sexta-feira, outubro 03, 2008

“Encarnação do Demônio”



“Mas é filme nacional, hein !? Do Zé do Caixão!”, foi com essa frase num tom desencorajador que uma das atendentes de uma grande rede de cinema brasileira nos recebeu para assistir o tão aguardado filme de José Mojica Marins, “Encarnação do Demônio”, o filme que fecha a trilogia iniciada em 1964 com “À Meia-Noite Levarei sua Alma” e “Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver” de 1967.

O filme traz um Zé do Caixão 40 anos mais velho do que vimos no começo da trilogia. Por essa razão também, muito do público que consiste no público de cinema de horror atual rejeita a obra da lenda cinematográfica brasileira. O público médio de Mojica consiste em jovens que viram o personagem em aparições em eventos e programas de televisão, sempre caracterizado e com seu discurso datado e que só é levado a sério por si próprio. Grande parte desse público provavelmente nunca nem assistiu algum filme do cineasta.

Para trazer o personagem de volta ao interesse do público, Mojica contou com a colaboração de Dennison Ramalho (autor de “Amor Só de Mãe”, cultuado curta-metragem de horror), Paulo Sacramento (famoso montador de “Cidade de Deus”) e os conhecidos irmãos Gullane. O desafio de Mojica era fazer com que seu personagem fosse interessante dentro desse novo cenário de filmes de horror que vem arrastando jovens sedentos por violência para dentro do cinema, como “Jogos Mortais” e “O Albergue”.

A duvida era se Mojica iria ser condicionado a apenas a aparecer no filme ou se suas características próprias iriam continuar viva na sua obra, e é isso que vemos na tela de cinema ao assistir o filme. Apesar de competentes efeitos visuais, a linguagem do personagem ainda está lá, intacta e facilmente notada pelo publico, principal motivo para as pessoas continuarem qualificando o cineasta como trash, rótulo que o próprio descarta veemente.

O filme mostra Josefel Zanatas em busca da mulher superior que ira dar vida ao seu filho perfeito, após ficar preso durante 40 anos. Para isso conta com ajuda de Bruno e de outros quatro seguidores que o acompanhariam até a morte. Encontra no meio do caminho um padre (Milhem Cortaz) que busca vingança pela morte de seu pai e dois policiais irmãos, um deles vivido por Jece Valadão, não mais entre nós, que tentam impedir Josefel de conquistar seu objetivo. O roteiro apesar de falho em partes de sua narrativa, é ágil dentro de sua busca principal, e conta também com boas tiradas nos diálogos. Destaque também para a atuação de Adriano Stuart e das velhas ciganas cegas Helena Ignez e Débora Muniz.

Porem o principal trunfo do filme é a fotografia de José Roberto Eliezer, sempre marcante e condutora da narrativa de Mojica, brilhante nos momentos onde vemos os personagens mortos por Zé do Caixão nos dois primeiros filmes, em preto e branco. O filme ainda conta com a presença de Alexandre Herchcovitch (como um dos travestis e também vestindo o protagonista, as noivas e a “morte”), Zé Celso na absurda cena do purgatório e também a de um fã-sósia americano que veio para o Brasil para gravar a cena onde Zé do Caixão (ainda jovem) mata um padre com uma cruz e cega um dos policias, cena que foi censurada na época da ditadura.

As cenas de violência estão lá como todos imaginávamos, mas elas não são lançadas de um jeito fetichista que estamos acostumados em ver nas obras de Eli Roth (O Albergue) ou em “Jogos Mortais”, são cenas que compõe um pesadelo criado pelo próprio personagem e não pelo simples motivo voyeur criado pelos ângulos da câmera. Cenas onde mulheres saem de dentro de um porco, se afogam no sangue e também em baratas ajudam a tirar o fetichismo em cima da obra.

“Encarnação do Demônio” é sem duvidas um ponto positivo para o cinema nacional, é um filme que será facilmente lembrado no futuro por sua qualidade técnica e também por trazer de volta uma das lendas (mesmo que malvisto na maioria das vezes) do cinema brasileiro para as telas. Que essa não seja obra única na nossa escassa cinematografia.


Kauê Klomfahs Marin Maria

As garras do mestre


As garras do mestre


A força que as imagens de José Mojica Marins apresentam não deriva de uma técnica ou de uma estratégia; ela se impõe por uma intuição cinemato-gráfica que a escola não ensina


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Depois de décadas, José Mojica Marins termina um filme. Traz de volta o formidável personagem de Zé do Caixão. Nenhum declínio nos poderes criadores do cineasta. Ao contrário, eles se confirmam, renovados. Fazem de “Encarnação do Demônio” não apenas sua melhor obra até agora como uma criação excepcional dentro do cinema brasileiro. A força impressionante que suas imagens apresentam não deriva de uma técnica ou de uma estratégia. Ela se impõe por uma intuição cinematográfica que a escola não ensina.

O novo filme mostra que Mojica não tem nada de um primitivo, como se costuma classificá-lo. Primitivo, nesse caso, é um álibi indulgente, que permite o sorriso e o olhar desdenhoso do espectador esnobe. Mojica nunca fez cinema com regras acadêmicas: ele sempre inventou as suas próprias, em que expõe seu universo atormentado. No início de sua carreira, a técnica era rude, mas ele transformava as limitações em qualidades. Era obrigado a inventar soluções inéditas que se encadeavam, expressivas. Agora, domina, tecnicamente, mas não se acomoda nunca a qualquer convenção. Diante das produções anêmicas próprias à assim chamada “renascença do cinema brasileiro”, cheia de bons moços e filmes bonitinhos, “Encarnação do Demônio” se abate com fúria criadora e esmaga tudo.

Do começo ao fim, em cada instante, o filme tem um poder de verdade. Verdade, em arte, não quer dizer verossimilhança nem realismo. Quer dizer expressão convicta e convincente. As situações e personagens, absurdos, em “Encarnação do Demônio”, passam a palpitar com uma vida que só os artistas mais altos conseguem obter.

Sanha
Seria impossível, para qualquer outro, sustentar ao longo do filme aquela fala de bicho-papão que passou a fazer parte do personagem Zé do Caixão. Mojica, no entanto, evita a caricatura e impõe ao público fascinado suas criaturas estrambóticas. Elas podem ser absurdas, como um monge que parece saído de algum folhetim gótico escrito há um século, mas que se afirma com grandeza misteriosa.

Quando esse monge surge em meio às delícias masoquistas de uma surpreendente autoflagelação, compreende-se de imediato que o cinema de Mojica não admite a banalidade e que por trás dos clichês há um mundo. Os policiais militares são os inimigos. Mostram-se como agentes do mal, piores que tudo. No entanto em vários personagens o maniqueísmo é evitado. O próprio Zé do Caixão é equívoco, movido por forças contraditórias, em nada esquemático. Há também um sentido social latente, sobretudo na ambientação violenta de uma favela.

Molho
Zé do Caixão virou um ser atormentado. Tem visões horripilantes; uma delas é o José Celso Martinez Corrêa. Mas tem também lembranças, e é uma delícia ver como Mojica incorpora trechos de seus filmes antigos do modo mais natural e necessário. Reciclar o velho: astúcia freqüente e econômica do cineasta, habituado a orçamentos insignificantes, que se torna legítima forma cinematográfica.