh!
E comecei a questionar o ódio que eu nutria pelas "grandes corporações" -ódio esse que, descobri, não passava do revés da fome que eu sentia pelos bens e serviços que elas fornecem e sem os quais não conseguimos viver.
E comecei a questionar a desconfiança que eu nutria pelos "militares malignos" de minha juventude, que, percebi, estava no passado, sendo que as Forças Armadas hoje são compostas por homens e mulheres que arriscam suas vidas para proteger o resto de nós de um mundo muito hostil.
As Forças Armadas sempre estão com a razão? Não. Tampouco o estão o governo ou as grandes empresas -eles são apenas sinais distintos do particular amálgama de nosso país em grupos de trabalho distintos, por assim dizer. Esses grupos são infalíveis, livres da possibilidade de serem mal administrados, corrompidos ou criminalizados?
Não -e tampouco você ou eu somos. Assim, adotando a perspectiva trágica, a pergunta não será "será que tudo é perfeito?", mas "como as coisas poderiam ser melhores, a que custo e segundo a definição de quem?".
Apresentadas dessa forma, as coisas me pareciam estar se desenrolando bastante bem. Será que falo como membro da "classe privilegiada"? É possível -mas as classes, nos EUA, são móveis, e não estáticas, como reza a visão marxista. Ou seja: os imigrantes vinham e continuam a vir para cá sem um centavo no bolso e podem enriquecer (e enriquecem); o "nerd" ganha US$ 1 trilhão; a mãe solteira, pobre e sem falar inglês, consegue que seus dois filhos cursem a faculdade (foi o caso de minha avó).
Por outro lado, os ricos e seus filhos podem perder tudo; a hegemonia das ferrovias dá lugar à das companhias aéreas, a das redes de TV dá lugar à da internet, e o indivíduo pode, e provavelmente irá, mudar de situação mais de uma vez no decorrer de sua vida. O que dizer sobre o papel do governo? Bem, falando em termos abstratos, a partir de meu tempo e meu passado, achei que fosse uma coisa bastante boa, mas, contabilizando as coisas que me afetam e as que observo, sinto dificuldade em identificar uma instância em que a intervenção do governo tenha levado a muita coisa senão sofrimento.
Mas, se o governo não deve intervir, como é que nós, meros humanos, vamos encontrar as soluções? Eu me questionei, li, e me ocorreu que eu sabia a resposta.
É esta: parece que simplesmente encontramos jeitos. Como sei disso? Pela experiência. Pensei em minha própria experiência. Tire o diretor da peça encenada, e o que resulta? Normalmente, em uma redução nos conflitos, ensaios feitos em menos tempo e uma produção melhor. O diretor geralmente não causa conflitos, ele próprio, mas sua presença leva os atores a dirigir (e inventar) reivindicações que visam a apelar para a "autoridade" -em outras palavras, deixar de lado o objetivo original (encenar uma peça para a platéia) e fazer política, cujo objetivo pode ser ganhar status e influência fora do objetivo ostensível do empreendimento todo.
Sistema de júri
Deixe passageiros que não se conhecem sozinhos num ônibus no meio da noite, sem a possibilidade de sair dele, e o que você terá? Muito drama de baixa qualidade e uma versão rudimentar do Acordo do Mayflower [entre colonos que chegavam à América do Norte, considerado o primeiro contrato social dos EUA, em 1620].
Cada passageiro vai imediatamente acrescentar o que puder à solução do problema. Por quê? Porque cada um quer (na realidade, necessita) contribuir -jogar no caldeirão os presentes que tem em mãos para ajudar o grupo a alcançar a meta comum, sem falar em conquistar status na comunidade recém-formada. E, assim, eles encontram uma solução.
Veja também o caso dessa mais magnífica das escolas, o sistema de júri, no qual, novamente, cada participante não traz nada para a mesa salvo seus próprios preconceitos, e, ao fio das deliberações, o grupo chega não a uma solução perfeita, mas a uma solução aceitável para a comunidade -uma solução com a qual a comunidade consegue conviver. Antes das eleições parlamentares, meu rabino estava sendo alvo de muitas críticas. A congregação é exclusivamente esquerdista, ele se descreve como independente (leia-se "conservador") e estava deixando o rebanho maluco. Por quê? Porque a) ele nunca falava de política e b) ensinava que a qualidade do discurso político precisa ser tratada primeiro -que as leis judaicas ensinam que cabe a cada pessoa ouvir tudo o que a outra tem a dizer. Então eu, assim como uma parte tão grande da congregação esquerdista, comecei -com os dentes rangendo- a tentar fazê-lo. E, ao fazê-lo, reconheci que eu tinha duas visões dos EUA (política, governo, grandes empresas, o setor militar).
Uma delas era a de um Estado em que tudo estava magicamente errado e deveria ser corrigido imediatamente, a qualquer custo; e a outra -a do mundo na qual eu de fato vivia cotidianamente- era feita de pessoas, a maioria das quais procurava, de maneira razoável, maximizar seu próprio conforto, convivendo pacificamente com as outras (no trabalho, no mercado, na sala do júri, na rodovia, até mesmo nas reuniões dos conselhos escolares).
E compreendi que era chegado o momento de eu declarar minha participação nos EUA em que eu optava por viver e que o país não era uma sala de aula ensinando valores, mas um mercado.

