quinta-feira, setembro 25, 2008

"Jesus não é bonzinho, nunca foi e nunca vai ser"


Por Celso Cunha


Desde “Noite Vazia” do Walter Hugo Khoury não se via por aqui uma minitrama tão bem executada. Bebendo na fonte do neo-realismo italiano, Walter Salles e Daniela Thomas souberam reger seus personagens com a mesma maestria de sempre.


Linha de passe conta estória de uma família em desequilíbrio onde uma mãe solteira é um frágil e único laço entre seus quatro filhos: Dário, um aspirante a jogador já ficando velho demais para as “peneiras”.D inho, um frentista aspirante à pastor evangélico. Denis, um moto-entregador com uma certa atração à vida fácil e Reginaldo que tem como principal objetivo conhecer seu pai.


Quanto ao tema, pode-se perceber a influência dos documentários “Santa-Cruz” e “Entreatos” de João Moreira Salles que abordam o surgimento de uma igreja evangélica no Rio de Janeiro e a campanha presidencial de Lula para a presidência, pois há um óbvio simbolismo entre os personagens que representam uma nação que busca espiritualidade, ascensão social e liderança, mas que recorre à criminalidade. Destaque para a belíssima cena do batismo coletivo que talvez sintetize esse conceito.


É sem dúvida um filme sensível e humano, que trata seus estereótipos de maneira madura e pouco condescendente.Também utiliza de atores brilhantes e ,como é de se esperar de Walter e Daniela, extremamente bem dirigidos.Não há no Brasil outra dupla que consiga extrair o melhor de seus atores. Contudo há detalhes que não pude deixar de notar. Aspectos que provavelmente incomodaram somente uns poucos espectadores.


Ao contrário do consenso geral, o filme não me agradou esteticamente. Achei que a crueza das locações paulistanas não combinou com o lirismo da fotografia. Me incomoda um pouco a tentativa de embelezar o sujo, me soa um pouco hipócrita, como um discurso imperialista que tenta nos convencer que existe beleza na pobreza. Pessoalmente eu considero a pobreza uma existência injusta e que deve ser transformada, aceita ou assumida. Nunca eufemizada.


Houveram também momentos supérfluos em relação ao roteiro, como a má experiência na festa com os “playboys”. Achei a maneira como foi filmada um pouco infantil e moralista. Por mais que represente a ascensão social através do futebol, seus resultados deveriam ser deixados em aberto, assim como todo o resto. Porém essa é somente minha opinião. Num apanhado geral eu diria que é um grande filme, extremamente inteligente e bem orquestrado. Não chega a ser um favorito meu, mas talvez eu o enxergue de outra forma na próxima vez que o vir.

Linha de Passe em contexto


Por Thiago Calligares


O filme começa apresentando os personagens como alguns estereótipos do subúrbio, o motoboy que batalha para se manter vivo, o crente que tem a religião como refúgio da vida sofrida e sem expectativas, o filho de pai desconhecido, o amador que sonha e batalha para ser jogador de futebol profissional e, por fim, a mãe irresponsável por esbanjar filhos sem ter condições e que não sabe criá-los nem manter o controle da situação, mas é mulher batalhadora que tenta fazer o melhor para seus filhos, sem ter instrução para tal, ou seja, uma família onde todos têm de, sozinhos, correr atrás de sua sobrevivência, seus sonhos e de respostas para resolverem seus conflitos internos.


No decorrer do filme, enquanto ele vai se desenvolvendo, podemos perceber que os estereótipos vão se desfazendo um pouco, dando um ar mais realista a cada um deles, colocando conflitos aos personagens em relação ao seu caráter e a sua fé no que faz e no que busca, mesmo que essa busca seja apenas por se manter na legalidade de seus atos e pensamentos.


Tecnicamente o filme se mostrou decente, bem feito e belo, com sutileza, sem impressionismos visuais, tanto na fotografia, que ora incomodava pela subexposição provavelmente proposital, quanto na montagem, que contava paralelamente a história dos cinco personagens que, em alguns momentos, se fundiam, e suas transições de planos que faziam uma fusão de cenas na mente do espectador proporcionada pela presença de algum signo que, estando no ultimo enquadramento da cena anterior e no primeiro da cena posterior, nos possibilitava essa impressão.

Com atuações muito boas e realistas, o filme incomoda quando quer, emociona, envolve, dá um nó na garganta e, nos momentos de alívio cômico, nos faz rir, porém, como todo integrante da alta burguesia que não conhece de perto a rotina de uma periferia e a enxerga somente do alto, como algo baixo em todos os sentidos, Walter Salles, filho de banqueiro, com sua visão imaginária e literária da realidade periférica, apela muito nos palavrões, o que incomoda, por “sujar” o filme e por ser forçado, pois quem tem o mínimo de contato com essa realidade sabe que não é bem assim, e o filme não está, como em outras recentes produções nacionais, retratando a realidade explicita da criminalidade, portanto, pode ser usado, mas com mais sutileza ou, no mínimo, mais realismo, mas essa falha não se estende pelo filme todo, aparece entre o início e o meio do filme ( primeiro e segundo ato). Tal falha acaba desestimulando o espectador e causando comentários que viram discussão em plena sessão.


