quinta-feira, abril 24, 2008

Vade retro, Roma!

Gérard Dépardieu como Obelix em cena de "Asterix nos Jogos Olímpicos", que custou 78 milhões euros (R$ 206 milhões) e ainda sem data de estréia no Brasil

COM MAIS DE 300 MILHÕES DE ÁLBUNS VENDIDOS EM TODO O MUNDO, ALBERT UDERZO RELEMBRA A PARCERIA COM GOSCINNY, QUE MORREU EM 1977, FALA DA INFLUÊNCIA DE WALT DISNEY E DA INVASÃO DOS MANGÁS

LENEIDE DUARTE-PLONCOLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE PARIS
O mundo inteiro conhece Asterix e o punhado de gauleses da pequena aldeia que resistiu à invasão das tropas romanas de Júlio César. Isso, na história em quadrinhos. Na história real, a que se aprende nos livros, os gauleses foram dominados pelos romanos, apesar da resistência do corajoso chefe Vercingétorix. As aventuras desses heróis gauleses de quadrinhos começaram a ser publicadas em 1959 e renderam fama, fortuna e aventuras reais aos autores, o desenhista Albert Uderzo e o roteirista René Goscinny. Depois de vender 330 milhões de exemplares em cem línguas, ter inspirado 33 álbuns, três filmes com atores, oito desenhos animados, jogos, brinquedos e um parque temático perto de Paris, um dos pais de Asterix, Albert Uderzo (1927) resolveu contar essa história de sucesso em sua autobiografia, que acaba de ser lançada em Paris, "Albert Uderzo Se Raconte..." (Albert Uderzo Fala de Si Mesmo, ed. Stock, 286 págs., 19,50, R$ 51). Ele rememora o difícil começo da dupla, às voltas com outros personagens que não decolaram, até o dia em que tiveram a brilhante idéia de criar uma aldeia de empedernidos gauleses que resistem ao invasor romano, graças à poção mágica do druida Panoramix. Nesta entrevista exclusiva à Folha, Uderzo diz que uma das maiores tristezas de sua vida foi a perda de Goscinny, em 1977, vítima de um ataque cardíaco. Em 1979, Uderzo resolveu lançar o primeiro álbum solo. Em pouco tempo, foram vendidos mais de 2 milhões de exemplares. Depois, escreveu e desenhou sozinho mais oito álbuns. "Ainda vemos alguns críticos dizerem que o humor de Goscinny era insubstituível. É verdade, sou o primeiro a reconhecer, mas, pelas tiragens dos meus álbuns realizados sozinho, só posso me parabenizar por minha decisão, que parecia totalmente absurda, mas foi incentivada pelos leitores que continuaram fiéis", diz.

FOLHA - Na sua autobiografia, uma extraordinária "succes story", o senhor diz que nasceu com seis dedos em cada mão. Além do mais, é daltônico. Era uma predestinação?
ALBERT UDERZO - A predestinação que a pergunta supõe poderia dar a entender que os 12 dedos que eu tinha ao nascer só poderiam ser benéficos para o que se tornou minha vocação. Ora, conheço desenhistas que provaram que o talento não se conta pelo número de dedos e que a única predisposição que se poderia ver aí seria ser exibido num circo como um exemplar excêntrico. Graças a Deus, meus pais não fizeram isso! Quanto ao daltonismo que me distingue dos meus colegas, foi sempre um problema, pois, depois de ter colorido de verde a crina de um cavalo que eu queria fazer marrom, tive que me associar a um colorista.

FOLHA - Antes de vir morar em Paris com seus pais, o senhor habitava em Clichy-sous-Bois, um bairro da periferia de Paris que pegou fogo -sobretudo os automóveis- nos distúrbios de novembro de 2005. Como acompanhou a escalada de violência e os choques entre a polícia e os jovens dessa região?
UDERZO - Dificilmente eu poderia expressar meu espanto e tristeza vendo e lendo o que se passava nessa "banlieue" que conheci tão calma. Ela se tornou "agitada" e hoje serve de contra-exemplo, enquanto no meu tempo as pessoas não sabiam nem localizá-la geograficamente.

FOLHA - Seus ancestrais eram os romanos, já que seus pais vieram da Itália para a França em 1923. Isso é engraçado, pois o sr. e René Goscinny imaginaram uma aldeia que é o último bastião da resistência gaulesa aos romanos. Essa resistência aos romanos era uma metáfora da resistência à dominação de Disney nos desenhos animados e nas histórias em quadrinhos para crianças?
UDERZO - Pode parecer estranho que os dois criadores de um personagem que se pretende ser o protótipo dos franceses sejam ambos, apesar de nascidos na França, de origem estrangeira. Goscinny tinha pais russo-poloneses, e os meus eram italianos. Nada disso! Meu pai era do Vêneto, região do norte da Itália ocupada antes dos romanos por tribos celtas vênetas, logo gaulesas, e das quais uma veio ocupar o oeste da Bretanha criando Darioritum (hoje Vannes). Quanto à resistência gaulesa ser uma metáfora à dominação de Disney, seríamos muito ingratos se tivéssemos pensado nisso pois entramos nessa profissão graças a Walt Disney... Que, aliás, nunca soube disso.

