segunda-feira, junho 05, 2006

A classe sem pudor

Estudo publicado no Reino Unido defende que as classes médias desenvolveram uma "anomia do mercado", caracterizada pela desconfiança e cinismo em relação às leis e aos regulamentos.

Chinês passa diante de bolsa gigante colocada na frente a uma loja, em Xangai.

RICHARD TOMKINS - Folha de S. Paulo


Você está trabalhando até tarde no escritório. Enquanto carrega a impressora com mais papel, lembra de repente que acabou o papel A4 de sua casa. "Bem", você diz a si mesmo, "estou fazendo hora extra sem ganhar nada a mais por isso, então a empresa me deve". Sentindo-se justificado pelo que faz, você retira um pacote de 500 folhas do almoxarifado da empresa, e, aproveitando o ensejo, leva para casa também uma fita adesiva, três esferográficas e um bastão de cola Pritt. É claro que esse é um furto puro e simples. Se você fosse flagrado roubando esses objetos de uma papelaria, a polícia viria prendê-lo. De alguma maneira, porém, a classe média conseguiu convencer-se de que, se ela comete um crime visando seu ganho pessoal, não é a mesma coisa que acontece quando um membro das classes criminosas o faz. Então ela mente, engana e rouba com a consciência tranqüila. Pessoas da classe média fraudam seus impostos, escondendo dinheiro fora do país ou fazendo compras no exterior e escondendo da alfândega o que compraram. Inventam ou exageram perdas para receber dinheiro indevido de seguros. Compram produtos contrabandeados, com plena consciência do fato, e adquirem cópias ilegais de softwares de computador. Roubam toalhas de hotéis e academias de ginástica, fraudam suas despesas custeadas por suas empresas. E se prestam a cometer praticamente qualquer ato desonesto que se possa imaginar para conseguir que seus filhos encontrem vagas nas escolas que desejam para eles. Um estudo conduzido por criminologistas na Universidade Keele constatou que quase dois terços dos britânicos admitiram cometer atos desonestos, tais como deixar de dizer alguma coisa quando recebe troco em excesso, pagar empreiteiros em dinheiro vivo para evitar a cobrança de impostos ou comprar roupas para uma ocasião especial e devolvê-las depois, pedindo um reembolso. Os piores infratores foram pessoas da classe média: 70% dos entrevistados das classes sociais A e B admitiram cometer fraudes e desonestidades no cotidiano, comparados com 53% dos entrevistados das classes D e E. Onde foram parar frases como "a honestidade é a melhor política", "quem engana não prospera", "a virtude é sua própria recompensa" e outros axiomas semelhantes da classe média? Será que a classe média deixou de acreditar neles? Houve época em que as classes médias praticamente se definiam por sua retidão ética, ocupando uma posição moral supostamente elevada, entre as classes trabalhadoras displicentes e a aristocracia degenerada. Afinal, na era vitoriana muitos integrantes da classe média eram membros da vertente protestante dos não-conformistas, cuja origem remontava aos puritanos do século 17. Os códigos morais permeavam todos os aspectos da conduta pessoal -mais evidentemente a sexualidade, que a classe média procurava reprimir ao máximo. Como a limpeza era a virtude mais próxima da divindade, corpos, roupas e casas tinham que estar lavados e escovados sempre. Respeitabilidade As normas de comportamento eram codificadas num sistema complexo de etiqueta e boas maneiras -cotovelos fora da mesa, nada de comer na rua- que tinha por objetivo diferenciar a classe média da ralé. A respeitabilidade era tudo, e as pessoas viviam assombradas pelo medo da vergonha social. Ou, pelo menos, é isso o que nos é dito. Mas as pessoas que pintam esse quadro são sobretudo da classe média. Como observa Helen Haste, professora de psicologia na Universidade Bath: "Mitificar a classe média é algo que a classe média sempre fez muito bem, tanto com relação a seu status presente quanto a seu passado". Na verdade, quando se olha por baixo do verniz superficial da era de ouro da moralidade de classe média, o que emerge é um quadro um pouco diferente. Vemos, por exemplo, uma sociedade que tolerava o trabalho infantil e condições de trabalho medonhas para adultos, e a suposta moral sexual da época era repleta de hipocrisia, conforme deixava claro o número enorme de prostitutas que havia. Quanto à honestidade ser a melhor política, o século 19 foi uma era de ouro não tanto da moral, mas da criminalidade de colarinho branco. A emergência de uma nova economia industrial gerou uma proliferação de empresas de ações conjuntas que não eram obrigadas a publicar prospectos honestos, registrar contas feitas com auditorias ou respeitar a verdade em sua publicidade. Para as classes médias que promoviam e administravam essas empresas, a tentação era grande demais. Elas embarcaram numa orgia de fraudes, malversações de fundos e negociatas. Mas sejamos generosos e suponhamos que, fora do mundo do comércio, a maioria das pessoas de classe média fosse formada por cidadãos-modelo. O que deu errado? Será que o capitalismo de mercado, com sua ênfase na defesa do auto-interesse, nos