segunda-feira, março 10, 2008




Um gênio sem idade


Lendo "Vestido de Noiva", entendemos que poderia ter sido feita na Inglaterra do século 16

UNS TEMPOS atrás, assistindo a uma montagem prodigiosa de "Macbeth", em Londres, confesso que fixei um momento da peça que merece partilha. Leitores, aproximem-se: trata-se do delírio do general Macbeth (Patrick Stewart, na peça), que acredita ver o fantasma do rei por ele assassinado a irromper pelo banquete.
Tudo na cena é memorável: o cenário, uma mistura de cozinha com matadouro, sob forte iluminação asséptica, de uma frieza hospitalar. A mesa do banquete ao centro, com os comensais em traje militar e soviético (um "modernismo" tolerável). E, ao fundo, um elevador metálico, que permitia aos atores as entradas e saídas de cena.
Subitamente, o cenário começa a tingir-se de uma luz vermelha, como se houvesse sangue a escorrer pelas paredes. O elevador é ativado e começa a descer em direção ao palco. Então, a porta se abre (rangendo pesadamente), e de dentro do elevador sai o rei Duncan, figura sepulcral, que caminha literalmente sobre a mesa do festim, em direção a Macbeth. E, este, perante a indiferença dos comensais (que riem e conversam), aponta para o rei e grita de horror ante a visão da sua própria consciência.
Se fixei a cena, não foi apenas pelas qualidades plásticas (e bem aterrorizadoras) da encenação, que provocou algumas desistências ao intervalo (palavra). Foi sobretudo pela inteligência do jovem encenador Rupert Goold. Na peça, a assombração do rei fechava a primeira parte. Mas notável era a forma como se iniciava a segunda: o mesmo cenário, os mesmos comensais, repetindo os mesmos gestos e palavras com que terminava a primeira parte. Como se alguém tivesse recuado o "filme" alguns minutos. E, subitamente, Macbeth volta a apontar (desta vez, para o vazio) e grita novamente de horror.
No fim da primeira parte, o público assistia, por dentro, à alucinação de Macbeth. No início da segunda parte, assistia, por fora, à realidade de Macbeth. Ou, se preferirem, o público tinha duas perspetivas: a do próprio Macbeth e a dos seus convidados perante a loucura aparentemente inexplicável do general. No meu caderno de notas, apontei de imediato duas palavras: Nelson Rodrigues.
E se agora relembro a seqüência, foi por força das circunstâncias. Em coleção que só pode cobrir um português de inveja, a Folha resolveu publicar alguns clássicos da literatura brasileira. Machado de Assis, Lima Barreto, Rubem Fonseca. E o incontornável Nelson Rodrigues, com "Vestido de Noiva", a peça que praticamente reinventou o teatro brasileiro.
Li e reli a peça nos últimos dias, para escrever uma breve apresentação dela. Sempre com desconforto e fascínio crescentes. E o que impressiona em Nelson Rodrigues não é apenas a qualidade da linguagem (inultrapassável nas crônicas) nem as obsessões permanentes do autor, dilacerado por um desejo de pureza e pela certeza de que esta é inalcançável por material humano tão corrupto. O que impressiona é a absoluta modernidade de Nelson.
Em "Vestido de Noiva", Nelson Rodrigues não se limita a escrever sobre uma mulher, Alaíde, tragicamente atropelada na cidade. Nelson vai mais longe e escreve sobre a consciência dessa mulher: a forma como, habitando um limbo entre a vida e a morte, a mente de Alaíde se desdobra em três planos distintos -realidade, alucinação e memória- capazes de nos revelar a verdade mais profunda sobre ela.
Tal como em "Macbeth", é na consciência de uma personagem que encontramos os seus desejos, os seus caprichos. Os seus terrores. No caso de Alaíde, a atração inconfessável pela prostituta Clessi, um símbolo de libertação e de transgressão. A vontade igualmente inconfessável de matar Pedro, o marido. A forma velhaca como usou e abusou de Lúcia, sua irmã, seduzindo o homem que ela amava. E o temor de Alaíde de que Lúcia e Pedro conjuram para assassiná-la.
No plano da realidade, Alaíde está entre a vida e a morte. Mas será Alaíde vítima ou algoz daqueles que a rodeiam? Como em Shakespeare, não interessa apenas a Nelson Rodrigues aquilo que mostramos. Interessa o que mostramos, o que fomos e o que somos. Três estados para uma mesma condição.
"Vestido de Noiva" foi escrito e encenado em 1943. Lendo a peça, hoje, entendemos de imediato que ela poderia ter sido escrita e encenada na Inglaterra isabelina do século 16. Ou no Rio de Janeiro dos nossos dias. Ou num dos palcos do West End londrino. É a marca do gênio. Porque só os gênios não têm idade.

JOÃO PEREIRA COUTINHO - Folha de São Paulo

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