domingo, outubro 05, 2008

Santiago: Reflexões sobre o documentarista ainda bruto.


Por Eduardo Liron.

Como, num documentário, representar as pessoas e situações de modo fiel? Esta deve ser a dúvida recorrente de todo documentarista neófito que, confrontado com a oportunidade de realizar seu primeiro projeto, busca empenhar seu trabalho de forma séria. Nem todo neófito, porém, formula a pergunta de forma literal, indagando um mestre, como por exemplo, João Moreira Salles. Eis que na ultima terça-feira, dia trinta de setembro, a Revista Piauí, num ciclo de palestras em universidades para angariar leitores, leva o próprio ao teatro da PUC numa sabatina aberta e gratuita.

Não que eu esperasse realmente receber uma resposta concreta, mas arrisquei o chute. "Não tem uma resposta. Segura na mão de Deus e vai!", respondeu com um curioso sorriso. Quis saber sobre meu projeto, conversamos mais algum tempo sobre um ou outro assunto, mas nada disso vem ao caso agora. A resposta não disse mais que eu esperava ouvir e, consequentemente, saí de lá imaginando que jamais obteria uma resposta objetiva. Eis que, no dia seguinte, o próprio diretor acaba por responder minhas dúvidas sem nem saber. Claro que não estávamos conversando cara-a-cara novamente. Foi exibido gratuitamente no Auditório Banespa, da PUC de São Paulo, como extensão da sabatina, o filme "Santiago" (2007). Creio que logo esta obra se tornará referência básica de qualquer aspirante a documentarista, porque, mais que um meta-documentário, o filme reflete muitas questões do processo do fazer documental.

Não cabe aqui, é claro, buscar uma resposta definitiva para o interminável debate entre a diferença entre a ficção e a não ficção. Muitos, como Herzog, nem considera que haja alguma forma de diferencia-los. João Moreira, porém, quando perguntado na sabatina como diferenciá-los, respondeu que a grande diferença diz respeito à responsabilidade ética que tem o documentarista ou jornalista frente a seu objeto. Certamente, santiago é um exemplo inquestionável disto. Quando se filma, entrevista, ou edita a ou à cerca de alguém ou alguma coisa num documentário, deve-se sempre ter em mente que, por mais facetas que sejam possíveis de contemplar criando uma abordagem de um personagem complexo, seu objeto real sempre será infinitamente mais profundo e esférico. O que quero dizer é que, por melhor que seja a sua representação, ela sempre será uma simplificação. E a escolha do que deve ou não caber nesta simplificação terá sempre o cabresto nem nossos próprios interesses e percepções. O filme é incrivelmente construtivo exatamente por ser uma espécie de "erro" recorrente das primeiras tentativas da produção documental, principalmente entre aqueles que tem em seu imaginário o processo padrão de produção ficcional. O diretor vê-se na posição de controle sobre as direções a serem tomadas, privando seu personagem da capacidade de auto-representação. Ao tentar retratar o mordomo como o conhecia, não foi capaz de permitir que fosse retratado como ele era, efetivamente.

Nesse sentido, refletindo sobre o material bruto, Salles acaba por transmitir aquelas idéias que, normalmente, seriam incorporadas apenas pela via da tentativa e erro. O grande mérito do cinema documental, talvez, seja sua capacidade de nos pôr em confronto direto com o outro, mas para isso devemos nos dispôr a ouvi-lo. Nestes termos, o papel do diretor é que talvez devesse se aproximar do do mordomo: deve-se subordinar àquele personagem que o desafia, respondendo suas exigências mas, ao mesmo tempo, garantindo a manutenção da ordem.
Refletindo, depois, novamente sobre o filme, retornei ao conselho que me foi dado e então compreendi que, talvez, ele significasse mais do que minha capacidade de compreensão instantânea havia captado. João Moreira Salles, certamente, não se atormenta mais na dúvida de de como representar o outro. Sua filmografia é prova de que, certamente, já sabe a resposta. "Segura na mão de Deus e vai!", talvez não tenha sido a resposta à minha pergunta objetiva, mas sim à subjetiva. Se eu fui buscar seu conselho por medo de errar, sua resposta, a única que poderia me dar, foi, na verdade, que o grande acerto é o de arriscar-se a errar.