transformou em pessoas sem escrúpulos, movidas pela cobiça e que só buscam maximizar o próprio ganho? A professora de criminologia na Universidade Keele Susanne Karstedt, chefe do estudo sobre a desonestidade da classe média, aponta para o fato de que a maioria dos crimes da classe média é cometida no mercado e sugere que é ali que se devem buscar as respostas. O "British Journal of Criminology" dedica um número inteiro aos crimes do colarinho branco, e, nessa edição, Karstedt argumenta que, ou em função dos escândalos envolvendo grandes empresas como a Enron ou graças a experiências cotidianas menores que levam as pessoas a se sentirem defraudadas, as pessoas criaram uma síndrome de "anomia do mercado" -que se caracteriza pela desconfiança, insegurança e cinismo em relação às leis e aos regulamentos. "Enquanto no passado os camponeses se revoltavam contra os donos de moinhos que vendiam milho ou farinha de trigo a preços inflacionados, hoje os consumidores se indignam quando sentem que não estão recebendo um produto que vale seu preço, por produtos vendidos sob descrições imprecisas ou por cobranças de taxas ocultas", ela escreve. "Eles inflacionam seus pedidos de ressarcimento de seguradoras como reação contra as regras impressas em letras pequenas ou contra os prêmios de preço exagerado; eles mergulham numa economia de sombras na qual pagam dinheiro vivo para evitar os impostos e as leis da seguridade social." Peter Taylor-Gooby, professor de política social na Universidade de Kent, diz que seria difícil provar que a classe média se tornou menos honesta, porque qualquer mudança nos comportamentos reportados pode simplesmente refletir uma disposição maior em admiti-los. "É provável que as pessoas sempre tenham se comportado de maneira a proteger seus interesses próprios, em resposta a incentivos", diz, citando uma verdade eterna. Apesar disso, ele se indaga se a confiança social é igual ao que foi no passado. "Boa parte da evolução da política pública no presente está ligada à ênfase em motivações e incentivos individualistas, de atores racionais que levam em conta seus interesses próprios", diz ele. "Então, por exemplo, construímos sistemas que oferecem às pessoas incentivos fortes para que alcancem metas específicas, fixadas numa revisão abrangente de gastos, ou desenvolvemos sistemas de mercados internos." Morte da vergonha? Esses sistemas podem funcionar, diz Taylor-Gooby, na medida em que se elevam os padrões de atendimento dos serviços públicos. "Mas a questão é saber se, ao mesmo tempo, estamos criando um clima de idéias próprio de uma sociedade em que as pessoas estão mais voltadas à defesa de seus interesses próprios." Mesmo assim, existem outras explicações possíveis. E se estivermos assistindo à morte da vergonha? Em outras palavras, será que as classes médias deixaram de sentir necessidade de serem escrupulosamente honestas porque deixaram de se importar com a respeitabilidade? Considere-se a incidência cada vez maior de falências pessoais no Reino Unido. Houve época em que a ruína financeira era algo tão vergonhoso que a saída vista como honrosa para um cavalheiro incapacitado de pagar suas dívidas era o suicídio. Hoje, o cavalheiro apenas vai até uma agência de administração de dívidas, assina um acordo de inadimplência e conta a seus amigos como foi tudo muito fácil. "A respeitabilidade foi importante até os anos 1960", diz Haste, professora de psicologia da Universidade de Bath. "Então nos rebelamos. A geração dos "baby-boomers" achava que a pseudo-respeitabilidade, de manter as aparências, era hipocrisia e desenvolveu um código novo para as pessoas expressarem sua posição social." Esse código, diz Haste, tinha tudo a ver com estilo -nas roupas, no design de interiores e no estilo de vida de maneira geral. Mas ele também incluía um novo conjunto de valores relativos a questões como o ambiente, a justiça social e a pobreza mundial. Hoje a classe média pode não se importar tanto com a respeitabilidade no sentido antigo do termo. Mas ela tem novos valores morais que seus pais não possuíam, tais como os valores ecológicos, uma preocupação com os direitos das minorias e a crença na importância da transparência com relação aos sentimentos pessoais. Novos "crimes"Por esse novo código, delitos pequenos cometidos contra empresas ou burocratas sem rosto não são vergonhosos, porque são apenas uma maneira de revidar contra empresas que lucram em excesso ou contra o sistema. Mas não faltam novos "crimes" que a classe média de hoje teria vergonha de ser flagrada cometendo, tais como dirigir um veículo 4x4 pelo centro de Londres, contar piadas racistas ou bater em seus filhos. Assim, conclui Haste, não é preciso temer o aparente declínio da moralidade da classe média. "Existem áreas em que a moralidade hoje tem menos importância que no passado, mas outras em que ela é mais importante. A situação é diferente do passado, mas não representa necessariamente a decadência da civilização ocidental." Além disso, ela acrescenta: "Angustiar-se com o declínio da classe média é uma coisa extremamente classe média".

