As garras do mestre
A força que as imagens de José Mojica Marins apresentam não deriva de uma técnica ou de uma estratégia; ela se impõe por uma intuição cinemato-gráfica que a escola não ensina |
JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA
Depois de décadas, José Mojica Marins termina um filme. Traz de volta o formidável personagem de Zé do Caixão. Nenhum declínio nos poderes criadores do cineasta. Ao contrário, eles se confirmam, renovados. Fazem de “Encarnação do Demônio” não apenas sua melhor obra até agora como uma criação excepcional dentro do cinema brasileiro. A força impressionante que suas imagens apresentam não deriva de uma técnica ou de uma estratégia. Ela se impõe por uma intuição cinematográfica que a escola não ensina.
O novo filme mostra que Mojica não tem nada de um primitivo, como se costuma classificá-lo. Primitivo, nesse caso, é um álibi indulgente, que permite o sorriso e o olhar desdenhoso do espectador esnobe. Mojica nunca fez cinema com regras acadêmicas: ele sempre inventou as suas próprias, em que expõe seu universo atormentado. No início de sua carreira, a técnica era rude, mas ele transformava as limitações em qualidades. Era obrigado a inventar soluções inéditas que se encadeavam, expressivas. Agora, domina, tecnicamente, mas não se acomoda nunca a qualquer convenção. Diante das produções anêmicas próprias à assim chamada “renascença do cinema brasileiro”, cheia de bons moços e filmes bonitinhos, “Encarnação do Demônio” se abate com fúria criadora e esmaga tudo.
Do começo ao fim, em cada instante, o filme tem um poder de verdade. Verdade, em arte, não quer dizer verossimilhança nem realismo. Quer dizer expressão convicta e convincente. As situações e personagens, absurdos, em “Encarnação do Demônio”, passam a palpitar com uma vida que só os artistas mais altos conseguem obter.
Sanha
Seria impossível, para qualquer outro, sustentar ao longo do filme aquela fala de bicho-papão que passou a fazer parte do personagem Zé do Caixão. Mojica, no entanto, evita a caricatura e impõe ao público fascinado suas criaturas estrambóticas. Elas podem ser absurdas, como um monge que parece saído de algum folhetim gótico escrito há um século, mas que se afirma com grandeza misteriosa.
Quando esse monge surge em meio às delícias masoquistas de uma surpreendente autoflagelação, compreende-se de imediato que o cinema de Mojica não admite a banalidade e que por trás dos clichês há um mundo. Os policiais militares são os inimigos. Mostram-se como agentes do mal, piores que tudo. No entanto em vários personagens o maniqueísmo é evitado. O próprio Zé do Caixão é equívoco, movido por forças contraditórias, em nada esquemático. Há também um sentido social latente, sobretudo na ambientação violenta de uma favela.
Molho
Zé do Caixão virou um ser atormentado. Tem visões horripilantes; uma delas é o José Celso Martinez Corrêa. Mas tem também lembranças, e é uma delícia ver como Mojica incorpora trechos de seus filmes antigos do modo mais natural e necessário. Reciclar o velho: astúcia freqüente e econômica do cineasta, habituado a orçamentos insignificantes, que se torna legítima forma cinematográfica.
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