Estudo publicado no Reino Unido defende que as classes médias desenvolveram uma "anomia do mercado", caracterizada pela desconfiança e cinismo em relação às leis e aos regulamentos.
Chinês passa diante de bolsa gigante colocada na frente a uma loja, em Xangai.
RICHARD TOMKINS - Folha de S. Paulo
Você está trabalhando até tarde no escritório. Enquanto carrega a impressora com mais papel, lembra de repente que acabou o papel A4 de sua casa. "Bem", você diz a si mesmo, "estou fazendo hora extra sem ganhar nada a mais por isso, então a empresa me deve". Sentindo-se justificado pelo que faz, você retira um pacote de 500 folhas do almoxarifado da empresa, e, aproveitando o ensejo, leva para casa também uma fita adesiva, três esferográficas e um bastão de cola Pritt. É claro que esse é um furto puro e simples. Se você fosse flagrado roubando esses objetos de uma papelaria, a polícia viria prendê-lo. De alguma maneira, porém, a classe média conseguiu convencer-se de que, se ela comete um crime visando seu ganho pessoal, não é a mesma coisa que acontece quando um membro das classes criminosas o faz. Então ela mente, engana e rouba com a consciência tranqüila. Pessoas da classe média fraudam seus impostos, escondendo dinheiro fora do país ou fazendo compras no exterior e escondendo da alfândega o que compraram. Inventam ou exageram perdas para receber dinheiro indevido de seguros. Compram produtos contrabandeados, com plena consciência do fato, e adquirem cópias ilegais de softwares de computador. Roubam toalhas de hotéis e academias de ginástica, fraudam suas despesas custeadas por suas empresas. E se prestam a cometer praticamente qualquer ato desonesto que se possa imaginar para conseguir que seus filhos encontrem vagas nas escolas que desejam para eles. Um estudo conduzido por criminologistas na Universidade Keele constatou que quase dois terços dos britânicos admitiram cometer atos desonestos, tais como deixar de dizer alguma coisa quando recebe troco em excesso, pagar empreiteiros em dinheiro vivo para evitar a cobrança de impostos ou comprar roupas para uma ocasião especial e devolvê-las depois, pedindo um reembolso. Os piores infratores foram pessoas da classe média: 70% dos entrevistados das classes sociais A e B admitiram cometer fraudes e desonestidades no cotidiano, comparados com 53% dos entrevistados das classes D e E. Onde foram parar frases como "a honestidade é a melhor política", "quem engana não prospera", "a virtude é sua própria recompensa" e outros axiomas semelhantes da classe média? Será que a classe média deixou de acreditar neles? Houve época em que as classes médias praticamente se definiam por sua retidão ética, ocupando uma posição moral supostamente elevada, entre as classes trabalhadoras displicentes e a aristocracia degenerada. Afinal, na era vitoriana muitos integrantes da classe média eram membros da vertente protestante dos não-conformistas, cuja origem remontava aos puritanos do século 17. Os códigos morais permeavam todos os aspectos da conduta pessoal -mais evidentemente a sexualidade, que a classe média procurava reprimir ao máximo. Como a limpeza era a virtude mais próxima da divindade, corpos, roupas e casas tinham que estar lavados e escovados sempre. Respeitabilidade As normas de comportamento eram codificadas num sistema complexo de etiqueta e boas maneiras -cotovelos fora da mesa, nada de comer na rua- que tinha por objetivo diferenciar a classe média da ralé. A respeitabilidade era tudo, e as pessoas viviam assombradas pelo medo da vergonha social. Ou, pelo menos, é isso o que nos é dito. Mas as pessoas que pintam esse quadro são sobretudo da classe média. Como observa Helen Haste, professora de psicologia na Universidade Bath: "Mitificar a classe média é algo que a classe média sempre fez muito bem, tanto com relação a seu status presente quanto a seu passado". Na verdade, quando se olha por baixo do verniz superficial da era de ouro da moralidade de classe média, o que emerge é um quadro um pouco diferente. Vemos, por exemplo, uma sociedade que tolerava o trabalho infantil e condições de trabalho medonhas para adultos, e a suposta moral sexual da época era repleta de hipocrisia, conforme deixava claro o número enorme de prostitutas que havia. Quanto à honestidade ser a melhor política, o século 19 foi uma era de ouro não tanto da moral, mas da criminalidade de colarinho branco. A emergência de uma nova economia industrial gerou uma proliferação de empresas de ações conjuntas que não eram obrigadas a publicar prospectos honestos, registrar contas feitas com auditorias ou respeitar a verdade em sua publicidade. Para as classes médias que promoviam e administravam essas empresas, a tentação era grande demais. Elas embarcaram numa orgia de fraudes, malversações de fundos e negociatas. Mas sejamos generosos e suponhamos que, fora do mundo do comércio, a maioria das pessoas de classe média fosse formada por cidadãos-modelo. O que deu errado? Será que o capitalismo de mercado, com sua ênfase na defesa do auto-interesse, nos transformou em pessoas sem escrúpulos, movidas pela cobiça e