Este texto foi publicado no "Financial Times". Tradução de Clara Allain.

Olhos nos olhos dos andróides

NELSON ASCHER - Folha de S. Paulo


Os efeitos de "Blade Runner", como sua estética, se tornaram símbolo dos anos 80 .


POUCAS SEMANAS após sua estréia, "Blade Runner - O Caçador de Andróides" (1982) já era o filme mais comentado pelos cinéfilos nacionais daquela época e, alcançado rapidamente o estatuto de "cult movie", continua, até hoje, a ser uma das produções mais discutidas da história do cinema.
"Blade Runner" se popularizou de início (pelo menos em São Paulo) devido antes a espectadores que, após entrarem no cinema sem saber o que os aguardava e esperando uma obra convencional de ficção científica, saíam de lá boquiabertos e o recomendavam, de imediato, aos amigos. Isto, mais que a publicidade ou a crítica em jornais e revistas, é que, fazendo dele o assunto das conversas, garantiu seu sucesso.

Requer hoje em dia certo esforço de memória, recordar que, na virada dos anos 70/80, o cinema americano, desdenhosamente considerado "comercial" então, relegado pelos entendidos de plantão a uma categoria inferior à do "cinema de arte" ou das obras cujos diretores eram famosos e venerados (Buñuel, Fellini, Bergman, Kurosawa), passou por uma transformação revolucionária graças a diversos saltos tecnológicos, à incorporação de novos temas diferentemente abordados e, sobretudo, pela entrada no mercado de outra geração de diretores, roteiristas e atores.

A reunião desses elementos, subitamente materializada numa obra como "Blade Runner", pegou de surpresa inclusive o público bem informado. Fosse apenas isto, porém, não teria se patenteado sua durabilidade ou longevidade. Ocorre que essa foi também a época em que se difundiu o uso do videocassete e ainda era possível alugar cópias importadas do filme, que não apenas sobrevivia a suas diversas repetições caseiras, mas convidava igualmente a ser acompanhado atentamente, com o controle remoto em mão.

Daí que logo se tenha percebido que a criação de Ridley Scott dialogava com um filme anterior, que não havia causado menos sensação: "2001 Uma Odisséia no Espaço". À utopia clara, branca e higiênica de Stanley Kubrick, o diretor mais jovem respondia com uma distopia poluída, chuvosa e escura.

