Mike Leigh contra o baixo-astral
Com novo filme, caixa de DVDs e livro de entrevistas, o diretor inglês desmente a fama de rabugento e diz que é hora de rebater a crescente onda de pessimismo
JONATHAN ROMNEY
É tedioso enfatizar a reputação de Mike Leigh como ranzinza, mas com certeza existe um certo, digamos, reconhecimento de marca que ela propicia.
A caixa de sua recente coleção de DVDs [lançada no Reino Unido pela Spirit Entertainment, 59,99, R$ 200], com design de Toby Leigh, um de seus filhos, mostra Leigh, 65, com uma careta no rosto, em uma foto de passaporte que o faz parecer um sujeito que um dia tenha planejado um assalto malsucedido a um banco britânico de menor porte.
Não seria errado suspeitar de que Leigh aprecia essa imagem. Na mesa de seu escritório no Soho [bairro de Londres], a xícara de café que usa traz a palavra "crabbit", uma expressão em dialeto escocês que significa "mal-humorado, rabugento, áspero, desagradável".
"Foi um presente", conta Leigh, "de uma atriz engraçadinha que usou a palavra ao descrever uma personagem. Na verdade, portanto, não é sobre mim". Leigh é um homem perfeitamente afável e loquaz. Mas pode ser "áspero, com aquele jeito do norte", diz, adotando imediatamente um áspero sotaque nortista de personagem de seriado cômico.
Não se pode negar que seus filmes oferecem alguns dos episódios mais sombrios e desanimadores do cinema britânico -desde "Bleak Moments" [Momentos Sombrios], de 1971, um estudo sobre o isolamento emocional dos ingleses.
Depois disso, dirigiu, entre outros, "Nu" (1993) -no qual David Thewlis assombra a deprimente noite londrina-, o retrato severo do Reino Unido do pós-guerra em "O Segredo de Vera Drake" -premiado no Festival de Veneza em 2004- e "Agora ou Nunca" (2002), com as mais perturbadoras cenas de incompreensão conjugal vistas fora de um filme de Ingmar Bergman.
Quando seu trabalho mais recente, "Happy-Go-Lucky" [Desencanada], estreou em Berlim, algumas semanas atrás, Leigh surpreendeu, em entrevista coletiva, ao dizer que era hora de "rejeitar a crescente moda do pessimismo e da negatividade". Será que o mundo está preparado para recebê-lo em modo otimista?
Sentado à cadeira de seu escritório estranhamente monástico, Leigh insiste em que "não resta dúvida de que vivemos momentos desastrosos, estamos destruindo o planeta e destruindo uns aos outros".
"Mas, apesar disso, as pessoas conseguem superar os problemas, basicamente." "Superar os problemas" é um dos mais fortes termos de aprovação no vocabulário de Leigh. Em seu novo filme, a expressão se aplica a Poppy (Sally Hawkins), uma professora de ensino fundamental em Londres cujo entusiasmo e exuberância são irrefreáveis, apesar dos horrores da existência.
"São as poppies do planeta, as professoras", diz Leigh, "que acreditam no futuro o bastante para trabalhar, estimular as crianças. Não aprecio muito a idéia de positivismo".
"Por outro lado, a idéia de ser inimigo da miséria e do sofrimento muitas vezes me diverte. Especialmente porque já fui acusado de abusar da miséria e do sofrimento em outros filmes -o que é bobagem."
Otimismo
"Desencanada" dificilmente deve ser visto como o primeiro filme de Leigh a exibir dose considerável de alegria de viver. Não poucos espectadores saíram flutuando de "Topsy-Turvy - O Espetáculo", seu filme de 1999 sobre os compositores Gilbert e Sullivan.
Mas sua nova produção mantém o espírito otimista de maneira mais consistente do que vimos em qualquer outro trabalho anterior. "O título mais evoca que descreve um espírito. Descrever Poppy como feliz ["happy'], como se ela tivesse comido cogumelos mágicos ou fumado muita maconha, é ridículo."
Uma personagem feliz que não seja nem irritante nem uma espécie de idiota sagrada: com certeza um dos mais difíceis desafios no mundo do drama. Mas Poppy brilha, em uma interpretação que valeu a Hawkins o prêmio de melhor atriz em Berlim.
É seu terceiro filme com Leigh: interpretou uma tentadora de conjunto habitacional suburbano em "Agora ou Nunca" e a menina rica que engravida em "O Segredo de Vera Drake". Quando Leigh percebeu o imenso talento de Hawkins?
"Imediatamente. De fato, quando entrou na sala, em nossa primeira conversa. Ela é muito aguçada, muito engraçada e excelente companhia -ótima, basicamente."
"Uma atriz incrivelmente generosa: mesmo agora, quando sabe que carrega todo o filme, mais do que qualquer outro ator jamais carregou um filme anterior, ainda prefere vê-lo como trabalho de elenco."
Improvisação metódica
Uma neblina de boatos e uma mística persistente cercam os métodos de trabalho únicos de Leigh já há muito tempo. O diretor os desenvolveu ao longo de cinco décadas de carreira em teatro, cinema e televisão.
