quinta-feira, abril 17, 2008

Gato pingado



CRIADOR DE FRITZ, THE CAT, O AMERICANO ROBERT CRUMB COMENTA A VIDA RECLUSA QUE LEVA NO INTERIOR DA FRANÇA E FALA DE DROGAS E DE SUA REINVENÇÃO DO GÊNESE
IKER SEISDEDOS


O anúncio de que já passou da hora do jantar encontra Robert Crumb, nome lendário dos quadrinhos underground, sentado, muito atento, murmurando uma melodia e balançando-se com as mãos nos joelhos. Já faz uns 30 segundos que o alto-falante monofônico cospe a sujeira acumulada durante 80 anos nos sulcos da belíssima canção "Lost Child", gravada pelos irmãos Stripling no Estado do Alabama, nos rurais anos 1920. Qualquer pessoa que saiba algo sobre Crumb já imaginará que a canção, que ele próprio escolheu com suas mãos recém-lavadas entre sua coleção de 5.000 discos raros de 78 rpms, terá que terminar antes que o mundo moderno possa continuar seu caminho. Se dependesse dele, o resto da vida poderia ser passada assim: ao lado do velho amplificador de válvulas. Absorto na música e soltando frases como: "A morte me preocupa menos do que me preocupava antigamente. Agora que a vejo de perto, não encontro razões para passar o dia me lamentando, me sentindo infeliz ou aflito". Algo assim só poderia estar acontecendo em Crumbland, uma casa de pedra situada à margem do rio, com sete pisos abarrotados de coisas belas e tendo como única concessão à tecnologia uma máquina Xerox arcaica. Colinas e vinhedosDe suas janelas, se tem uma vista de Sauve e dos vinhedos que cercam esse povoado medieval agarrado às colinas da região francesa do Languedoc Roussillon, como um dos personagens mirrados de Crumb se agarraria ao corpo de uma mulherona. Foi para cá que o universo Crumb completo se mudou em 1990, vindo da Califórnia. Os discos, as canetas hidrográficas Rapidograph e os míticos personagens: o gato Fritz, Mr. Natural, o enxerido Flakey Foont e as muito reais Aline Kominsky, sua mulher, e Sophie, filha e desenhista, como seu pai e sua mãe. Além de, é claro, o próprio Robert Crumb (nascido na Filadélfia, em 1943), que, graças a seus quadrinhos autobiográficos, se tornou um dos arquétipos mais conhecidos da HQ mundial. E um dos mais inacessíveis. Há o Crumb pervertido sexual, o Mr. Sixties, herói e flagelo da contracultura, e o neurótico de família disfuncional que Terry Zwigoff retratou num documentário perturbador. O inimigo das feministas, "o desenhista mais amado da América", a inspiração de sucessos do cinema independente, como "Anti-Herói Americano", e o velho amargurado que, perto do final de "R. Crumb -Handbook" (R. Crumb - Manual, MQ Publications, 440 págs., 15 libras, R$ 51, Reino Unido), escreve: "Minha própria condição consiste em odiar o que sou". Vida undergroundSão sua mulher, Aline, e o fiel amigo e co-autor do livro, Peter Poplaski, outro expatriado americano, artista por profissão, que recebem o convidado. Crumb detesta qualquer encontro marcado para falar de temas pessoais previamente pautados (ou seja, qualquer entrevista). E não é brincadeira: circulam em Sauve histórias sobre jornalistas vindos de Los Angeles que voltaram para o lugar de onde tinham vindo depois de três dias de tentativas infrutíferas de aproximação. Na sexta-feira passada, tive sorte. Perto do final da tarde, Crumb não achou má idéia jantar com o grupo depois de um dia passado trabalhando sobre sua mais recente e ambiciosa obra, uma HQ sobre o "Gênese", e de lhe ser informado, por Aline, que o jornalista parecia "um ser humano decente". Vendo-o aparecer, percebe-se que a imagem legendária de ermitão não é uma pose falsa. Crumb é um tímido rematado que se encurva, magro, se esconde atrás dos óculos e tem ar de quem conheceu mais pessoas do que teria desejado. Mais tarde, à mesa de um restaurante vietnamita da cidadezinha vizinha, ele explica: "Não vejo que interesse há em falar comigo. É muito melhor falar com Aline. Me perguntam: "Por que vocês se mudaram para a França?". E eu digo: "Não sei. Aline, por que o fizemos?'". Em sua condição de notária de tudo o que diz respeito a Crumb, Aline já me fizera um "relatório" à tarde no estúdio de seu marido, uma sala diabolicamente organizada, de paredes forradas de quadros, capas de discos de blues e bonecos alienígenas. Durante cerca de quatro horas, Aline e Peter Poplaski tinham repassado a vida de Crumb. Desde sua infância na Filadélfia, como filho do meio de cinco irmãos, filhos de um fuzileiro naval e de uma "maluca", até o surgimento em San Francisco, no final dos anos 1960, dos quadrinhos underground, gênero do qual Crumb se erigiria em expoente maior, "convertendo-se em alguém em quem, de repente, as mulheres prestavam atenção". "Predestinados"De como seus desenhos são tremendamente valorizados num mercado de arte que Crumb e sua mulher desprezam ("fechamos um pacto com o diabo para ganhar uma fortuna", admite Aline), até a razão pela qual Robert coleciona apenas discos lançados entre 1926 e 1932. Desde o candidato em quem ele pensa apoiar nas próximas eleições