quarta-feira, fevereiro 25, 2009

Um panorâma sobre Shakespeare, autor que será estudado pelos alunos do atual quinto semestre. Leiam que trata-se de um bom trabalho, do escritor Voltaire Schiling.

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Shakespeare e o seu tempo

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Shakespeare
Escolhido pelo ingleses como a personalidade do milênio, sabe-se porém muito pouco sobre a vida de William Shakespeare. Descrever as circunstâncias gerais da época em que ele viveu não explica o seu gênio, mas ajuda a entender o motivo de certos temas que ele abordou.

O artista e as suas circunstâncias


"A fim de imaginarmos, de forma aproximadamente precisa, determinada pessoa, temos antes de mais nada de estudas a sua época, fase em que podemos até mesmo ignorá-la, para depois, a ele retornando, encontrar o maior agrado na sua contemplação."
Goethe em carta a Zelter, 1828

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Isabel I, a rainha herética
O cenário histórico em que viveu Shakespeare foi inteiramente dominado pela forte presença da polêmica personalidade de Isabel I (1558-1603), chamada pelo povo de Good Queen Bess. Ela reinou na Inglaterra por longos 45 anos. Nesse quase meio século, em suas questões domésticas, o trono de Isabel não só foi ameaçado por vários complôs e atentados, como também enfrentou, vindo de fora, sérios desafios à sua sobrevivência como reino. O reino foi palco de vários conflitos religiosos e teológicos que separavam os católicos (papistas), os calvinistas (puritanos) e os que seguiam a religião oficial (anglicanos).

A execução de Mary Stuart

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Mary Stuart, executada pela prima
Num dos mais escandalosos affairs daquele época, os que faziam oposição à política pró-protestante da rainha Isabel (que apoiou o levante dos Países Baixos contra o domínio católico espanhol em 1572), conspiraram para que a sua prima Mary Stuart da Escócia a sucedesse. Naquela época, Mary encontrava-se aprisionada na própria Inglaterra, onde viera buscar abrigo depois de ter sido apontada como suspeita no assassinato do seu marido, Lord Darnley. Os conspiradores católicos, se bem sucedidos, queriam que ela ascendesse ao trono da prima herética, envolvendo-a numa confusa e perigosa correspondência. Descoberta a trama, a bela Mary Stuart foi decapitada em 1587, tornando-se uma mártir do catolicismo.

A excomunhão de Isabel

A execução de um rainha católica em mãos de uma governante considerada herética, como era o caso de Isabel (filha de Henrique VIII com Ana Bolena), soou como uma declaração de guerra. O que motivou o papa Pio V a lançar a Bula da Excomunhão autorizando a qualquer católico participar da deposição e até da morte de Isabel, se tal fosse possível . Desde então, o reino passou a conviver com a constante ameaça de uma invasão da parte da Espanha, a maior potência católica do mundo e senhora de um império onde "o Sol nunca se punha." Para realizar tal intento, visando esmagar aquela ilha que abrigava a heresia, Felipe II, o rei espanhol, organizou em 1588 uma poderosa expedição naval-militar.

A invencível armada

A então chamada "invencível armada" tinha a missão de ir ocupar a Inglaterra. A enorme operação naval fracassou devido a uma série de tormentas que desbarataram boa parte da esquadra, e, claro, à bravura dos marinheiros ingleses, liderados por Francis Drake, que conseguiram abordar e destruir as naus dos invasores espanhóis que restaram. Curiosamente, enquanto Cervantes na Espanha arrecadava recursos para prover a grande esquadra, Shakespeare em Londres, provavelmente na mesma época, recolhia material para suas peças patrióticas.

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O Desastre da Armada, 1588

Shakespeare registrou esse extraordinário acontecimento que salvou o país de uma ocupação estrangeira na peça Cimbelino (ato III, cena 1): "lembrai-vos... das resistências naturais que vossa ilha oferece, verdadeiro jardim de Netuno, eriçada, estacada com rochas inacessíveis, vagas bramindo, bancos de areia que, em vez de sustentarem os navios inimigos, os engoliriam até os mastros... um desastre, o primeiro que jamais o atingiu, repeliu das nossas costas, duas vezes vencido, e os seus navios, simples joguetes dos nossos terríveis mares, sacudidos pelas ondas, esmagaram-se facilmente como casacas contra os nossos rochedos."