Acredito que o final em aberto dos personagens seja ao mesmo tempo uma qualidade como um defeito do filme, pois, interage com o espectador, fazendo-o continuar a história em sua imaginação diante das possibilidades do filme, mas, como é exibido em meio a estréias blockbuster como no cinemark por exemplo, o público exige uma história completa, afinal estão indo em busca de entretenimento e não de arte, e geralmente esse público tem certa dificuldade, por mal costume, de entender uma narrativa diferente que necessita um pouco mais de reflexão e imaginação.

Linha de Passe



MARCELO COELHO


Filmar pobre não é pecado


"Linha de Passe" não é incorreto nem correto: é equilibrado; trata-se de personagens duros
DEPOIS DE "Abril Despedaçado", criei certa preguiça de ver os filmes feitos por Walter Salles Jr.


Claro que é um cineasta excelente. Acho que não andei sozinho, contudo, ao reclamar do excesso de correção política e de intenções esperançosas num filme como "Central do Brasil". E também de uma estetização meio enevoada e fácil em "Abril Despedaçado". Assim, não tive muita pressa para ver "Linha de Passe", o mais recente filme de Walter Salles, em colaboração com Daniela Thomas. O público, por sua vez, parece dar mostras de cansaço diante de tanta gente pobre no cinema brasileiro. Ainda mais quando um dos pobres é motoboy (operários e camponeses já desapareceram do nosso horizonte), e quando se abordam os temas onipresentes do futebol e da fé evangélica. Com um ou outro toque de narcotráfico, para não se perder o costume. Nos domingos, pobres vão ao culto. Intelectuais de esquerda vão ao Espaço Unibanco.


Juntei-me ao meu rebanho. Gostei de "Linha de Passe". Não vi no filme tanta correção política assim. Hoje em dia, parece que só se pode evitar esse defeito caindo no exagero inverso. "Linha de Passe" não é incorreto nem correto: é equilibrado, sem que esse equilíbrio pareça resultado de uma dosagem quimicamente produzida entre uma coisa e outra. A faxineira pobre vivida por Sandra Corveloni pode sofrer um bocado com a indiferença e a pressa de sua patroa, mas não é apresentada como vítima da opressão burguesa. Grávida de seu quinto filho, ela fuma sem parar. Se lembrarmos da Fernanda Montenegro de "Central do Brasil", o papel de Sandra Corveloni em "Linha de Passe" dá mostras de muito mais contenção estética. Fernandona era reconhecível, simpatizável, emocionável, "chorável". Corveloni é seca, áspera, e sua personagem parece estar a contragosto no filme e na vida.Os demais personagens de "Linha de Passe" também são tratados a uma nítida distância emocional.


Aquele garotinho bonzinho e perdido de "Central do Brasil" deu lugar a um pré-adolescente de péssimos bofes, e talvez até o mais generoso psicopedagogo da ONG Projeto Pivetinho o julgasse merecedor de alguns cascudos antes das primeiras aulas de violino e de cerâmica. Quanto a seus irmãos mais velhos, todos se ressentem de muita adversidade e frustração, mas nunca o roteiro pretende convencer-nos de que são apenas vítimas de um sistema injusto. Trata-se, sobretudo, de personagens duros, ou, se quisermos, endurecidos pelas circunstâncias. Gestos de carinho são raríssimos, a trilha sonora é das mais econômicas, a câmera não afaga nem lambe o rosto de ninguém.


Correção política? Os pobres de "Linha de Passe" não acendem as esperanças de nenhum coração de esquerda. De resto, xingam-se, maltratam-se, exibem preconceitos o tempo todo. Só de forma muito indireta é que seus sonhos apontam para alguma coisa como um ideal comum de salvação. Um quer ser jogador de futebol; outro aposta na retidão da alma; o garoto quer ser chofer de ônibus. Três imagens do "coletivo", do "comunitário", do "nacional". São, contudo, reinterpretadas num prisma individualista. A torcida, em transe coletivo, importa menos do que o projeto de ascensão de um rapaz cujo principal defeito é ser "fominha" em campo. O comunitarismo cristão nada significa para outro personagem, fechado em sua pura e dura redenção individual. O ônibus que o menino quer conduzir está sem passageiros.


Estetização da pobreza? Tampouco vi qualquer coisa nesse sentido em "Linha de Passe". Qualquer continuidade coreográfica dos movimentos de câmera é substituída, aqui, por uma linguagem que privilegia o corte, a interrupção, a montagem. Recursos anti-sentimentais e "distanciadores" por excelência.Mesmo os closes dos personagens dão a impressão de serem filmados a uma certa distância, de tal modo cada ator se recusa à cumplicidade sentimental com o público. Desconfio que, se "Linha de Passe" desagrada, é pelas suas qualidades; ou por outros defeitos (certa monotonia, por exemplo) que, em todo caso, não são aqueles que eu esperava quando entrei na minha resignada fila dominical. Que assim seja, e que o filme seja louvado.