O centro de ambas as tramas era, no entanto, ocupado pelo mesmo tipo de personagem: uma inteligência artificial que, destinada a auxiliar seus criadores humanos, revolta-se contra eles. Embora o gigantesco "cérebro eletrônico" do primeiro retorne, no filme seguinte, sob a forma de organismos vivos, ainda assim é a mesma pergunta que se coloca, a saber: quando é que a mera inteligência, convertendo quantidade em qualidade, se humaniza e adquire vontade própria?
O tema, é claro, remonta ao "Frankenstein" (nome, aliás, do criador, não da criatura) escrito no princípio do século 19 por Mary Shelley, livro que, por seu turno, não deixa de ser a versão moderna, científico-industrial, seja do mito grego de Prometeu, seja da própria história bíblica do homem que, cometendo o pecado original da desobediência, acaba expulso por Deus do Paraíso. Cada andróide do filme é um Adão e um Prometeu, melhor em quase tudo que seu inventor e os demais humanos de verdade, mas revoltados por terem sido condenados a uma vida tão curta que faz a humana se assemelhar à imortalidade.
Os efeitos especiais de "Blade Runner", assim como toda sua estética visual, bastante criticada na época por parecer "publicitária", não foram menos inovadores e se tornaram, por assim dizer, simbólicos dos anos 80. Acrescente-se que o futuro próximo sugerido ali tem mais a ver com nossa atualidade do que aquele preconizado por Kubrick e a obra ganha, retrospectivamente, uma aura quase profética.

E, tal qual tantos filmes rebuscados, este é, a seu modo, uma discussão acerca da arte cinematográfica, um exemplo de meta-cinema ou de cinema sobre cinema que se realiza, no entanto, de forma substancialmente mais sutil do que os produtos europeus com os quais competia.

Pois, entre tantas outras coisas, a obra de Ridley Scott "fala" incessantemente sobre o olhar. E, enquanto nós a assistimos, olhos e mais olhos aparecem e se multiplicam na tela, olhando-nos. Os olhos do filme estão em toda parte: os andróides são reconhecíveis por meio de um exame de retina; eles matam suas vítimas furando ou espremendo seus olhos; o principal andróide, conforme agoniza, com suas lágrimas misturando-se à chuva, relata aquilo que viu.

Seu recente lançamento em DVD é a oportunidade para vê-lo e/ou revê-lo de modo a continuar uma discussão que não vai se encerrar tão cedo.

Laís Bodanzky filma os velhos jovens

Diretora de "Bicho de Sete Cabeças" volta ao set com "Chega de Saudade", longa ambientado em baile da terceira idade.

Para cineasta, personagens de seu filme têm as marcas próprias da adolescência, "abertura para descobertas e para ter grandes emoções" .