americanas (democrata, ainda não se decidiu por Hillary ou Obama) até o dia em que Aline conheceu Robert. "Alguém me disse "você precisa conhecê-lo -parece um de seus personagens'", recorda Aline. "Apesar de ele ter mulher e namorada, parecíamos predestinados. Ele pôs meu sobrenome, Kominsky, numa garota, em um de seus gibis, antes de nos conhecermos." O tempo não fez mais que acentuar a semelhança entre ela e os sonhos de Crumb: essas mulheres grandes, de músculos torneados e bíceps avantajados que Robert sempre procurou obsessivamente. Inclusive hoje, quando Aline se aproxima dos 60 anos e, na região em que vivem, é mais conhecida como professora de ginástica e pilates do que como artista. Marido e mulherNa época, ela também desenhava quadrinhos underground. E sentia o mesmo impulso biográfico que Crumb para escancarar suas intimidades, como em pouco tempo ficou claro com um volume ao qual deram o título de "Dirty Laundry" (Roupa Suja, 1976). Com ele, inaugurou-se um gênero em que cada um se representava, por seu lado, em vinhetas baseadas em fatos reais (vinhetas essas que ainda são publicadas regularmente na "New Yorker"). "Não há muito o que fazer com relação a nossa falta de vergonha", admite Aline. "É como dizer ao mundo: sou asqueroso, horrível, faço coisas censuráveis... Você ainda me quer?" Depois de mais de 30 anos de sinceridade absoluta, Robert e Aline Crumb, me diz em sua voz grave Aline, fabulosa contadora de histórias, "ainda nos fazemos rir um ao outro" e ainda se tratam de maneira tão afetuosa quanto brincalhona. "Me diga, Robert", pergunta Aline durante o jantar, "o LSD afetou seu traço nos anos 1960?". "Sim, é claro", ele responde. "Tomei umas 15 vezes, depois desisti. Primeiro deixei as anfetaminas, depois o ácido, os baseados, o álcool e, finalmente, a América." A voz de Crumb se movimenta em freqüências baixas, entre ironias e encolhimentos dos ombros. "A razão pela qual odeio dar entrevistas é que deixo tudo sair e fico vazio", ele tinha dito, antes de revelar as entrelinhas do contrato firmado para seu projeto mais recente, uma recriação literal do livro bíblico do "Gênese". "Me ofereceram US$ 200 mil [cerca de R$ 341 mil], que pareciam uma dinheirama. Três anos de trabalhos forçados depois, já não parece tanto dinheiro assim." Crumb já tem prontas cerca de 120 páginas em que recria passagens bíblicas com um grau de detalhes nunca antes visto em sua obra. Para isso, todos os dias ele deixa sua casa para ir a um estúdio nas proximidades, cuja localização até mesmo seus amigos desconhecem. Encerra-se ali e passa horas desenhando. Diz que precisa ficar recluso para concluir sua "obra mais ambiciosa". Num esconderijo que, depois de muito procurar, encontrou na propriedade de uma cidadã inglesa da região. ReviravoltasNuma reviravolta mais própria de Paul Auster [romancista norte-americano], descobriu-se que a proprietária da casa fizera seu doutorado em Oxford sobre o "Gênese" e se chamava Arabella Crumb (o casal a conheceu porque ela freqüentemente recebia a correspondência deles por engano). "Acho que o resultado não vai agradar a ninguém", diz o autor. "Os judeus vão odiar que dei um rosto a Deus; os cristãos, que as pessoas saiam transando e coisas desse tipo." O casal Crumb espera que dessa controvérsia plausível saia um sucesso editorial que lhes permita compensá-los pelo negócio que deveria ter sido e nunca foi a edição inglesa de "R. Crumb - Manual". Fruto de meses de conversas entre Poplaski e Crumb, o livro foi editado em 2005 por "alguns amigos" e lançado com grande mobilização da mídia. Poplaski e os Crumb fizeram uma turnê promocional sem precedentes à qual um jornal inglês dedicou dezenas de páginas. As críticas foram excelentes, e a estilista Stella McCartney organizou grandes festas de lançamento em Londres e Nova York, cidade em que, diante de uma biblioteca pública lotada de pessoas, Crumb teve um diálogo com o respeitado crítico de arte Robert Hughes (que freqüentemente compara seu xará a artistas da estatura de Bruege, o pintor flamengo do século 16). Depois de tudo isso (que Crumb concordou em fazer com a boa vontade com que um vegetariano devoraria um javali), os editores se declararam falidos. E desapareceram. "Não nos pagaram nem sequer o adiantamento", explica o co-autor Poplaski. "Acreditamos que venderam 120 mil exemplares, o que é um recorde para um livro de Robert." Será preciso esperar até outro dia para obter uma declaração irada do desenhista sobre esse assunto. Ele sempre parece ter outras coisas na cabeça. Ou será a mesma o tempo todo? Quando a noite chega ao fim, o mundo parece aliar-se para gerar um episódio inequivocamente crumbiano. No fundo de uns copinhos de saquê, aparece a imagem ousada de uma asiática nua. Diante da qual Robert exclama: "Opa! Desta aqui se vê o matagal todo!".
Este texto foi publicado no "El País". Tradução de Clara Allain
ONDE ENCOMENDAR - Livros em inglês podem ser encomendados pelo site http://www.waterstones.com/

