Para Clint, "Gran Torino" é obra sobre a tolerância Em novo filme, diretor interpreta um xenófobo veterano de guerra em conflito com seus vizinhos asiáticos em Detroit
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Clint bate a claquete para dirigir a si mesmo em 'Gran Torino' LEONARDO CRUZ EDITOR-ASSISTENTE DA ILUSTRADA Na noite do último dia 25, Clint Eastwood recebeu em Paris uma Palma de Ouro especial por toda sua obra no cinema. Foi apenas a segunda vez em sua história que o Festival de Cannes entregou tal prêmio -a primeira havia sido em 1997, para o sueco Ingmar Bergman.
Nada mais justo. Com 78 anos de idade e 54 de carreira, Clint é um dos mais importantes cineastas americanos na ativa, de trajetória só comparável à de outros três gigantes: Francis Ford Coppola, Martin Scorsese e Woody Allen.
Após despontar como ator nos anos 60 em filmes como "Por um Punhado de Dólares", de Sergio Leone, e "Meu Nome É Coogan", de Don Siegel, ele percorreu um caminho entre a atuação, fonte de prazer, dinheiro e fama, e a direção, sua maior satisfação profissional.
Viveu personagens que se tornaram célebres, como o detetive justiceiro Harry, o sujo, em "Perseguidor Implacável" (1971) e mais quatro longas. E realizou trabalhos premiados e elogiados pela crítica, como "Os Imperdoáveis" (1992).
No mesmo 25 de fevereiro, horas antes do tributo na França, o cineasta atendeu a
Folha por telefone, na única entrevista ao Brasil para falar sobre "Gran Torino". No novo filme, Clint dirige e interpreta Walt Kowalski, metalúrgico aposentado, que mora em um bairro empobrecido da Detroit de indústria automotiva decadente.
Gran Torino é o Ford 1972 que Kowalski guarda na garagem, memória do passado próspero.
Veterano da Guerra da Coreia, ele mantém uma bandeira americana na entrada de casa e detesta seus vizinhos. São de uma comunidade hmong, etnia asiática que apoiou os EUA na Guerra do Vietnã, foi perseguida após o conflito e, em boa parte, fugiu para o Ocidente.
A ação do filme nasce dessa convivência entre o americano racista e rancoroso e os asiáticos da porta ao lado, em especial o jovem Thao. Xenofobia, crise dos valores da família e da igreja e negação da vingança como justiça social emergem em "Gran Torino", ótima síntese das questões centrais da obra mais recente do diretor.
O filme, que estreia na próxima sexta no país, é o tema deste primeiro trecho da entrevista.
FOLHA - Muitos de seus filmes mostram uma sociedade em declínio moral. Em "Gran Torino", há também a decadência econômica. Isso reflete o espírito dos EUA hoje?
CLINT EASTWOOD - De certa forma, sim. Principalmente da região de Detroit, onde a indústria automobilística, antes símbolo do país e que hoje produz carros que ninguém mais quer, espera ser resgatada pelo governo. É um pouco sobre essa região em depressão, de fábricas fechadas e desemprego.
"Gran Torino" está no meio disso tudo, porque Walt Kowalski é um aposentado com problemas ligados a pessoas de dentro e de fora de seu círculo social. Muitos de seus amigos e contemporâneos estão mortos.
E ele tem problemas com a igreja, com sua família, e seus preconceitos o colocam em choque com a vizinhança. Até que ele percebe que esses vizinhos asiáticos são mais voltados para a família do que ele é.
FOLHA - O contraste entre valores ocidentais e orientais foi algo que o atraiu no roteiro de Nick Schenk?
CLINT - Sim. Gosto desse espírito de Kowalski, de homem obstinado. E também do fato de ele conseguir mudar, aprender algo. É isso que o filme resume: não importa a idade, sempre há algo a aprender sobre a vida, as pessoas e tolerância.
FOLHA - Críticos nos EUA disseram que Kowalski é uma espécie de Harry, o sujo, na velhice. Mas Kowalski carrega um forte sentimento de culpa pelo que fez na Coreia, e a forma como resolve as coisas em "Gran Torino" fazem dele o oposto da figura do vingador.
CLINT - Creio que as pessoas concluíram apressadamente essa relação com "Dirty Harry", sem refletir muito ou observar essa questão sob outro ângulo.
Vejo o personagem como você colocou. Walt Kowalski é uma pessoa diferente. Tem que lidar com uma série de problemas que Harry nunca enfrentou.
FOLHA - Kowalski é uma espécie de resposta a Harry e àquela visão romântica do vingador dos anos 70?