FOLHA - No seu livro, o senhor compara sua dupla com Goscinny a Laurel e Hardy (o gordo e o magro), a dupla genial do cinema mudo. O senhor fala do entendimento perfeito na criação dos personagens e sua tristeza quando seu amigo morreu. Quais eram as principais qualidades de Goscinny?
UDERZO - Nunca me cansarei de falar da formidável osmose que existiu entre nós nos 26 anos da nossa colaboração. René [Goscinny] possuía um humor fora de série no início de nosso trabalho, e eu desenhava narizes fora de série de tão grandes, daí uma certa dificuldade em impor nosso estilo. Sua morte foi uma das grandes tristezas da minha vida. Seu talento e sua amizade me fazem muita falta.

FOLHA - Em seu livro, o sr. faz uma vibrante defesa das histórias em quadrinhos. Diz que ela era acusada de todos os pecados do mundo: incitação à violência, principal causa da delinqüência dos jovens etc. Os pais a vêm de forma diferente hoje? Na França, Tintin [de Hergé] e Asterix teriam sido os responsáveis por essa mudança?
UDERZO - Eis a grande questão : o sucesso de Tintin e de Asterix foi o que trouxe o reconhecimento que se esperava há muito tempo para a história em quadrinho de maneira geral? Se foi assim, me dou parabéns e desejo que isso continue, mesmo se a invasão dos mangas japoneses, ao contrário das séries norte-americanas, perturbe o clima atual.

FOLHA - Asterix é conhecido no mundo inteiro, vocês criaram um personagem que representa a resistência a todos os imperialismos. A empatia que ele desperta vem do fato de representar o oprimido contra o opressor, uma espécie de Davi contra Golias?
UDERZO - Davi contra Golias seria Asterix contra Roma? Pode ser, mas a comparação é sua. Quando o criamos, não podíamos imaginar o interesse que ele despertaria e que suscitaria exegeses para explicar esse sucesso, enquanto seus pobres autores ignorantes só sabiam de uma coisa: as legiões romanas de Júlio César tinham invadido toda a Gália. Os humoristas não têm nenhum pudor, isso todo mundo sabe.

FOLHA - Quando Goscinny morreu, em 1977, a imprensa escreveu que "o pai de Asterix havia morrido". Com o entusiasmo dos leitores, o sr. enfrentou o desafio e escreveu e desenhou o primeiro álbum sozinho, em 1979. Por que era importante continuar essa aventura?
UDERZO - Asterix foi, tanto para René quanto para mim, o sucesso de nossas vidas profissionais. Devemos muito a ele e a morte de meu amigo anunciava para mim, além da tristeza, o fim dessa bela aventura. Então, por que resolvi mudar de idéia e me arriscar à zombaria de alguns? Orgulho, sem dúvida.

FOLHA - O primeiro álbum das aventuras de Asterix, em 1959, teve uma tiragem de 5.500 exemplares. Depois do sucesso, o senhor atingiu tiragens de mais de 1 milhão na França. Até hoje, já foram vendidos 330 milhões dos 33 álbuns, os primeiros feitos com Goscinny e os nove últimos assinados somente pelo senhor. Além disso, o senhor criou o Parque Asterix, em 1989. O senhor se considera o Walt Disney francês?
UDERZO - Nunca tive a pretensão de ser o Walt Disney francês! Alguns que conheço poderiam pretender, não eu. Sei a enorme distância que nos separa, nós, pequenos franceses, desse colosso americano. Mas há uma coisa da qual fiquei orgulhoso e que é uma diferença em relação ao grande Walt e que vou lhe contar. Eu tinha um amigo francês que conhecia o pai de Mickey, que adorava Paris. Esse amigo o recebia com sua mulher e sua filha e, quando passeavam por Paris, os passantes reconheciam Walt Disney e lhe pediam para desenhar um Mickey. Ele, modestamente, lhes dizia que não sabia desenhá-lo, e isso era motivo de surpresa para as pessoas que quase não acreditavam. Pois bem, quando acontece de me reconhecerem na rua -e confesso que isso é muito raro-, posso desenhar um Asterix! É isso.

FOLHA - José Bové, o líder camponês que usa um bigode do tipo gaulês e luta contra os transgênicos, é um herdeiro de Asterix na França atual?
UDERZO - Não tenho opinião sobre as afinidades que possa haver entre Asterix e José Bové, mas li na imprensa que alguém lhe fez essa pergunta, e ele disse que não via nenhuma relação.

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