SILVANA ARANTES
Folha de S. Paulo

São 11h de uma ensolarada manhã de terça, na Barra Funda, zona Oeste de São Paulo. Mas não na casa de shows que ocupa a esquina das ruas Guaicurus e Faustolo. Lá dentro, é noite. E noite sem luz.Um pique de energia acaba de calar a banda (capitaneada pela cantora Elza Soares) e esvaziar a pista de dança que o casal Alice (Tônia Carrero) e Álvaro (Leonardo Villar), costuma "roubar", com seus passos.O corte de luz é um dos muitos acontecimentos ao longo desta noite de baile para a terceira idade que compõe a espinha dorsal de "Chega de Saudade", novo longa de ficção da diretora Laís Bodanzky.Para afastar a luz do dia do sobrado onde funciona a (real) casa de shows União Fraterna, endereço das filmagens, a equipe contorna as janelas do salão com um andaime e o envolve com tecido negro.Na passarela entre as janelas e o breu, o assistente de maquinaria Marcos Diógenes faz o "papel" dos carros. Ele circula para lá e para cá, carregando um refletor nas mãos. Simula, assim, o reflexo de faróis nas janelas. Trabalho pesado? "O problema não é o peso. É que esquenta", afirma.O jato de luz que Diógenes entorna no salão encontra Ernesto (Luiz Serra) sentado junto à janela. Ele é o rosto de um homem em crise.Assíduo ao baile, Ernesto é conhecido de todos -e principalmente de todas- como sendo viúvo. Mas ele é casado e acaba de ser informado de que sua mulher está na chapelaria.Essa é "a cena da virada" de Ernesto no filme, como define Bodanzky. Serra a interpreta uma, duas, três vezes. Bodanzky pede a quarta tomada, agora com a câmera mostrando Ernesto em "close". Serra diz tudo de novo. "Corta!", diz Bodanzky, reprovando o resultado: "Ficou sem ritmo. Quero a cena completa outra vez".Ernesto conta uma vez mais para o garçom (Marcos Cesana) a crônica de seu desencontro conjugal. Findo o discurso, ele veste o paletó, pesca no bolso a aliança escondida, mete-a no dedo, penteia os cabelos e parte para enfrentar o problema.Desta vez, a tomada não só valeu, como ficou boa o bastante para que se pudesse contar em minutos o tempo do emocionado abraço trocado em seguida entre a diretora e o ator."Minha grande aflição como diretora neste filme é que não posso escorregar com nenhum ator", diz Bodanzky. Trama de muitos personagens, construída pelo roteirista Luís Bolognesi, "Chega de Saudade" "é como se fosse um hai-kai", diz ela.A tendência é que cada personagem principal tenha sua história contada brevemente, com uma grande cena. Se essa falhar, o personagem terá poucas chances de se redimir no filme. A de Serra não falhou.
"Segundo parto"Saudada em sua estréia em longas com "Bicho de Sete Cabeças" (2001), em que Rodrigo Santoro vivia um adolescente levado ao manicômio pelos pais que o descobriram com um cigarro de maconha, Bodanzky sabe que há grande expectativa em torno de seu segundo longa. "Incomoda-me que as pessoas façam comparações", diz. Porém, uma aproximação entre o novo filme e o anterior é ela mesma quem faz."Ninguém imagina, mas esse também é um universo adolescente. São pessoas [os freqüentadores dos bailes de terceira idade] com uma atitude de deixar que a vida aconteça e um espírito aberto para descobertas e para ter grandes emoções, como são os adolescentes", diz.Entre um filme e outro, Bodanzky teve duas filhas, dirigiu uma peça de teatro e coordenou um programa de exibição itinerante de filmes.Na volta ao set, a diretora sentiu o mesmo "frio na barriga" de antes e reencontrou os desafios das filmagens como quem "sente a dor do segundo parto". A estréia do novo longa está prevista para 2007.

"O cinema está melhor que nunca", diz Tônia

"Você não sabe como era agradável", diz a atriz Tônia Carrero, sobre o início de sua carreira, na companhia cinematográfica Vera Cruz, o sonho da Hollywood Brasileira.Tônia foi a estrela da Vera Cruz, em filmes como "Apassionata" (1952) e "É Proibido Beijar" (1954). Mas não há traço de saudosismo em seu comentário sobre o passado."O cinema brasileiro está melhor do que nunca, está como a gente sonhou que seria", diz. Ela é testemunha e exemplo do aquecimento recente da produção nacional.Interpretando "uma mulher de mais de 80 que tem uma paixão recalcada pelo parceiro [de dança de salão]", em "Chega de Saudade", de Laís Bodanzky, Tônia, 84, já confirmou seu nome na ponta do elenco de "Vendo ou Alugo", um projeto de Betse de Paula. Ela será a proprietária de uma casa na Rocinha, que tenta se desembaraçar do imóvel, de qualquer modo.Com "Chega de Saudade", Tônia confirmou que seu status de estrela continua intacto, quando percebeu que recebia aplausos da figuração por simplesmente caminhar pelo set.Aos 84, Tônia tem um andar menos desenvolto do que gostaria. "A disposição do corpo não é a mesma", diz, sobre a chegada da velhice, que descreve como um poema: "De repente, não mais que de repente. Não se sente. De repente se acorda e está-se velha. Ora, que novidade besta".Vaidosa assumida, Tônia diz que fez "o último retoque" em seu rosto em 1980. Agora, apenas "capricha um pouco" ao se arrumar e faz sessões de alongamento três vezes por semana. De São Paulo, ligou para o seu cabeleireiro, no Rio, para não errar o tom do cabelo.Já ouviu dizer que há uma nova geração de atores petulante. Não acreditou. "Veja o Lázaro Ramos, pode ser melhor e mais carinhoso do que ele? Sempre que me vê, vem me beijar a mão", diz. Ela desconfia que a deferência de Ramos seja um reconhecimento ao fato de ela haver "resistido a todas as intempéries da profissão".