A abdicação de Ricardo II:
o rei das dores
Após liderar um bem-sucedido levante contra o rei Ricardo II, seu primo Bolingbroke recebe a coroa real, depois da abdicação pública do rei deposto. Entra o rei caído com um grupo de oficiais levando a coroa.

Rei Ricardo: Ai! Por que me vejo obrigado a comparecer ante um rei antes de haver sacudidos os pensamentos reais pelos quais eu reinava? Apenas aprendi a insinuar-me, adular, inclinar-me e dobrar os membros. Daí tempo para o meu pesar, para eu instruir-me nesta submissão. Não obstante recordo perfeitamente os traços destes homens. Não me pertenciam? Não me saudavam gritando: "Salve?" Assim fazia Judas com Cristo. Mas ele entre doze homens não encontrou mais do que só falso; eu, entre doze mil, não acho um só fiel. Deus salve o rei! Ninguém contestará: Amém? Devo ser ao mesmo tempo sacerdote e acólito? Pois bem: amém. Deus salve o rei, ainda que já não seja!

York: Para cumprir de bom grado o que a fadigas da majestade te fizeram oferecer: a resignação do teu poder e da tua coroa a favor de Henrique Bolingbroke.

Rei Ricardo: Dai-me a coroa. Tomai-la aqui, primo, deste lado minha mão, do outra a vossa. Esta coroa de ouro assemelha-se agora a um poço profundo, no qual se encontram alternativamente dois recipientes: no alto como que sempre bailando no ar, o que está vazio; o outro, abaixo, invisível e enchido de água; sou eu o recipiente que se encontra embaixo, transbordando em lágrimas; bebo minhas dores enquanto vós ascendeis ao alto.

Bolingbroke: Acreditas que renuncias voluntariamente à coroa?

Rei Ricardo: A minha coroa sim, mas minhas dores serão sempre minhas. Podeis despojar-me do meu poder e das minhas dignidades, mas não das minhas dores: delas sempre serei rei.

(o rei Ricardo II, Ato IV, cena única)

A conspiração da pólvora

Outra tentativa mal-sucedida de derrubar o regime naquela época foi a chamada Conspiração da Pólvora (Gunpowder plot), quando, liderados por Robert Catesby, um grupo de militantes católicos, entre os quais se encontrava o pouco conhecido Guy Fawkes, tentou explodir o Parlamento. O seu plano era colocar 32 barris de pólvora no porão do grande prédio para detoná-los no dia em que o rei Jaime I e sua corte estivessem presentes. Os conspiradores foram detidos no dia cinco de novembro de 1605, bem antes de consumarem o seu infeliz intento. Tão impopular foi tal tentativa que até hoje a data da captura de Fawkes é feriado na Inglaterra, celebrando-se a sacralidade e a intocabilidade do Parlamento como representante máximo da vontade do povo.

A situação material da Inglaterra isabelina

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Torre de Londres, prisão do Estado
A Inglaterra do século XVI era um país pobre. Boa parte da aristocracia feudal havia sido dizimada na Guerra das Duas Rosas, entre as famílias Lancaster e York, que se estendeu de 1455 a 1 485, quando Henrique VII, Tudor, ascendeu ao trono, pondo fim à guerra civil. O outro acontecimento espetacular deu-se com a ruptura da monarquia inglesa com a Igreja Católica, quando o rei Henrique VIII, invocando razões de Estado, quis divorciar-se da rainha Catarina de Aragão. Como o papa não deu seu consentimento, o rei proclamou-se - por meio da Ata da Supremacia , em 1534 - soberano também sobre a religião, lançando as bases do anglicanismo. Nos anos seguintes, todos os mosteiros são suprimidos e suas propriedades vendidas à nobreza e à burguesia.

O fechamento das terras

Havia muita miséria pelos campos e pelas cidades inglesas. Uma das razões disso era a espoliativa política das enclousures, o cercamento das terras coletiva e sua apropriação por criadores de ovelhas (o próprio Shakespeare envolveu-se num problema dessa ordem quando retornou para Stratford-on-Avon), situação socialmente dolorosa, já denunciada por Thomas Morus na sua obra Utopia, de 1516. Conforme a indústria lanífera crescia nos Países Baixos, os campos ingleses passaram a dar mais espaço para ampliar as pastagens a fim de facilitar a criação de carneiros para exportar a lã.