terça-feira, abril 15, 2008

Manipulação de um massacre


Tema do novo filme de Andrzej Wajda, o assassinato de 20 mil poloneses por Stálin foi objeto de interesses político-ideológicos

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

Em abril de 1943, no curso da Segunda Guerra, quando ocupava a Polônia e parte da União Soviética, o Exército alemão encontrou na floresta de Katyn, em território russo, uma fossa de grandes proporções. Nela, haviam sido lançados os corpos de mais de 20 mil poloneses. Era mais um massacre entre os muitos perpetrados durante o conflito, mas este tinha características específicas: os autores da chacina não tinham sido os nazistas, e, sim, os comunistas russos. O ministro de Propaganda do Terceiro Reich, Joseph Goebbels, tratou de explorar a fundo a descoberta macabra, como exemplo do que se transformaria o mundo se os soviéticos ganhassem a guerra, martelando o tema no rádio, nos jornais e em cartazes distribuídos em países da Europa. As vítimas do massacre, praticado em abril de 1940, eram, em sua maioria, oficiais do Exército polonês -um grande contingente composto não só de oficiais de carreira como de engenheiros, advogados, professores universitários, jornalistas, convocados para combater a invasão do leste da Polônia pela União Soviética, em setembro de 1939, e capturados pelos russos, como prisioneiros de guerra. As mortes foram consumadas metodicamente, em regra com um tiro na nuca, disparado por pistolas de marca alemã, o que pode indicar o propósito de falsear a autoria dos assassinatos. Como se comprovou fartamente bem mais tarde, o massacre contou com a chancela de Stálin, por proposta de Laurent Beria, ministro do Interior e chefe da polícia secreta soviética, a NKVD. A operação teve por objetivo liqüidar uma parte expressiva da elite polonesa, na certeza de que aquele país, cujos conflitos com a Rússia ocorriam ao longo da história, ficaria alijada de seus setores sociais mais ativos, na eventual luta por uma Polônia independente. Naquele mesmo ano de 1943, quando a fossa foi encontrada, as forças soviéticas recuperaram a região onde se situa Katyn e desarmaram a arma propagandística de Goebbels -neste caso, verdadeira-, montando uma operação para denunciar os alemães como responsáveis por mais um massacre dentre tantos outros por eles praticados. Essa manipulação contou com o beneplácito da Inglaterra e dos EUA, ambos aliados da União Soviética na luta contra o nazifascismo. O primeiro-ministro britânico Winston Churchill assegurou aos soviéticos que iria se opor vigorosamente a qualquer investigação em território alemão por parte da Cruz Vermelha Internacional, pois ela resultaria em uma fraude e suas conclusões beirariam o terrorismo. Nos EUA, em 1944, o presidente Franklin Roosevelt solicitou a um comandante da Marinha, George Earle, seu emissário nos Balcãs, uma investigação sobre o caso. Quando Earle concluiu que os soviéticos eram, de fato, os responsáveis pelo massacre, Roosevelt suprimiu o relatório, embora dizendo-se convencido, entre quatro paredes, de que os culpados eram os alemães (a respeito de todo o episódio, o leitor poderá consultar o bem documentado texto "Katyn Massacre" em http://en.wikipedia.org/wiki/Katyn_massacre). No mundo ocidental, o reconhecimento de que o massacre de Katyn foi um crime do stalinismo se deu no contexto da Guerra Fria, a partir de revelações no Congresso dos EUA. Mas, no Leste Europeu, a verdade durou muito tempo para chegar aos olhos do grande público. Na Polônia comunista, Katyn foi um episódio borrado da história, na medida em que qualquer referência a ele correria o risco de abrir uma perigosa controvérsia. Na União Soviética, o reconhecimento da responsabilidade dos então dirigentes do país só ocorreu em 1990, no governo de Gorbatchev, mas, mesmo assim, com ressalvas. O massacre não foi reconhecido como genocídio ou crime de guerra e nunca se desvendou quem foram seus responsáveis diretos. Hoje, há uma extensa bibliografia sobre o episódio e o veterano cineasta polonês Andrzej Wajda a ele dedicou um filme, com o título singelo e expressivo de "Katyn" (2007). O tema o toca diretamente, pois seu pai foi um dos oficiais poloneses vítimas do massacre. O filme foi lançado na Polônia em uma cerimônia que contou com a presença de intelectuais e de muitas autoridades, tendo grande repercussão popular. O massacre de Katyn é um duro e excelente exemplo de como visões maniqueístas dificultam a compreensão histórica. Convém, porém, não confundir visões maniqueístas com um aparente objetivismo, em que o historiador se situaria como observador neutro, diante dos acontecimentos históricos. A Segunda Guerra pôs frente a frente duas forças, num combate literalmente mortal não apenas pelo número de mortos, na maioria civis, como pelo fato de que a vitória do nazifascismo representaria a morte da civilização. Mas, ao mesmo tempo, episódios como os de Katyn revelam que os países democráticos não estavam isentos de perpetrar atos condenáveis. Pecados maiores, como o bombardeio de Dresden, a bomba de Hiroshima e pecados comparativamente menores, como seu comportamento no caso de Katyn, tratando de encobrir o crime soviético, em nome da realpolitik.