"Antônia" canta a amizade feminina

Bia Abramo - Folha de S. Paulo

O que sustenta o interesse é a linda e sutil tessitura da amizade entre as mulheres.



"ANTÔNIA" INAUGURA uma nova modalidade: a minissérie de TV que se antecipa à exibição do longa nos cinemas. É exatamente o contrário de "Cidade dos Homens", série que continuou a história de dois personagens de "Cidade de Deus". O negócio parece ousado, mas talvez não seja propriamente arriscado: quando o filme de Tata Amaral entrar nos cinemas, personagens, ambientação e músicas já estarão circulando e certamente arrebanhando fãs -sobretudo entre as garotas. É que, para além de estratégia, "Antônia", a minissérie, traz para a TV imagens, sons e temas que não são contemplados pela estreiteza dos critérios televisivos. O filme conta a história da ascensão e queda de Antônia, um grupo de hip hop formado por quatro amigas da Brasilândia. A minissérie passa-se dois anos depois quando Preta (Negra Li), Bárbara (Leilah Moreno), Maia (Quelynah) e Lena (Cyndi Mendes) retomam a banda. OK, de imediato, trata-se de uma série em que as protagonistas são mulheres e negras; os personagens secundários são homens e mulheres e crianças igualmente negros; o sotaque é o da periferia de São Paulo pontuado pelo paulistaníssimo vocativo "meu"; e o "skyline" da grande cidade é uma visão distante. Nada disso é usual na televisão, embora aqui não se possa deixar de registrar o pioneiro "A Turma do Gueto". Dar visibilidade ao invisível é (quase sempre) um mérito, mas o risco do recorte sócio-antropológico é imenso. Só que "Antônia", num diapasão não-denuncista, tem mais. O que sustenta o interesse é a linda e sutil tessitura da amizade entre essas quatro mulheres, às voltas com a tripla condição "subordinada" de gênero, raça e classe social. Procurando sua identidade, autonomia e um jeito de sobreviver com dignidade numa cidade hostil a elas em todos os aspectos. A via é a música, o hip hop feminino mais melódico, em que as vozes (e letras) são tão assertivas quanto as masculinas, mas o canto procura uma expressão mais suave e sensual. As atrizes da série, todas cruas de TV, são de fato cantoras -e que cantoras!-, e encontram uma fluência rara diante da câmera. Destaca-se também o trabalho de resgate da música negra brasileira: Maia, cantora em um bar de samba-rock, interpreta clássicos do brega simpático; a mãe de Preta, interpretada por Sandra de Sá, cantarola sambas de Candeia etc. Otimista, mas sem ilusões, "Antônia" brilha e tem tudo, como dizem as garotas, para bombar. biabramo.tv@uol.com.br
"O Céu de Suely"

CONTARDO CALLIGARIS DA FOLHA DE S. PAULO

"Céu" não conta uma tragédia da miséria; é "apenas" um filme sobre a dificuldade de viver .