CLINT - Não estou tentando fazer um comentário sobre os anos 70. Os anos 70 foram os anos 70. E isso é agora. Mas, se há ou não alguma resposta escondida, eu desconheço. Só penso sobre "Gran Torino" no tempo presente. Nesse personagem e em seus problemas de agora. Kowalski me traz lembranças da época em que eu era militar. Senti que era capaz de compreendê-lo. Apesar de não ter ido à Guerra da Coreia, conheci muita gente que foi e que passou por aquilo que Kowalski passou. E você faz coisas malucas quando é jovem, coisas que, quando olha para trás, revê com certo arrependimento.
FOLHA - Dúvidas sobre a autoridade religiosa estão presentes em "Gran Torino" e em outros filmes recentes seus, como "Menina de Ouro" e "A Troca". Por que esse é um tema tão relevante?
CLINT - Não sei explicar. Em "Menina de Ouro", isso era parte da estrutura do roteiro. Frankie Dunn [o personagem de Clint naquele filme] tinha uma atitude de confronto em relação a seu padre, uma coisa quase sádica. Ia à igreja todos os dias para confrontar o padre. Mas Kowalski é uma pessoa que simplesmente não quer ser importunado pela igreja. Não é o crente que sua mulher foi, mas volta para fazer uma confissão e pôr sua vida em ordem.
FOLHA - Você teve que fazer alguma grande mudança no roteiro?
CLINT - Não. O roteiro original estava muito bom. Mudei alguns diálogos e algumas coisas aqui e ali, mas, em geral, o roteiro estava em boa forma. Filmei da maneira como estava.
FOLHA - Alguma cena foi mais difícil de filmar em "Gran Torino"?
CLINT - Toda cena tem seus pequenos obstáculos. O grande desafio foi trabalhar com a cultura hmong, usando pessoas reais, amadoras, sem atores de grande experiência. Mas todo mundo entendeu o projeto e fez um bom trabalho.
FOLHA - Como você os preparou?
CLINT - Eles trabalharam muito por si mesmos. Eu só cuidava da atmosfera das cenas, para que todos entrassem no clima que eu queria. Eles perceberam que, se para mim o resultado estava bom, para eles também.
FOLHA - Thao e Kowalski são, de formas distintas, "outsiders" em suas comunidades. Esse é um elemento de ligação entre os dois?
CLINT - Sem dúvida. Walt tem reticências, mas sente prazer em tutorar o garoto e orientá-lo até o ponto em que ele aprende a ética do trabalho e uma profissão. Walt espera ser uma influência sobre Thao, quer que ele tenha uma vida melhor. Minha intenção sempre foi a de que o filme mantivesse um tom de esperança.
Análise/o diretor Cineasta reencontra a tradição para transformá-la INÁCIO ARAUJO CRÍTICO DA FOLHA Clint Eastwood não esperou até fazer "Bird" para se tornar um bom diretor. A partir dali, apenas tornou-se mais fácil dissociá-los das figuras do caubói rústico e do policial violento que o haviam tornado famoso.
É verdade que, naquele momento, final dos anos 80, deixam de existir os tateamentos estilísticos dos primeiros anos: Clint adotará então uma linha classicizante, em contraste com vários de seus filmes iniciais (como "O Estranho Sem Nome"), em que o estilo ainda parecia dependente ora de Sergio Leone, pela estilização, ora de Don Siegel, pela franqueza.
Desde ali, no entanto, alguns elementos temáticos surgiam: a presença da morte como referência quase obrigatória, o aspecto sadomasoquista da violência. É aos poucos, na medida em que amadurece, que seus filmes passam a expressar uma preocupação mais marcada com o passado, com aquilo que o tempo representa como perda e dor. É algo que o belíssimo "Bronco Billy" (1980) já anuncia, ao colocar em cena a figura do cowboy deslocado no mundo contemporâneo.
Clint é um dos raros diretores que aprecia, em suas entrevistas, referir seu apego aos filmes clássicos a que assistiu. Não faz isso para agradar aos interlocutores. É com eles, efetivamente, que se dá seu diálogo. Mas não se trata de voltar no tempo, nostalgicamente. Trata-se de reencontrar uma tradição para transformá-la. Assim, em "Os Imperdoáveis", provavelmente seu melhor filme, o herói já não é o caubói, mas o fantasma do caubói: não o tipo heroico construído pelos velhos faroestes, mas um bando de velhacos, bêbados, boçais.
Se o filme clássico é o território da crença, nossa era é a da descrença, da dúvida. O presente precisa se alimentar do passado se quiser crescer, nos lembram os filhos caretas de "As Pontes de Madison". Mas o movimento é pendular: num momento posterior, o velho, o passado, necessita do novo para persistir ("Menina de Ouro"), para não se decompor.