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A dura lei da época (enforcamento coletivo)
Nobres poderosos e a gentry rural agiram brutalmente para expulsar os camponeses e aldeões das terras comuns, fazendo com que um verdadeiro mar de mendigos viesse dar com seus pobres costados nas cidades, especialmente Londres, que chegou a ter 150 mil habitantes na época de Shakespeare, fazendo com que se tornasse uma das maiores conglomerados humanos daqueles tempos. O fenômeno da crescente miserabilidade teve seus efeitos no endurecimento das leis penais, intolerantes e marcadamente punitivas que começaram a ser adotadas nos tempos de Henrique VIII, o pai de Isabel, merecendo elas, muitos anos depois, da parte de Karl Marx, um dos mais pungentes capítulos de O Capital(vol. I, cap. XXIV, 3).


Outros grandes nomes
Isso, porém, não impediu o país de conhecer um dos maiores momentos da sua expressão cultural. Chamam o período isabelino de a Era Dourada, porque naquele século viveram Christopher Marlowe (autor do Doutor Fausto), Ben Jonson ,John Lyly, Robert Greene, Thomas Nashe, George Chapman, John Marston. John Fletcher, Francis Beaumont, e o filósofo Francis Bacon,
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C.Marlowe, autor do Dr.Fausto
o qual alguns atribuíram equivocadamente ser o verdadeiro autor das obras de Shakespeare. Provavelmente aquela junção de ameaça externa movida pelo poderoso império espanhol, somada às sisões religiosas entre as várias facções do cristianismo, criaram um clima efervescente favorável à imaginação, estimulando-os a todos os tipos de criação. Como disse certa vez o doutor Johnson : "é a possibilidade de ser-se enforcado que faz com que as idéias se concentrem."

A cosmografia de Shakespeare

William Shakespeare, nascido na pequena cidadezinha de Stratford-on-Avon, nas proximidades de Londres, em 23 de abril de 1564, é unanimemente consagrado como um dos maiores nomes das letras universais. Apesar disso, sabe-se muito pouco a respeito da sua vida, causando até hoje pasmo em todo os seus admiradores o fato de um jovem ter saído de uma cidadezinha do interior da Inglaterra, sem que se saiba nada sobre sua formação, ter conseguido amealhar um cabedal tão extraordinários de conhecimentos e ter conseguido penetrado tão profundamente na psicologia humana.

Harold Bloom, o mais atualmente conhecido crítico norte-americano, coloca-o em primeiro lugar no seu cânone dos autores mais importantes do Ocidente, enquanto Otto Maria Carpeaux considerou-o "o maior poeta dos tempos modernos e - salvo as limitações do nosso juízo crítico - de todos os tempos." Parecer idêntico, aliás, ao de Ben Jonson, amigo de Shakespeare:

"...Confesso que teu escritos são tais, que nem homem nem musa podem abarcá-los suficientemente...Alma do século! Aplauso, delícia, assombro da nossa cena!... És um monumento sem tumba, e viverás enquanto viver teu livro e haja inteligências para lê-lo e elogios a tributá-lo... Triunfa Bretanha minha, pois tem um a oferecer, a quem todas as cenas da Europa irão render homenagem!... Que ele não é de um século, senão de todos os tempos...; doce cisne de Avon!...

O sucesso

Shakespeare foi um daqueles grandes escritores que conseguiu não apenas levar aos palcos a sua época, mas fazer com que elas se imortalizasse. A razão do sucesso dele são os traços marcantes dos seus personagens - rigorosamente individualizados - e o caráter universal e perene dos seus temas. Hamlet, Ricardo III, Lear, Polônio, Falsfat, Ofélia, Macbeth
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Casal de nobres num jogo de cartas
e sua terrível rainha, o ciumento Otelo, a bela e fiel Desdêmona e o invejoso Iago, tornaram-se conhecidos por todos. As suas tragédias, em grandeza e perenidade, assemelham-se aos clássicos da Ática antiga, a um Sófocles ou a um Eurípides. Porém, ao contrário daqueles autores célebres que o antecederam, ele não limitou-se apenas em reproduzir os dramas das gentes da corte, a sorte dos reis e dos seus próximos.