domingo, abril 13, 2008

Globo vai produzir conteúdo para celular





A Globo começará até o final do ano a produzir conteúdo para telefones celulares. A rede avalia que haverá uma "explosão" nas vendas de telefones receptores de TV digital, a serem lançados nos próximos meses.

A expectativa é baseada em pesquisa, feita em São Paulo, que mostrou que 80% do público estaria disposto a comprar celulares receptores de TV.
Para Octavio Florisbal, diretor-geral da Globo, a emissora precisa o quanto antes produzir conteúdo específico para celulares e miniTVs digitais.
Florisbal aposta em um conteúdo de curta duração, porque o telespectador de celular e miniTV não terá muito tempo para se dedicar ao aparelho, pois estará em trânsito.
Inicialmente, a Globo planeja produzir programetes dirigidos a esse público, mas exibidos nos intervalos da programação convencional _portanto, acessíveis por todos os telespectadores. Seriam boletins noticiosos e "pílulas" de programação, entre a "Sessão da Tarde" e a novela das seis, para quem está voltando para casa.
A programação para celulares será inicialmente nos intervalos da convencional porque a legislação não permite que uma rede transmita um sinal para telefones e outro, diferente, para televisores fixos, embora isso seja possível tecnicamente.
"No futuro, se a legislação permitir, podemos fazer para os celulares programação totalmente diferente", diz Florisbal.

Reencontro com Nelson

Antunes Filho volta ao dramaturgo com "Senhora dos Afogados", peça que considera uma "tragédia da esterilidade"

Fernando Donasci/Folha Imagem
Ensaio de 'Senhora dos Afogados' com direção de Antunes Filho