que só buscam maximizar o próprio ganho? A professora de criminologia na Universidade Keele Susanne Karstedt, chefe do estudo sobre a desonestidade da classe média, aponta para o fato de que a maioria dos crimes da classe média é cometida no mercado e sugere que é ali que se devem buscar as respostas. O "British Journal of Criminology" dedica um número inteiro aos crimes do colarinho branco, e, nessa edição, Karstedt argumenta que, ou em função dos escândalos envolvendo grandes empresas como a Enron ou graças a experiências cotidianas menores que levam as pessoas a se sentirem defraudadas, as pessoas criaram uma síndrome de "anomia do mercado" -que se caracteriza pela desconfiança, insegurança e cinismo em relação às leis e aos regulamentos. "Enquanto no passado os camponeses se revoltavam contra os donos de moinhos que vendiam milho ou farinha de trigo a preços inflacionados, hoje os consumidores se indignam quando sentem que não estão recebendo um produto que vale seu preço, por produtos vendidos sob descrições imprecisas ou por cobranças de taxas ocultas", ela escreve. "Eles inflacionam seus pedidos de ressarcimento de seguradoras como reação contra as regras impressas em letras pequenas ou contra os prêmios de preço exagerado; eles mergulham numa economia de sombras na qual pagam dinheiro vivo para evitar os impostos e as leis da seguridade social." Peter Taylor-Gooby, professor de política social na Universidade de Kent, diz que seria difícil provar que a classe média se tornou menos honesta, porque qualquer mudança nos comportamentos reportados pode simplesmente refletir uma disposição maior em admiti-los. "É provável que as pessoas sempre tenham se comportado de maneira a proteger seus interesses próprios, em resposta a incentivos", diz, citando uma verdade eterna. Apesar disso, ele se indaga se a confiança social é igual ao que foi no passado. "Boa parte da evolução da política pública no presente está ligada à ênfase em motivações e incentivos individualistas, de atores racionais que levam em conta seus interesses próprios", diz ele. "Então, por exemplo, construímos sistemas que oferecem às pessoas incentivos fortes para que alcancem metas específicas, fixadas numa revisão abrangente de gastos, ou desenvolvemos sistemas de mercados internos." Morte da vergonha? Esses sistemas podem funcionar, diz Taylor-Gooby, na medida em que se elevam os padrões de atendimento dos serviços públicos. "Mas a questão é saber se, ao mesmo tempo, estamos criando um clima de idéias próprio de uma sociedade em que as pessoas estão mais voltadas à defesa de seus interesses próprios." Mesmo assim, existem outras explicações possíveis. E se estivermos assistindo à morte da vergonha? Em outras palavras, será que as classes médias deixaram de sentir necessidade de serem escrupulosamente honestas porque deixaram de se importar com a respeitabilidade? Considere-se a incidência cada vez maior de falências pessoais no Reino Unido. Houve época em que a ruína financeira era algo tão vergonhoso que a saída vista como honrosa para um cavalheiro incapacitado de pagar suas dívidas era o suicídio. Hoje, o cavalheiro apenas vai até uma agência de administração de dívidas, assina um acordo de inadimplência e conta a seus amigos como foi tudo muito fácil. "A respeitabilidade foi importante até os anos 1960", diz Haste, professora de psicologia da Universidade de Bath. "Então nos rebelamos. A geração dos "baby-boomers" achava que a pseudo-respeitabilidade, de manter as aparências, era hipocrisia e desenvolveu um código novo para as pessoas expressarem sua posição social." Esse código, diz Haste, tinha tudo a ver com estilo -nas roupas, no design de interiores e no estilo de vida de maneira geral. Mas ele também incluía um novo conjunto de valores relativos a questões como o ambiente, a justiça social e a pobreza mundial. Hoje a classe média pode não se importar tanto com a respeitabilidade no sentido antigo do termo. Mas ela tem novos valores morais que seus pais não possuíam, tais como os valores ecológicos, uma preocupação com os direitos das minorias e a crença na importância da transparência com relação aos sentimentos pessoais. Novos "crimes"Por esse novo código, delitos pequenos cometidos contra empresas ou burocratas sem rosto não são vergonhosos, porque são apenas uma maneira de revidar contra empresas que lucram em excesso ou contra o sistema. Mas não faltam novos "crimes" que a classe média de hoje teria vergonha de ser flagrada cometendo, tais como dirigir um veículo 4x4 pelo centro de Londres, contar piadas racistas ou bater em seus filhos. Assim, conclui Haste, não é preciso temer o aparente declínio da moralidade da classe média. "Existem áreas em que a moralidade hoje tem menos importância que no passado, mas outras em que ela é mais importante. A situação é diferente do passado, mas não representa necessariamente a decadência da civilização ocidental." Além disso, ela acrescenta: "Angustiar-se com o declínio da classe média é uma coisa extremamente classe média".
Este texto foi publicado no "Financial Times". Tradução de Clara Allain.