A riqueza temática
Em suas peças encontra-se de tudo. Não só uma imensa diversidade de tipos humanos, (reis, rainhas, príncipes, cortesãos, ministros, bufões, soldados, estalajadeiros, mulheres do povo, mercenários, comerciantes, atores, padres, escroques, mágicos, ...), como a mais variadas situações existenciais e as mais diferentes classes sociais. Como homem do Renascimento, Shakespeare desprezou as fronteiras nacionais. Os seus dramas ocorrem na Dinamarca, nas cidades italianas, na Grécia e na Roma antigas, e até numa ilha do Novo Mundo. Pode-se compará-lo, de certo modo, a Giordano Bruno ou Galileu, descobridores de uma nova maneira de ver o cosmo. Só que o cosmo de Shakespeare foi criado com as letras, com as palavras, um cosmo inteiramente humano.

Do Avon ao Tâmisa

Deixando a mulher e os filhos em Stratford-on-Avon, Shakespeare chegou a Londres provavelmente em 1584-5, com mais ou menos 20 anos, tudo indicando que logo seguiu carreira artística. Supõe-se que tenha se introduzido no teatro como ator e ao mesmo tempo como adaptador de peças, em geral de autores bem mais antigos. Estima-se que foi assim que ele dominou a literatura clássica e as técnicas da encenação. A primeira peça que escreveu foi aos 26 anos de idade, sendo que a sua primeira obra-prima (Romeu e Julieta) só surgiu quando ele atingiu os 32 anos de idade. Em 1599, Shakespeare participou da inauguração do teatro popular The Globe e, em 1608, de um outro, mais reservado, chamado Blackfriars Theatre.
reprodução (gravura da época)
O palco do Globe
De resto levou uma vida de homem de teatro, alternando as apresentações com a freqüência às tabernas, percorrendo as ruas e logradouros de Londres atrás de escritos ou de conversas que lhe servissem de inspiração. Eventualmente acompanhava o seu grupo em excursões pelo interior ou em apresentações perante uma ou outra platéia de nobres rurais, levando esse tipo de vida por uns trinta anos até que, razoavelmente abonado, retirou-se para uma honrosa aposentadoria.

A publicação da obra

Infelizmente, no tempo em que viveu, ser um autor teatral não era considerada uma profissão ilustre. Apesar de Shakespeare ter-se tornado um bem-sucedido homem de negócios e um excelente empreendedor, tudo indica que ele não se importava muito com o que escrevia. Ou pelo menos não tinha consciência do seu valor. Tanto é assim que quando morreu no seu lugarejo de nascença, em 1616 (dizem que depois de uma bebedeira na companhia de Ben Johnson, que o visitava), não havia se dado ao trabalho de juntar seus escritos numa obra só. Deixou-os dispersos. Dois de seus amigos, os atores John Hemige e Henry Condell, felizmente recolheram quase tudo que estava espalhado e publicaram o primeiro in-fólio, em 1623. A interrogação que resta a fazer sobre a atitude de Shakespeare a respeito da sua obra é se ele minimizou a importância dos seus escritos a ponto de desconsiderá-los ou se realmente jamais teve um lampejo sequer sobre a importância extraordinária que ela iria ter no futuro.



O teatro de Shakespeare

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O palco e o público do The Globe
O século XVI na Inglaterra, na época do reinado de Isabel, falecida em 1603, foi o momento de ouro da dramaturgia britânica, inteiramente dominada pela personalidade artística e pelo gênio criativo de Shakespeare, exercido por ele e por seus companheiros da Companhia do Camarlengo na sua sede à beira do Rio Tâmisa, o Globe Theatre.

A construção de um teatro

Shakespeare e a Companhia do Camarlengo (mais tarde chamada The King's men) construíram um teatro - o Globe Theatre - na margem esquerda do Rio Tâmisa, no chamado Bankside, logo após a Ponte da Torre de Londres, em 1599. As sessões só ocorriam durante a temporada de verão, pois o local não era coberto. Também as suspendiam quando havia algum surto de peste, o que ocorria freqüentemente. Aliás há estudos que mostram como as temporadas e por conseqüência as peças que o bardo escrevia eram, por assim dizer, condicionadas pelos surtos pestíferos que assolavam a capital inglesa com impressionante regularidade. Então, para ganhar a vida a companhia, partindo de Londres, fazia uma turnê pelo interior. Aliás, no Hamlet (ato III, cena II), Shakespeare faz referência a esse tipo de apresentação itinerante, de teatro ambulante mostrando a chegada de um grupo de atores ao Castelo de Elsenor para uma encenação na Corte, fazendo com que a atuação deles, ainda que indiretamente, fosse decisiva na elucidação do crime que vitimou o pai do príncipe.