Será que falo como membro da "classe privilegiada"? É possível, mas as classes são móveis, e não estáticas

"Ahá!", você dirá, e com razão. Comecei a ler não apenas os tratados econômicos de Thomas Sowell (nosso maior filósofo contemporâneo), mas também Milton Friedman, Paul Johnson e Shelby Steele, além de uma gama de escritores conservadores, e descobri que eu concordava com eles: uma visão de mundo pautada pelo livre mercado condiz mais perfeitamente com minha experiência do que a visão idealista à qual chamo de visão esquerdista.
Ao mesmo tempo, eu estava escrevendo minha peça sobre um presidente corrupto, astuto e vingativo (como presumo que sejam todos os presidentes) e dois perus.
E dei a esse presidente fictício uma redatora de discursos que, na opinião dele, é uma "esquerdista tapada", muito semelhante a meu eu anterior. No decorrer da peça, eles são obrigados a encontrar uma saída. De fato, acabam chegando a uma compreensão humana do processo político. Coisa que creio que eu mesmo estou tentando fazer e na qual acredito que possa ter êxito. Tentarei resumi-la nas palavras de William Allen White [1868-1944].
Progredir e conviver
White foi durante 40 anos editor da "Emporia Gazette", da zona rural do Arkansas, e comentarista político poderoso e destacado. Foi grande amigo de Theodore Roosevelt e escreveu o melhor livro que já li sobre a Presidência. O livro se intitula "Masks in a Pageant" (Máscaras em uma Encenação Histórica). Traça o perfil de presidentes americanos de McKinley a Wilson, e eu o recomendo sem reservas.
White era um sujeito muito lúcido e já testemunhara a natureza humana de maneira que poucas pessoas têm a oportunidade de fazer (como escreveu Mark Twain, se você quiser compreender os homens, dirija um jornal rural).
Sabia que as pessoas precisam tanto progredir quanto conviver umas com as outras, que estão sempre trabalhando para um ou outro desses objetivos, e que o governo, na maior parte do tempo, provavelmente fará melhor em ficar fora de seu caminho e deixar que elas sigam seu próprio rumo. Mas, acrescentou, existe algo chamado liberalismo -a postura esquerdista-, e ela pode ser reduzida a essa mais triste das frases: "... E, no entanto...". A direita faz pregações tediosas sobre a fé, a esquerda faz pregações tediosas sobre mudanças, e muitos ficam indignados com os tolos que vêem do outro lado. Em última análise, porém, esses tolos são as mesmas pessoas com as quais vamos nos encontrar na cantina da empresa.
Feliz temporada eleitoral!
Este texto foi publicado no "Village Voice". Tradução de Clara Allain

segunda-feira, abril 28, 2008



Mike Leigh contra o baixo-astral

Com novo filme, caixa de DVDs e livro de entrevistas, o diretor inglês desmente a fama de rabugento e diz que é hora de rebater a crescente onda de pessimismo