Os filmes de guerra de Clint remetem -mais pela visão do que pelo estilo- a um autor que não costuma citar: Samuel Fuller. Talvez porque Fuller seja um moderno, como Siegel, que toca os problemas de frente. Dizia Fuller que na guerra o único heroísmo consiste em sobreviver, algo que Clint retoma com frequência.
De certa forma, veremos todas essas questões retornarem em "Gran Torino", filme em que a irreversibilidade do tempo é posta de maneira dramática. Assim, o notável "duelo final" baseia-se numa expectativa: a do retorno à ativa do velho cauboí do "western spaghetti". Veremos como Clint faz passado e presente se fundirem com mão de mestre.
Análise/o ator Encarnar o mesmo papel é parte do sistema SÉRGIO RIZZO CRÍTICO DA FOLHA "E le não é um ator, de modo que dificilmente alguém poderia chamá-lo de mau ator", atirou a crítica Pauline Kael (1919-2001), da "New Yorker", em frase recolhida por Jeffrey Ryder para a biografia precoce "Clint Eastwood", de 1987.
A maldade de Kael se baseia na ideia de que atores de cinema precisam ser avaliados como atores de teatro: seus "recursos dramáticos" devem permitir que interpretem personagens muito diferentes e que façam o espectador se esquecer de que há um ator diante dele, levando-o a acreditar piamente que se trata mesmo de alguém com aquelas características.
Em cinema, porém, a mecânica da interpretação muitas vezes se dá de outra maneira. Bresson (1901-1999), por exemplo, referia-se a atores como modelos; Hitchcock (1899-1980) não os chamava dessa forma, mas os tratava assim.
Como ator, Clint pertence a uma linhagem que Kael conhecia muito bem: a de figuras como Clark Gable e John Wayne, que também foram criticados por não terem os tais "recursos" e, filme após filme, darem a impressão de fazerem o mesmo papel, o deles mesmos.
Todo o "star system" -o "sistema das estrelas", que balizou a indústria cinematográfica dos EUA- se baseia no princípio do reconhecimento imediato de um ator pelo público, o que facilita a identificação e gera a idolatria. Ninguém na Warner dos anos 70 e 80, por exemplo, seria maluco de reclamar de Clint. Foi por encarnar sempre homens autossuficientes, às vezes mensageiros da justiça divina, em geral como caubói ou policial, que ele se manteve na lista dos "dez mais" rentáveis durante cerca de 20 anos.
Nesse período, foi diversas vezes o primeiro do ranking e se notabilizou como o maior fenômeno de vendas na primeira era do videocassete nos EUA. Se fosse o "ator" que Kael desejava, talvez estragasse tudo.
"Kurosawa teve grande influência sobre mim" Clint afirma que o apreço pelo diretor japonês o levou a atuar em "Por um Punhado de Dólares"
EDITOR-ASSISTENTE DA ILUSTRADA
"Se não gostasse de Kurosawa, minha vida teria sido muito diferente." Neste segundo trecho da entrevista, Clint Eastwood volta no tempo e conta que decidiu fazer "Por um Punhado de Dólares" por saber que o longa era inspirado em "Yojimbo", filme sobre samurai mercenário, do japonês Akira Kurosawa, de quem era fã.
Afirma ainda que "Os Imperdoáveis" foi uma virada em sua carreira, reclama dos "brinquedos" digitais de Hollywood e crava: "A história é o rei". (LEONARDO CRUZ)
FOLHA - Qual o papel de Sergio Leone e Don Siegel em sua carreira?
CLINT - Os dois foram muito importantes. Sergio estava fazendo uma experiência importante, um diretor europeu, italiano, trabalhando com um gênero americano e fazendo faroestes muito estilizados, operísticos. E a forma corajosa como ele fazia esses filmes me serviu de base. Com Don Siegel era um outro tipo de diretor, um contador de histórias urbano. Aprendi muito com os dois. E também com diretores com quem nunca trabalhei, vendo seus filmes ao longo da vida.
FOLHA - Por exemplo?
CLINT - John Ford. Quando eu estava crescendo, ele era uma enorme influência para todo mundo. Howard Hawks também, além de [Frank] Capra e [Alfred] Hitchcock. Esses eram os que eu mais acompanhava.
FOLHA - E fora dos EUA?
CLINT - Sempre fui um grande fã de Akira Kurosawa. Foi esse apreço que me fez atuar em "Um Punhado de Dólares". Só fui filmar com Sergio Leone porque sabia que ele estava fazendo uma refilmagem de "Yojimbo", um dos grandes filmes de Kurosawa. Mesmo sem nunca ter trabalhado com ele, Kurosawa teve grande influência na minha vida, pelo fato de que gostava demais de seus filmes.