Forma e dimensão:

O Globe, fazendo juz ao nome, tinha a forma de um círculo - "Wooden O" - com um grande pátio interno onde cabiam de 500 a 600 pessoas que assistiam o espetáculo a preços módicos. As arquibancadas estavam divididas em três andares erguidos ao redor do palco e acolhiam os mais aquinhoados. Calcula-se que comportava mais 1.500 espectadores, perfazendo uns dois mil ao todo nos dias de casa lotada. Sua dimensão alcançava 92 metros e tinha dez de altura. O primeiro Globe não durou muito, pois foi devorado por um incêndio em 1613, três anos antes da morte de Shakespeare, durante a encenação de Henrique VIII, quando uma fagulha do canhão saltou sobre o telhado de palha. Imagina-se que Shakespeare, já retirado para Stratford-on-Avon aposentado, deveria ter voltado para auxiliar na recuperação do prédio.

fechamento dos teatros

Em 1642, com o início da Revolução Puritana - que terminou decapitando o rei Carlos I, em 1649 - todas as casas de espetáculo foram fechadas. Os puritanos não aceitavam as representações teatrais, considerando-as pecaminosas ou heréticas. Até a morte de Cromwell em 1658, nada mais foi visto em Londres ou na Inglaterra. Somente com a restauração monárquica, com a volta dos Stuart ao poder em 1661, o rei Carlos II, determinou-se a reabertura dos espetáculos. Eles haviam ficado fechados por quase vinte anos! Mas o Globe não gozou por muito tempo a liberdade recém-conquistada, pois em 1666 um devastador incêndio arrasou com a cidade inteira, incinerando junto o belo teatro que Shakespeare ajudara à construir.

A reconstrução recente do Globe


O Globe inteiramente restaurado
Somente em agosto de 1996 concluiu-se a reconstrução do The Globe graças ao esforço de americano Sam Wanamaker, que, desde os anos de 1970, mobilizou amplos setores da sociedade e do empresariado londrino, obtendo os recursos para o seu reerguimento mais ou menos no mesmo local do antigo teatro, com o nome Globe Shakespeare Theatre. Passaram-se 330 anos desde sua última apresentação. Dessa forma, o espírito do bardo retorna às margens do Tâmisa, cujas águas serviram como uma interminável fonte de inspiração à sua imortal grandeza, dando vida ao corpo do novo teatro.




Estreeou no Brasil o filme CORALINE, baseado em livro do Neil Gaiman. O filme conta com um criativo uso da tecnologia 3D que tem retornado aos cinemas recentemente.

Confiram a crítica do editor do site Cinema em Cena, Pablo Villaça.

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As crianças gostam de sentir medo. Não o medo provocado por uma tempestade barulhenta durante a noite ou aquele que surge quando se perdem dos pais, mas sim o que nasce de uma história bem contada que envolve personagens enfrentando perigos tenebrosos e mortais. Não é à toa que muitas das melhores e mais longevas fábulas infantis são também as mais assustadoras: a bruxa prendia João e Maria para assá-los; o Lobo Mau devorava a Vovó; Pinóquio era transformado em burro e seu “pai”, engolido por uma baleia; Alice era condenada à decapitação pela Rainha de Copas. E Coraline, claro, corre o risco de ter seus olhos arrancados e substituídos por botões.



Esta, aliás, é apenas uma das ameaças enfrentadas pela protagonista deste Coraline e o Mundo Secreto, adaptado por Henry Selick a partir do livro de Neil Gaiman (sim, o Neil Gaiman), já que desde o início da projeção o espectador é surpreendido por seqüências marcantes – como, por exemplo, aquela que traz uma boneca de pano tendo a boca e a barriga rasgadas por uma mão esquelética que, depois de retalhá-la impiedosamente, a reconstrói com um rosto semelhante ao da personagem-título (que, claro, ainda não foi apresentada). E o que dizer da cena em que um garoto que comete o erro de exibir uma expressão triste é punido pela vilã ao ter sua boca costurada num sorriso forçado?