JONATHAN ROMNEY

É tedioso enfatizar a reputação de Mike Leigh como ranzinza, mas com certeza existe um certo, digamos, reconhecimento de marca que ela propicia.
A caixa de sua recente coleção de DVDs [lançada no Reino Unido pela Spirit Entertainment, 59,99, R$ 200], com design de Toby Leigh, um de seus filhos, mostra Leigh, 65, com uma careta no rosto, em uma foto de passaporte que o faz parecer um sujeito que um dia tenha planejado um assalto malsucedido a um banco britânico de menor porte.
Não seria errado suspeitar de que Leigh aprecia essa imagem. Na mesa de seu escritório no Soho [bairro de Londres], a xícara de café que usa traz a palavra "crabbit", uma expressão em dialeto escocês que significa "mal-humorado, rabugento, áspero, desagradável".
"Foi um presente", conta Leigh, "de uma atriz engraçadinha que usou a palavra ao descrever uma personagem. Na verdade, portanto, não é sobre mim". Leigh é um homem perfeitamente afável e loquaz. Mas pode ser "áspero, com aquele jeito do norte", diz, adotando imediatamente um áspero sotaque nortista de personagem de seriado cômico.
Não se pode negar que seus filmes oferecem alguns dos episódios mais sombrios e desanimadores do cinema britânico -desde "Bleak Moments" [Momentos Sombrios], de 1971, um estudo sobre o isolamento emocional dos ingleses.
Depois disso, dirigiu, entre outros, "Nu" (1993) -no qual David Thewlis assombra a deprimente noite londrina-, o retrato severo do Reino Unido do pós-guerra em "O Segredo de Vera Drake" -premiado no Festival de Veneza em 2004- e "Agora ou Nunca" (2002), com as mais perturbadoras cenas de incompreensão conjugal vistas fora de um filme de Ingmar Bergman.
Quando seu trabalho mais recente, "Happy-Go-Lucky" [Desencanada], estreou em Berlim, algumas semanas atrás, Leigh surpreendeu, em entrevista coletiva, ao dizer que era hora de "rejeitar a crescente moda do pessimismo e da negatividade". Será que o mundo está preparado para recebê-lo em modo otimista?
Sentado à cadeira de seu escritório estranhamente monástico, Leigh insiste em que "não resta dúvida de que vivemos momentos desastrosos, estamos destruindo o planeta e destruindo uns aos outros".
"Mas, apesar disso, as pessoas conseguem superar os problemas, basicamente." "Superar os problemas" é um dos mais fortes termos de aprovação no vocabulário de Leigh. Em seu novo filme, a expressão se aplica a Poppy (Sally Hawkins), uma professora de ensino fundamental em Londres cujo entusiasmo e exuberância são irrefreáveis, apesar dos horrores da existência.
"São as poppies do planeta, as professoras", diz Leigh, "que acreditam no futuro o bastante para trabalhar, estimular as crianças. Não aprecio muito a idéia de positivismo".
"Por outro lado, a idéia de ser inimigo da miséria e do sofrimento muitas vezes me diverte. Especialmente porque já fui acusado de abusar da miséria e do sofrimento em outros filmes -o que é bobagem."

Otimismo
"Desencanada" dificilmente deve ser visto como o primeiro filme de Leigh a exibir dose considerável de alegria de viver. Não poucos espectadores saíram flutuando de "Topsy-Turvy - O Espetáculo", seu filme de 1999 sobre os compositores Gilbert e Sullivan.
Mas sua nova produção mantém o espírito otimista de maneira mais consistente do que vimos em qualquer outro trabalho anterior. "O título mais evoca que descreve um espírito. Descrever Poppy como feliz ["happy'], como se ela tivesse comido cogumelos mágicos ou fumado muita maconha, é ridículo."
Uma personagem feliz que não seja nem irritante nem uma espécie de idiota sagrada: com certeza um dos mais difíceis desafios no mundo do drama. Mas Poppy brilha, em uma interpretação que valeu a Hawkins o prêmio de melhor atriz em Berlim.
É seu terceiro filme com Leigh: interpretou uma tentadora de conjunto habitacional suburbano em "Agora ou Nunca" e a menina rica que engravida em "O Segredo de Vera Drake". Quando Leigh percebeu o imenso talento de Hawkins?
"Imediatamente. De fato, quando entrou na sala, em nossa primeira conversa. Ela é muito aguçada, muito engraçada e excelente companhia -ótima, basicamente."
"Uma atriz incrivelmente generosa: mesmo agora, quando sabe que carrega todo o filme, mais do que qualquer outro ator jamais carregou um filme anterior, ainda prefere vê-lo como trabalho de elenco."

Improvisação metódica
Uma neblina de boatos e uma mística persistente cercam os métodos de trabalho únicos de Leigh já há muito tempo. O diretor os desenvolveu ao longo de cinco décadas de carreira em teatro, cinema e televisão.
Uma coisa que se sabe é que o método envolve intensa improvisação, pesquisa e colaboração estreita entre os atores. Como o diretor define, "a jornada de fazer um filme é uma jornada de descoberta daquilo que o filme realmente é".
Caso você deseje um relato detalhado sobre o que isso efetivamente envolve, pode encontrá-lo no livro "Mike Leigh on Mike Leigh" [org. Amy Raphael, ed. Faber & Faber, 12,99, R$ 43], uma longa e abrangente série de entrevistas na qual revela tudo sobre seus métodos. Ou talvez nem tudo.
Cometi o erro de começar uma pergunta com "depois de ler o livro, e sabendo agora como você trabalha..." só para ser interrompido por uma gargalhada sarcástica do diretor.
O livro de fato desmistifica bastante a metodologia de Leigh, que parece pragmática e livre de retórica, dotada de códigos de prática que incluem a regra de jamais permitir que os atores discutam seus personagens senão em terceira pessoa.
Qualquer conversa sobre atores que se envolvem demais com seus papéis é cortada na raiz. "A história toda de que as pessoas se tornam seus personagens, bem, isso não acontece", diz Leigh.
Mesmo assim, em diversos pontos do livro ele deixa de revelar certos "segredos de ofício". "Eu me recuso", diz. "A verdade é que não quero parecer enigmático ou obscuro por gosto. Mas na verdade existem coisas acontecendo no trabalho que só podem ser compreendidas pelas pessoas que tomam parte no processo."

