segunda-feira, maio 05, 2008

O devorador de sonhos


Com palavrões e diálogos irônicos, diretor americano representou personagens marginais e o vale-tudo do capitalismo
MARIA SILVIA BETTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

David Mamet é relativamente pouco conhecido no Brasil, e é provável que o seja mais pelos roteiros que escreveu para o cinema do que por sua extensa produção dramatúrgica.
Certamente filmes como "The Postman Always Rings Twice" (O Destino Bate à Porta, 1981), "The Verdict" (O Veredito, 1982), "House of Games" (Jogo de Emoções, 1987), "The Untouchables" (Os Intocáveis, 1987), "Homicide" (Homicídio, 1991) e "Glengarry Glen Ross" (Sucesso a Qualquer Preço, 1992) são mais familiares ao público brasileiro do que as peças de sua autoria encenadas no Brasil: "Sexual Perversity in Chicago" (Perversidade Sexual em Chicago), "A Life in Theater" (Avesso) e "Edmond". Nascido em Chicago em 1947, Mamet pertence a uma geração que atingiu a maturidade na década de 1970, quando os sonhos libertários da década anterior já se encontravam solapados pela indústria do consumo.
Em suas peças, a representação do individualismo cínico e do vale-tudo competitivo do capitalismo financeiro ganham forma sincopada e compacta em diálogos irônicos, de frases elípticas e entrecortadas, repletas de palavrões e de coloquialismos urbanos.
Pinter e Beckett
Muitas de suas personagens pertencem a camadas sociais excluídas de qualquer possibilidade de atingir o sucesso financeiro alardeado pelo sistema dominante. Outras ligam-se precisamente a setores cruciais desse sistema, como a indústria cinematográfica, o mercado imobiliário, o mundo dos negócios e a universidade.
Mamet foi sempre um admirador confesso de Harold Pinter e de Samuel Beckett, e o vigor crítico de sua dramaturgia decorre, em grande parte, do uso substantivo da palavra e da urdidura dos diálogos: mais do que "falar sobre" este ou aquele tema ou idéia, as falas em suas peças efetivamente "são" algo, já que é em seu próprio funcionamento e mecanismos que se materializam as estratégias de pensamento e os jogos de poder postos em foco.
Mudança radical
Em 1975, o sucesso de "American Buffalo" na Broadway fez de Mamet uma personalidade em ascensão. Ao longo da década seguinte, ele viria a consolidar uma carreira múltipla como dramaturgo e contista. É romancista, roteirista, diretor cinematográfico e ensaísta, além de ministrar concorridas oficinas de dramaturgia dirigidas a jovens criadores em formação.
O artigo de Mamet que o Mais! publica nesta edição causou impacto nos meios teatrais e jornalísticos e perplexidade generalizada: auto-assumido filho dos anos 60, autor de algumas das mais inequívocas e contundentes obras de expressão crítica à ideologia dominante norte-americana, ele vem ali a público declarar que mudou radicalmente de opinião e comentar a guinada que acaba de dar rumo a um pensamento de direita.
Partindo de uma analogia entre seu próprio caso com a mudança drástica de opinião por parte de John Maynard Keynes e de Norman Mailer, Mamet passa a tecer observações de um cinismo tão rascante que o efeito produzido chega a ficar paradoxalmente próximo ao do efeito de estranhamento.
Trata-se, sem dúvida, de algo digno de nota para um dramaturgo que se caracterizou sempre por lançar mão do recurso contrário, ou seja, de um aparente, ilusório e muitas vezes mal compreendido (hiper) naturalismo.
Todos os que conhecem a contundência crítica de "Sucesso a Qualquer Preço" [leia trecho abaixo], para ficar apenas na referência mais familiar ao público brasileiro, acharão desconcertantes as declarações do artigo não apenas pelo teor, mas também pela forma abrupta e pública com que Mamet fez questão de torná-las inequivocamente oficiais em plena época de campanha para a sucessão presidencial.
Diante desse contexto, o paralelo entre Bush e John Kennedy ou entre a esquerda e a direita norte-americanas corre o risco de soar mais como insolência autoral do que como estratégia argumentativa ou provocação crítica. O raciocínio se coloca perigosamente sobre uma fina lâmina que separa de forma propositalmente precária os termos equiparados.
Para aqueles que têm alguma familiaridade com as opiniões que Mamet defendeu em grande parte de sua carreira, as idéias defendidas no artigo tornam irreconhecíveis as opiniões de outros momentos.
De 1988, por exemplo, em plena efervescência capitalista da América de Ronald Reagan: "A América se encontra em um estado deplorável. Estamos num período muito difícil. Nossa cultura acabou de desmoronar e vai se extinguir antes que alguma outra coisa ocupe o seu lugar.
Portanto, quer se diga teatro norte-americano ou produção de carros ou padrão de vida norte-americano, tudo isso está no mesmo barco. O teatro não é um aspecto separado de nossa civilização. Ele é parte da nação".
Se é verdade que a grande circulação de Mamet nos meios midiáticos fez dele alguém com grande visibilidade pública, também é verdade que essa visibilidade não se sobrepõe aos próprios trabalhos do autor e à materialidade de sua substância artística.
O poder expressivo da criação artística não se limita às intenções ou determinações autorais, pois conta com expedientes mais eficazes de representação e pensamento que os inerentes ao campo da crítica.
Se o conteúdo do artigo nos coloca em alerta diante do rumo a ser tomado pelos próximos trabalhos de Mamet, ele não deixa de nos fazer lembrar também que, no estágio atual de uma sociedade como a norte-americana, colocar os pingos nos is pode ser uma corajosa opção, com todas as armadilhas que eventualmente envolva: o país, seus valores e sua cultura não são "uma sala de aula", mas um "mercado".
Frieza cínica
O "e, no entanto" perturbador estigmatiza grande parte dos percursos de luta e resistência apoiados na estratégia pura e simples do confronto.
Estará Mamet fazendo uso do mesmo recurso que emprega em suas peças, e expondo, na frieza cínica de seu artigo, as operações de pensamento praticadas no campo da ideologia dominante?
Responder a essa pergunta é certamente menos importante do que constatar, com todo o justificável mal-estar que causam suas formulações, que muito temos a refletir e a aprender, política e dramaturgicamente, com a leitura e a encenação de seus trabalhos.

MARIA SILVIA BETTI é professora de literatura inglesa na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.