Mas creio que estou fazendo o filme soar violento demais para o público infantil quando, na realidade, Selick alcança um belo e delicado equilíbrio ao contar sua história de maneira a provocar arrepios sem, com isso, traumatizar seus jovens espectadores. E acreditem: não havia outra maneira de narrar a aventura de Coraline (Fanning), uma garota que, depois de se mudar com os pais para outra cidade, sente-se solitária por não ter com quem conversar ou brincar, já que o Pai (Hodgman) e a Mãe (Hatcher) passam todo o tempo trabalhando em um manual de jardinagem. Certa noite, porém, Coraline encontra uma passagem secreta que a leva a uma versão alternativa de seu mundo; um lugar no qual sua Mãe é carinhosa e presente e seu Pai toca piano e a leva para passear numa geringonça voadora. Além disso, até os vizinhos se mostram mais divertidos nesta outra dimensão que passa a ser visitada pela garota com freqüência cada vez maior. É então que sua Outra Mãe explica que, para se mudar definitivamente para aquele mundo, Coraline deverá permitir que um par de botões seja costurado no lugar de seus olhos.



Responsável pelo inesquecível O Estranho Mundo de Jack (que muitos atribuem erroneamente a Tim Burton, que concebeu seu argumento e produziu o projeto), Henry Selick demonstra, aqui, ter mantido sua preferência por narrativas sombrias que, aqui e ali, investem num surpreendente humor negro – embora, a bem da verdade, Coraline e o Mundo Secreto se preocupe bem menos em fazer rir do que aquele longa de 1993. Adotando um ritmo mais calmo ao construir cuidadosamente sua história, o cineasta investe numa atmosfera mergulhada em melancolia que se reflete também na evocativa trilha sonora composta pelo francês Bruno Coulais e na tristeza constante de seus personagens. Aliás, o próprio design de seu “elenco” ilustra sua natureza soturna, desde as profundas olheiras da Mãe até a pele acinzentada e os olhos arroxeados do Pai. Da mesma forma, as ex-vedetes que moram no andar de baixo exibem, em seus físicos corpulentos e acabados, a decadência de suas vidas (e esperem até ver os seios colossais da Srta. Spink), ao passo que o Sr. Bobinsky, por mais que tente se manter em forma, mal consegue ocultar sua barriga proeminente por baixo das roupas sujas e desgastadas. Isto, é claro, serve como contraste das cópias “alternativas” dos personagens, quando a Mãe surge bem mais conservada; o pai, corado; e os corpanzis das ex-vedetes se revelam como meras carcaças que envolvem versões magras e jovens das mulheres.



Realizado através da encantadora técnica do stop-motion, Coraline não traz movimentos tão fluidos como aqueles vistos em A Noiva-Cadáver ou mesmo em A Batalha dos Vegetais: aqui, a animação revela um flickering (“tremor”) bem mais acentuado que, em certos momentos, chega a dar a impressão de câmera lenta – algo que apenas aumenta o charme da produção. Já a montagem investe em transições elegantes que refletem a inventividade da narrativa, como no instante em que a personagem-título encosta a cabeça no chão, perto de um poço, e subitamente é vista dentro de casa, olhando pela janela para a chuva que cai lá fora. Enquanto isso, a fotografia de Pete Kozachik contrapõe a paleta dessaturada, sem vida, do mundo “real” e os tons mais quentes com cores mais fortes do universo concebido pela Outra Mãe. Para finalizar, o design de produção merece elogios não só por sua inventividade, mas também por ajudar a estabelecer um clima de sonhos (ou pesadelo) ao freqüentemente contrastar os amplos espaços internos (o picadeiro de circo, o teatro) com seus exteriores claramente incompatíveis.



Remetendo principalmente a Alice no País das Maravilhas (a heroína tem até sua própria versão do Gato de Cheshire), Coraline e o Mundo Secreto é rico o bastante, do ponto de vista temático, para permitir até mesmo leituras freudianas de sua narrativa, já que o mundo alternativo visitado pela protagonista pode ser facilmente interpretado como uma projeção de seu inconsciente (neste caso, a Outra Mãe seria o superego?). Mas, mesmo que nos limitemos a admirá-lo como uma sombria história para crianças (se bem que todas elas são repletas de simbolismos), o filme de Henry Selick já é suficientemente fascinante para merecer uma forte e inequívoca recomendação.



Observação: Após os créditos finais, há um breve plano que revela um detalhe dos bastidores da produção.



Observação 2 (em 18/02/09): A versão em 3D do longa é envolvente e não abusa dos planos criados apenas para que algo salte da tela, optando, em vez disso, por utilizar os efeitos de maneira orgânica e inteligente.