Uma coisa que se sabe é que o método envolve intensa improvisação, pesquisa e colaboração estreita entre os atores. Como o diretor define, "a jornada de fazer um filme é uma jornada de descoberta daquilo que o filme realmente é".
Caso você deseje um relato detalhado sobre o que isso efetivamente envolve, pode encontrá-lo no livro "Mike Leigh on Mike Leigh" [org. Amy Raphael, ed. Faber & Faber, 12,99, R$ 43], uma longa e abrangente série de entrevistas na qual revela tudo sobre seus métodos. Ou talvez nem tudo.
Cometi o erro de começar uma pergunta com "depois de ler o livro, e sabendo agora como você trabalha..." só para ser interrompido por uma gargalhada sarcástica do diretor.
O livro de fato desmistifica bastante a metodologia de Leigh, que parece pragmática e livre de retórica, dotada de códigos de prática que incluem a regra de jamais permitir que os atores discutam seus personagens senão em terceira pessoa.
Qualquer conversa sobre atores que se envolvem demais com seus papéis é cortada na raiz. "A história toda de que as pessoas se tornam seus personagens, bem, isso não acontece", diz Leigh.
Mesmo assim, em diversos pontos do livro ele deixa de revelar certos "segredos de ofício". "Eu me recuso", diz. "A verdade é que não quero parecer enigmático ou obscuro por gosto. Mas na verdade existem coisas acontecendo no trabalho que só podem ser compreendidas pelas pessoas que tomam parte no processo."
Instinto
O que as entrevistas revelam é que cada trabalho deriva diretamente do esforço colaborativo que o produz, e só dele, e o processo começa sempre com a escalação do elenco. "Seleciono atores por instinto", diz Leigh. "Contrato pessoas e não sei o que vou fazer com elas."
Em "Desencanada", ele sabia que desejava trabalhar com Eddie Marsan, que também atuou em "O Segredo de Vera Drake", mas nenhum dos dois imaginava que ele terminaria interpretando o amargurado instrutor de direção Scott, um sujeito que resmunga perpetuamente, combinando dogmas obsessivos e métodos bizarros de memorização em um nó incompreensível.
"Nós desenvolvemos essa idéia de um sujeito disperso, eclético, que lê muita coisa e procura muita coisa no Google, e a chave foi descobrir que nós juntamos tudo isso, mas sem cometer o erro de fazê-lo compreender a massa de informações." O resultado é uma criação tragicômica aterrorizante -e impagável.
Leigh trabalha com informações estritamente segregadas, e aos atores é informado apenas o que seus personagens fazem -e nada mais.
Na preparação de "O Segredo de Vera Drake", a cena que culmina na detenção da protagonista emergiu de uma sessão de improviso de dez horas de duração, no final da qual os atores que interpretavam a família Drake foram surpreendidos pela chegada de novos atores interpretando policiais. Não que o interesse de Leigh seja traumatizar seus elencos.
"As pessoas que não têm senso de humor não conseguem fazer esse trabalho. Para mim, a idéia é montar um grupo de pessoas realmente capazes de trabalhar juntas, e uma das necessidades é que consigam gostar umas das outras -mas sem sentimentalismo demais."
Mas esse processo certamente resulta em surpresas, quando os atores vêem o resultado na tela? "Certamente. Todas as vezes. Porque nunca sabem o que o filme inteiro será antes disso. Trata-se de uma das minhas coisas favoritas ao longo do processo -eles assistem ao filme em sessão fechada, e depois saímos juntos e nos embriagamos. É sempre uma completa revelação."
A íntegra deste texto saiu no "Independent". Tradução de Paulo Migliacci .
ONDE ENCOMENDAR - O livro "Mike Leigh on Mike Leigh" e a caixa de DVDs "The Mike Leigh Film Collection" (com os filmes "Nu", "Bleak Moments", "Garotas de Futuro", "Segredos e Mentiras", "O Segredo de Vera Drake", "Topsy-Turvy - O Espetáculo", "Agora ou Nunca", "A Vida É Doce", "High Hopes", "Meantime") podem ser encomendados pelo site www.amazon.co.uk
Das telas ao palco, conheça trabalhos essenciais do cineasta
Bleak Moments (Momentos Sombrios, 1971)
Depois de surgir em forma de peça, esse drama londrino explora um dos temas mais duradouros para o cineasta inglês: "Toda a história do comportamento herdado"
Abigails's Party (A Festa de Abigail, 1977)
Essencialmente teatro filmado para a TV, esta obra tem posição de destaque na consciência cultural britânica. Leigh define esse trabalho como "o cuco no ninho, entre meus trabalhos para televisão"
Nu (1993)
O mais sombrio de seus filmes, estrelado pelo incandescente David Thewlis como um fugitivo com mil teorias fervilhando em seu crânio
Topsy-Turvy - O Espetáculo (1999)
O filme que ninguém esperava: um panorama de 152 minutos sobre a criação da ópera cômica "The Mikado", de Gilbert e Sullivan. Seria um retrato mal disfarçado de seu próprio processo de direção?
A última produção teatral de Leigh, que fez temporada em Londres e depois em Nova York. Um drama familiar que recua às origens judaicas de Leigh, e um de seus trabalhos mais diretamente políticos
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