Se eu não gostasse, provavelmente não teria feito "Por um Punhado de Dólares" e minha vida teria sido muito diferente.
FOLHA - Então, você deve sua carreira a Kurosawa?
CLINT - Sim, sim [risos].
FOLHA - Nos anos 60 e 70, você fez muitos filmes de gênero -faroestes e policiais. Os anos 80, com longas como "Bird", foram uma transição?
CLINT - De certa forma, sim. É verdade que nos anos 70 eu já dirigia, fiz filmes como "Josey Wales, o Fora-da-Lei". Mas foi nos anos 80 que meu trabalho como diretor tomou uma forma mais definida. Uma espécie de preparação para os anos 90, quando comecei a filmar meus melhores trabalhos, a começar por "Os Imperdoáveis", em 1992, e depois com filmes como "Um Mundo Perfeito" e "As Pontes de Madison".
FOLHA - "Os Imperdoáveis" foi um ponto de virada?
CLINT - Sim, sem dúvida.
FOLHA - O sucesso como ator permitiu que você abrisse a Malpaso, sua produtora, já nos anos 70. Quando decidiu que queria dirigir?
CLINT - Sempre quis dirigir. Decidi no fim dos anos 60 e, no início dos 70, já estava filmando.
FOLHA - Então sempre preferiu dirigir a atuar?
CLINT - Sim. Como diretor, tenho liberdade para contar as histórias que quero. E não preciso ficar na frente das câmeras o tempo todo e ser acusado de má atuação [risos].
FOLHA - Acha que teria se firmado como diretor sem a Malpaso?
CLINT - Provavelmente, não. Sempre me interessei pelos bons argumentos, em vez de só fazer o trabalho pelo dinheiro e seguir em frente. Mas nem sempre os estúdios estão interessados nas melhores histórias, ou nas histórias que considero mais interessantes. Por isso a Malpaso foi fundamental.
FOLHA - Fazer cinema hoje é mais difícil do que no passado?
CLINT - Não creio. Acho que o cinema está bem e sempre esteve bem. O cinema nunca enfrentou uma grande crise. Nem econômica nem de criatividade, pois sempre houve público interessado em ver filmes e artistas interessados em criá-los. Mas, hoje, o que atrapalha o cinema às vezes são os "brinquedos". E por "brinquedos" eu me refiro à enorme habilidade atual de criar grandes efeitos especiais. Isso pode ser uma ótima ferramenta, mas às vezes esses "brinquedos" se tornam a coisa mais importante de um filme, deixando a história de lado. É um erro. A história é o principal, a história é o rei.
FOLHA - Você tem atuado cada vez menos nos últimos anos. Perdeu o interesse pela atuação ou faltam bons personagens mais velhos?
CLINT - É um pouco das duas coisas. Não sei quantos bons papéis para caras com 78 anos ainda aparecerão no futuro. Mas, se alguma boa história aparecer, com um bom personagem, eu o farei. Só não estou procurando papéis. Sinto muito prazer em dirigir os filmes e assistir à atuação dos outros.
FOLHA - Você já dirigiu quase 30 filmes e atuou em mais de 50. Tem um favorito?
CLINT - Ai, Deus... Não sei.
FOLHA - "Os Imperdoáveis"?
CLINT - Certamente é um deles. Mas gosto muito dos mais recentes, "Sobre Meninos e Lobos", "Menina de Ouro", "A Troca", "Gran Torino". Mas não tenho um grande favorito.
Talvez em alguns anos eu consiga olhar para trás e escolher um deles. Hoje é difícil demais. Mas "Os Imperdoáveis" certamente estaria no topo da lista.
FOLHA - Como ex-prefeito de Carmel, como vê a política dos EUA?
CLINT - Precisamos de bons políticos. Espero que o presidente Obama vire um deles, mas é cedo para saber, porque só o que sabemos dele é o que vimos na eleição. E campanha é só conversa. Mas estou otimista.
FOLHA - Seu próximo filme, "The Human Factor", é sobre um episódio da presidência de Nelson Mandela na África do Sul em 1995. É uma coincidência fazê-lo agora, quando há um presidente negro nos EUA?
CLINT - Não foi programado. Faria "The Human Factor" antes, mas resolvi adiá-lo ao ler o roteiro de "Gran Torino". O fato é que sempre fui grande admirador de Mandela, acho a trajetória dele admirável, e ele fez coisas fantásticas para a reunificação da África do Sul. Coisas que espero de Obama faça nos EUA a partir de agora.