ESTREOU NA sexta passada "O Céu de Suely", de Karim Aïnouz (o diretor de "Madame Satã"). É a história de Hermila, uma jovem que, junto do namorado Mateus, deixou sua Iguatu natal, no Ceará, para tentar a vida em São Paulo. Dois anos mais tarde, eles decidem voltar. Hermila (a notável e homônima Hermila Guedes) chega a Iguatu com um filho nos braços e espera a reunião iminente com Mateus, que ficou em São Paulo por mais um tempo. Mas Mateus não comparece. Hermila quer ir embora de novo (e não atrás do namorado). Para arrumar o dinheiro necessário, ela organiza uma rifa; o prêmio é uma noite no Paraíso com ela (que, para a rifa, mudou de nome: agora é Suely). O filme é imperdível, porque é absolutamente "justo": raramente uma história me foi contada de uma maneira e num tom tão convincentes e tão próximos da vida. Não sabemos bem por que Hermila e Mateus emigraram. Não foi fugindo da miséria. Talvez seja impossível viver em Iguatu (ou onde quer que seja, aliás) sem querer, um dia, colocar o pé na estrada. Não sabemos bem por que eles quiseram voltar, mas um cartaz na saída da cidade anuncia: "Aqui começa a saudade de Iguatu". É verdade que uma inexplicável vontade de voltar sempre espreita, inevitavelmente, quem deixou o lugar que lhe foi atribuído pelo destino. Por que Hermila não decidiria ficar em Iguatu? Afinal, lá ela tem amigas, a avó que cuida do netinho e até um novo namoro. Aviso: quem foi embora uma vez nunca mais pára de oscilar entre a saudade e a tentação da viagem. Quando Hermila decide se rifar, pouco ou nada nos é dito sobre seu conflito interior; só seus sorrisos forçados falam da tênue fronteira entre o prazer de seduzir e o asco de se oferecer. A força do filme está nesse pudor, graças ao qual os personagens se tornam curiosamente familiares, próximos da gente. Pois não há desesperos, tangos ou tragédias que transformem suas gestas num espetáculo ou numa farsa. Conhecia a sinopse de "O Céu de Suely" há tempos, pela imprensa. Antes de assistir ao filme de Aïnouz, quis rever um antecedente italiano dos anos 70, em que é contada a história de uma mulher (Sofia Loren) que se rifa. Trata-se de um filme em episódios, "Boccaccio 70", e o episódio em questão, "A Rifa", é dirigido por Vittorio de Sica com roteiro de Cesare Zavattini. Os nomes de De Sica e Zavattini são associados ao período mágico do neo-realismo do cinema italiano (De Sica assinou obras-primas: "Ladrões de Bicicletas" e, justamente com roteiro de Zavattini, "Umberto D"). Ora, o glorioso neo-realismo italiano dos anos 50 pariu, nos anos 70, uma proliferação de chanchadas, em que, digamos assim, o que sobrava de "realismo" era uma transformação grotesca e cínica da vida. Ou seja, a prova de que a realidade estava na tela consistia na vulgaridade risível das histórias e dos personagens. Esse declínio cultural tem suas explicações: o neo-realismo italiano dos anos 50 foi a obra de uma geração para quem o pós-guerra era brutal, miserável, mas animado por uma esperança que encorajava a levar o mundo a sério. Depois da decepção do "milagre italiano" dos anos 60 (que viu o triunfo de uma "elite" sinistra e gananciosa), aparentemente, só dava para zombar. Era assim: o cinema americano nos mostrava os heróis (da história ou do cotidiano, tanto faz), e a nós, que tínhamos perdido a chance de sermos heróis, sobrava sermos palhaços. Uma parte do público achava engraçado, ria ao se ver nesse espelho deformante. Outros (eu entre eles) achavam desesperador e ficavam, como Hermila, com vontade de ir embora. Faça a experiência: compare os compradores dos bilhetes da rifa no filme de Aïnouz e no de De Sica. Os compradores de "O Céu de Suely" são complexos, divididos, seu desejo é contaminado pela vergonha e pelo mal-estar; alguns se indignam com a proposta. Os compradores de De Sica são estereótipos de idiotice, uma massa de farsantes. Teria sido fácil cair na mesma armadilha e apresentar os compradores da rifa de Suely como caretas tragicômicas, como um bando de peões bêbados, desdentados e assanhados (alguma lembrança do cinema brasileiro do passado?). Mas o filme de Aïnouz não é uma tragicomédia da miséria, não conta um fato grotesco do subdesenvolvimento. É "apenas" um filme tocante sobre a dificuldade de viver.