VALMIR SANTOS
DA REPORTAGEM LOCAL

Nos anos 90 ou nesta década, era comum deparar com Antunes Filho ensaiando ou dirigindo tragédias gregas. Fincou pé na possibilidade de um ator brasileiro capaz de trazer à luz Eurípides ou Sófocles sem os estereótipos da representação do gênero, a começar pela voz.
Ao retornar agora a Nelson Rodrigues (1912-1980), quase 20 anos depois, ele monta um dos mais potencialmente trágicos textos da dramaturgia nacional, "Senhora dos Afogados", lançada em 1947.
"Aqui, a tragédia grega pode até ser um antimodelo para mim: acho que encontrei o equilíbrio entre um drama que às vezes beira o trágico, mas se permite as estocadas de humor.
O Nelson Rodrigues tem um pouco o espírito de porco, ele vai e cutuca, mas, se bobear, vira dramalhão", diz o diretor do Centro de Pesquisa Teatral, que fica no Sesc Consolação, em São Paulo. É no teatro anexo àquele prédio, o Sesc Anchieta, que o CPT e o grupo Macunaíma estréiam amanhã um dos espetáculos mais aguardados do ano. Antunes, 78, está entre os criadores que ajudaram a desconstruir as convenções pornográficas ou melodramáticas em torno da obra do autor, principalmente no período dos anos 80. Já assinou cinco espetáculos, de 1965 a 1989, incluindo adaptações.
Apesar da bagagem, diz que encontrou mais dificuldades para "navegar" no seu novo Nelson -metáfora pertinente à sedução das águas na peça, "mar que não devolve os corpos e onde os mortos não bóiam", como diz uma das personagens.

Pai e filha
Dificuldades não só estéticas, mas conceituais. Fica entusiasmado ao partilhar lampejo que experimentou no processo com a equipe de "Senhora dos Afogados". "É a tragédia da esterilidade", afirma.
Ou seja, o percurso da mulher que assassina as irmãs pela ambição de ser a filha única -e mulher de seu pai, já que empurra o próprio noivo para a mãe, que também morre- tem como desfecho a impotência.
Misael, o pai, morre no colo de Moema, a filha. Ela evita acariciar o corpo. "As mãos dela não têm mais utilidade. Matou tudo e todos para ter e não teve, não conseguiu, falhou", diz Antunes.
Segundo ele, essa atmosfera lembra o espanhol Federico García Lorca em "Yerma", que dirigiu em 1962, no TBC. "Ao contrários das personagens gregas, em "Senhora dos Afogados" não há a dimensão do sofrimento perpétuo. Morreu, acabou. É mixo, é brasileiro. É a tragédia brasileira."
Essa dimensão também alcança o coro de vizinhos que testemunha e, às vezes, interage com os sofrimentos da família Drummond no casarão à beira-mar. Do cais, ouvem-se o lamento e a reza das prostitutas. Ao inconsciente coletivo (Jung) com o qual lida há tempos, o diretor conjuga o inconsciente estruturalista (Lacan) em busca do que acredita síntese tupiniquim dessas "figuras espectrais".

"Viração"
"Os personagens do coro são capachos, o brasileiro sufocado pela sociedade patriarcal, hipócrita. O coro não tem a nobreza, ele está se virando, não teve vez. É o pessoal da "viração", que desabafa contando piadas, tirando um sarro do sapato do outro ou quebrando um telefone público quando ninguém está vendo", ilustra o diretor.
"Os vizinhos e as mulheres do cais são versões modernas das Erínias, deusas da vingança e do castigo, que nas tragédias gregas atormentavam os protagonistas. Mas são versões degradadas, que nada têm de sobrenatural", diz a pesquisadora Leyla Perrone-Moisés no programa da peça.
O projeto artístico de Antunes quer falar de civilização brasileira. "Não adianta melhorarmos o nível econômico se não tivermos um nível cultural bom. Vira pão e circo", afirma.
"Estou com o saco cheio de ter Pelés. Não pode ter um ali, outro lá, tem que ser todos, tem que dar uma assistência social e uma assistência cultural a todos", diz.
Como artista, ele se diz "sufocado, desesperado com a sociedade de consumo". E a ação social que Antunes diz almejar, a partir do que constata, é por meio da arte. Ainda neste ano, gostaria de ministrar o curso "O Olho do Espectador", dois dias de encontro, com três horas cada um, no qual falaria aos participantes sobre o trabalho do ator e do encenador, para início de conversa. "O diretor massacra a platéia.
Eu já massacrei, com imagens, com sons, os atores gritando. Isso anestesia o público. Queria mostrar o que é um ator bom, o que é um ator estereotipado."


SENHORA DOS AFOGADOS
Quando:
estréia amanhã; sex. e sáb., às 21h, e dom., às 19h; até 27/7
Onde: teatro Sesc Anchieta (r. Dr. Vila Nova, 245, tel. 0/xx/11/3234-3000)
Quanto: R$ 5 a R$ 20