Instinto
O que as entrevistas revelam é que cada trabalho deriva diretamente do esforço colaborativo que o produz, e só dele, e o processo começa sempre com a escalação do elenco. "Seleciono atores por instinto", diz Leigh. "Contrato pessoas e não sei o que vou fazer com elas."
Em "Desencanada", ele sabia que desejava trabalhar com Eddie Marsan, que também atuou em "O Segredo de Vera Drake", mas nenhum dos dois imaginava que ele terminaria interpretando o amargurado instrutor de direção Scott, um sujeito que resmunga perpetuamente, combinando dogmas obsessivos e métodos bizarros de memorização em um nó incompreensível.
"Nós desenvolvemos essa idéia de um sujeito disperso, eclético, que lê muita coisa e procura muita coisa no Google, e a chave foi descobrir que nós juntamos tudo isso, mas sem cometer o erro de fazê-lo compreender a massa de informações." O resultado é uma criação tragicômica aterrorizante -e impagável.
Leigh trabalha com informações estritamente segregadas, e aos atores é informado apenas o que seus personagens fazem -e nada mais.
Na preparação de "O Segredo de Vera Drake", a cena que culmina na detenção da protagonista emergiu de uma sessão de improviso de dez horas de duração, no final da qual os atores que interpretavam a família Drake foram surpreendidos pela chegada de novos atores interpretando policiais. Não que o interesse de Leigh seja traumatizar seus elencos.
"As pessoas que não têm senso de humor não conseguem fazer esse trabalho. Para mim, a idéia é montar um grupo de pessoas realmente capazes de trabalhar juntas, e uma das necessidades é que consigam gostar umas das outras -mas sem sentimentalismo demais."
Mas esse processo certamente resulta em surpresas, quando os atores vêem o resultado na tela? "Certamente. Todas as vezes. Porque nunca sabem o que o filme inteiro será antes disso. Trata-se de uma das minhas coisas favoritas ao longo do processo -eles assistem ao filme em sessão fechada, e depois saímos juntos e nos embriagamos. É sempre uma completa revelação."


A íntegra deste texto saiu no "Independent". Tradução de Paulo Migliacci .
ONDE ENCOMENDAR - O livro "Mike Leigh on Mike Leigh" e a caixa de DVDs "The Mike Leigh Film Collection" (com os filmes "Nu", "Bleak Moments", "Garotas de Futuro", "Segredos e Mentiras", "O Segredo de Vera Drake", "Topsy-Turvy - O Espetáculo", "Agora ou Nunca", "A Vida É Doce", "High Hopes", "Meantime") podem ser encomendados pelo site www.amazon.co.uk

Das telas ao palco, conheça trabalhos essenciais do cineasta

Bleak Moments (Momentos Sombrios, 1971)
Depois de surgir em forma de peça, esse drama londrino explora um dos temas mais duradouros para o cineasta inglês: "Toda a história do comportamento herdado"

Abigails's Party (A Festa de Abigail, 1977)
Essencialmente teatro filmado para a TV, esta obra tem posição de destaque na consciência cultural britânica. Leigh define esse trabalho como "o cuco no ninho, entre meus trabalhos para televisão"

Nu (1993)
O mais sombrio de seus filmes, estrelado pelo incandescente David Thewlis como um fugitivo com mil teorias fervilhando em seu crânio

Topsy-Turvy - O Espetáculo (1999)
O filme que ninguém esperava: um panorama de 152 minutos sobre a criação da ópera cômica "The Mikado", de Gilbert e Sullivan. Seria um retrato mal disfarçado de seu próprio processo de direção?

Two Thousand Years (Dois Mil Anos, 2005)
A última produção teatral de Leigh, que fez temporada em Londres e depois em Nova York. Um drama familiar que recua às origens judaicas de Leigh, e um de seus trabalhos mais diretamente políticos