O Che em sua exata dimensão política
Sem mitificação, Steven Soderbergh volta os olhos ao personagem histórico
Luiz Zanin Oricchio
Sempre vai faltar alguma coisa num filme sobre Che Guevara. Ou falta apologia ou condenação. Falta discussão política ou aventura. Che, de Steven Soderbergh, um monumento de 260 minutos de duração dividido em duas partes, tira sua força daquilo que nega às pessoas. Quem odeia o guerrilheiro sentirá falta de uma condenação sumária à sua trajetória de vida e ao seu sistema de pensamento. Quem o tem como ícone talvez se queixe de falta de emoção e da exaltação de uma biografia sem mácula.
Desse retrato em dimensão humana, portanto cheio de arestas e contradições, quem sai ganhando é o espectador maduro, aquele que espera da vida algo mais que piedade ou moralismo. E ganha a própria memória do Che que, somando seus prós e contras, sai do filme com a dimensão que deve ter. Che encerra hoje à noite a 32ª Mostra de Cinema, em sessão para convidados. Pela manhã, concedem entrevistas os atores Benicio del Toro, que encarna Guevara, e o brasileiro Rodrigo Santoro, no papel de Raúl Castro. De uma vida tão cheia de peripécias como a de Guevara, Soderbergh escolhe duas fases-chave. O primeiro filme, O Argentino, enfoca seu encontro no México com os irmãos Castro, a campanha na Sierra Maestra e a entrada vitoriosa em Havana. O segundo, O Guerrilheiro, é sobre a aventura boliviana, que lhe custou a vida em 1967. Ficam de fora a infância e a juventude, a fase da administração revolucionária em Cuba, a guerrilha na África, etc.
Mas, de certa forma, as duas fases contempladas pelo filme bastam para compor um perfil bastante intenso - aliás, construído com consultoria de Jon Lee Anderson, tido como autor da melhor biografia de Guevara (Che Guevara - Uma Biografia, Objetiva, 924 pág., R$ 89). Diante da considerável massa de informações, há que fazer escolhas e Soderbergh optou por um díptico significativo - um, que fala de uma fabulosa vitória; o outro, a narrativa de uma derrota. O tom adotado é sempre o realista, seja na semelhança dos atores com os personagens, seja na verossimilhança buscada nas cenas de luta.
Benicio del Toro compõe um Che bastante convincente do ponto de vista físico, e magnífico como interpretação, que, aliás, lhe valeu a Palma de ator em Cannes, onde o filme concorreu. Santiago Cabrera é um ótimo Camilo Cienfuegos e Demián Bichir faz um Fidel Castro até engraçado pela semelhança física, pela fala, pelos tiques e até pelo modo de andar. Já Rodrigo Santoro é como talvez Raúl Castro gostaria de ter-se parecido em sua juventude. Quando lhe propuseram o projeto de Che, Soderbergh disse que se sentiu fascinado porque a vida do argentino era "quase uma aventura" e também porque havia um desafio técnico, o de "implementar uma idéia política em larga escala". Depois das 4h20, pode-se confirmar que Soderbergh se saiu muito bem desses dois desafios. Primeiro, porque a vida de Guevara não é "quase", mas sim uma aventura completa. Às vezes apenas insinuada, como na conversa com Fidel numa varanda do apartamento mexicano, quando este lhe conta que 82 pessoas iriam embarcar num iate, o Granma, que acomodaria oito ou dez, no máximo.
Em sua recordação, Che relembra que, dos 82 que saíram clandestinos do México em direção a Cuba, apenas 12 entraram vitoriosos em Havana. Todos os outros morreram pelo caminho, seja no desembarque, seja na Sierra. Nos combates em Cuba, uma passagem importante, um rito, na verdade. Embarcado como médico na expedição, Che torna-se guerrilheiro e, por fim, comandante de uma coluna, justamente a que tomaria o último reduto de resistência de Fulgêncio Batista, a cidade de Santa Clara, onde ele está hoje enterrado.
Há uma pequena nuance biográfica sobre esse episódio. No filme, quando sabe que um médico se incorpora ao grupo, o Che lhe diz: "Tenho um pequeno presente para você." E lhe passa a mochila com medicamentos, ato simbólico do abandono da medicina em favor da guerra. Em uma das biografias, a de Paco Taibo II, a cena da passagem é ainda melhor. No afã de desembarcar do Granma, em meio à lama e a tiros, o Che é obrigado a escolher entre carregar um pesado estojo de medicamentos e um caixote de munições para o seu fuzil. Prefere armamentos a remédios, o que lhe parece escolha natural para as circunstâncias. Como também lhe parece natural fuzilar traidores e desertores, fato escondido em biografias romanceadas ou realçadas fora do seu contexto de guerra nas versões antagônicas. Soderbergh opta por mostrar essas cenas, com dureza, porém sem sensacionalismo. É opção tanto cinematográfica como ética. A segunda parte - O Guerrilheiro - passa-se quase toda na Bolívia, onde Che entra disfarçado, com óculos, dentes falsos, sem barba e calvo. O aspecto político da aventura não é escondido, em especial as desavenças com o Partido Comunista Boliviano, contrário à luta armada. Há uma clara ligação entre os camponeses cubanos da Sierra Maestra, do primeiro filme, e os bolivianos, no segundo. Com algumas semelhanças (a miséria) e diferenças básicas. Se os cubanos identificaram-se com a guerrilha, o mesmo não se dá com os bolivianos.
Além disso, Che e seus guerrilheiros foram caçados na Bolívia pelo exército de René Barrientos, com apoio dos Rangers norte-americanos. Era uma guerra muito desigual e não poderia terminar de outro modo. As cenas dos guerrilheiros sendo dizimados são fortes, assim com a prisão de Guevara a 8 de outubro de 1967 e sua execução, no dia seguinte. Isento de sensacionalismo, o Che de Soderbergh parece ocupado em dimensionar Guevara em sua estatura humana e política. Não como mito, mas como personagem histórico, um dos mais influentes do século passado, pense-se dele o que bem se quiser.
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