terça-feira, abril 21, 2009

Música & Literatura



Música
Murillo Meirelles


Chico Buarque e Caetano Veloso no Rio de Janeiro. Um encontrou a voz na literatura e o outro nos blogs, shows, CDs...
Chico Buarque e Caetano Veloso no Rio de Janeiro. Um encontrou a voz na literatura e o outro nos blogs, shows, CDs...

Revista BRAVO! | Abril/2009

A Palavra e o Som

O novo romance de Chico Buarque, o novo CD de Caetano Veloso e as trajetórias parelelas dos dois grandes artistas brasileiros

Por Heitor Ferraz, José Flávio Júnior e João Gabriel de Lima

• Veja a galeria de imagens do making-of da seção de fotos exclusivas com os dois grandes artistas e as capas alternativas da edição

Numa cena do filme Invasões Bárbaras, um dos clássicos da primeira década do século 21, um grupo de professores de história elabora a teoria da "quantidade de inteligência". Segundo eles, por razões aleatórias, existem determinados momentos e lugares com alta concentração de gente talentosa, e essas pessoas fazem a diferença em suas épocas. São citadas no filme a Florença de Dante e Boccaccio e a Filadélfia dos "pais fundadores" da revolução americana. Aplicando a teoria à vida cultural brasileira, pode-se dizer que o país viveu uma espécie de auge nos anos 60 e 70, explosão criativa da música popular (e, por mais que se cunhem teorias pretensamente sociológicas — a mais famosa e absurda diz que a arte floresce em períodos de ditadura —, nada explica isso além da sorte). Primeiro veio a bossa nova de Tom Jobim e João Gilberto. Depois, a MPB surgida nos festivais, com Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Tom Zé e Gilberto Gil. Esses músicos têm em comum, além do talento, a carreira extremamente longa, que dura até os dias de hoje. Numa coincidência digna da teoria da inteligência aleatória de Invasões Bárbaras, dois desses artistas darão à luz novas criações neste mês de abril. Saem o novo CD de Caetano Veloso, Zii e Zie, e o novo romance de Chico Buarque, Leite Derramado. Disco e livro são pontos de chegada de trajetórias paralelas — e o lançamento simultâneo provoca reflexões sobre a cultura brasileira e sobre o caminho que ambos percorreram para chegar até aqui.

Não existem mais artistas como Chico Buarque e Caetano Veloso — os ícones de geração, os compositores que são chamados a opinar sobre todos os assuntos. Nos anos 90, o poeta carioca Bruno Tolentino (1940-2007) observou, numa entrevista famosa, que no Brasil eram os cantores populares, e não os escritores ou intelectuais da academia, que pautavam o debate cultural. Tolentino emitiu sua observação em tom de crítica — ele via isso como um sintoma de decadência. O que faltou em seu raciocínio foi observar que acontecia o mesmo no resto do mundo. Se os anos 40 e 50 foram dos escritores e filósofos, em que nomes como Norman Mailer e Jean-Paul Sartre pontificavam sobre todos os assuntos, os 60 e 70 foram dos astros da música pop. Artistas como John Lennon, Paul McCartney, Bob Dylan e David Bowie, entre outros, eram considerados as "antenas" de um período de intensa mudança cultural e de costumes. É um pouco espírito de época, mas também mérito de uma geração excepcionalmente talentosa — é só pensar que apenas no ano de 1966 foram lançados pelo menos três álbuns clássicos da música de todos os tempos, Blonde on Blonde (Bob Dylan), Pet Sounds (Beach Boys) e Revolver (Beatles). Cantores como Chico Buarque e Caetano Veloso eram as versões brasileiras desse fenômeno. É uma simplificação, no entanto, entender tudo isso apenas como marca de um tempo, ignorando as peculiaridades e contribuições particulares de cada artista.

Numa comparação redutora porém ilustrativa, Chico e Caetano estão para a MPB assim como Bob Dylan e David Bowie para o pop internacional. Dylan e Chico se destacam mais pela qualidade de suas letras do que por suas performances, em geral discretas, em shows. Mais do que bons compositores, letristas e intérpretes fulgurantes, Bowie e Caetano são famosos pelas diversas reviravoltas que deram em suas carreiras, captando diferentes espíritos de época. Bowie usou sintetizadores para falar de viagens espaciais nos anos 60, foi andrógino nos 70 (era o principal nome do glitter, o velho e colorido rock-lantejoula) e voltou a ser roqueiro nos 80. Caetano surgiu no tropicalismo dos anos 60, escreveu o "hino do desbunde" nos anos 70 (a música Odara), foi pioneiro na utilização de sonoridades do pop na MPB da década de 1980 (o marco é o memorável álbum Velô) e ainda promoveu o relançamento de clássicos da música latina nos 90. Tudo isso enquanto Chico Buarque lapidava seu estilo de composição calcado nas raízes da MPB — e Bob Dylan se aprimorava cada vez mais em sua peculiar fusão de blues e música country engajada.

Neste mês em que Caetano e Chico lançam seus novos CD e romance, é interessante comparar os pontos de chegada das duas trajetórias. Chico, o compositor que fazia incursões no teatro e criava personagens em suas letras (Pedro Pedreiro, Ana de Amsterdam, Bárbara), se tornou escritor. Continuou fazendo música embora tenha declarado, em entrevistas, que considerava a canção uma "arte de juventude", em contraposição à literatura, que seria uma forma de criação mais madura (leia texto ao lado). Enquanto isso, Caetano dava nova reviravolta em sua carreira ao se aproximar de músicos jovens e lançar um álbum antológico, Cê. Não parou por aí: criou um blog, lançou músicas na internet, testou-as no show e as reuniu no novo álbum, Zii e Zie, tornando-se talvez o artista brasileiro da área musical que melhor entendeu a interatividade dos novos tempos (leia texto a partir da página 32). Tempos estes em que a multiplicidade de criadores de todas as áreas explode na internet. Em que não existe mais o que se chamava antigamente de mainstream. Em que, no Brasil ou lá fora, se observa o fim dos ícones de geração — e não se espera mais que cantores sejam "antenas da raça" ou falem sobre todos os assuntos. Nestes tempos de cauda longa, Caetano Veloso e Chico Buarque encontraram, cada um a seu modo, suas vozes. Chico na literatura. Caetano nos sites de música, no blog, no show, no CD...

João Gabriel de Lima


O parto de Eulálio d'Assumpção, protagonista de Leite Derramado, foi mais tranquilo do que o de José Costa, o personagem principal de Budapeste. Na feitura de seu romance anterior, Chico Buarque chegou a descartar uma versão inteira, na qual o protagonista era um arquiteto. Foram três anos de elaboração. Já o novo livro nasceu em menos de um ano. Houve apenas uma hesitação, como lembra o editor Luiz Schwarcz, com quem Chico sempre se comunica quando começa a escrever um novo trabalho. "Ele ficou na dúvida, achou que podia ter se enganado", conta Luiz. Mas com a dúvida veio também o aviso: "Se estiver enganado, pode me dizer. Eu jogo tudo fora e começo outro, pois estou com a mão boa", disse Chico a Schwarcz. Não houve engano. Leite Derramado chegou ao mercado com uma tiragem inicial de 70 mil exemplares — o padrão do mercado é de 3 mil —, duas versões de capas, um site especial (www.leitederramado.com.br) e campanha publicitária da AlmapBBDO.

Chico faz 65 anos em junho. Quando se iniciou na literatura, em 1993, com o romance Estorvo, estava realizando um sonho de juventude. "Meu pai, historiador e crítico literário, não me pressionou a escrever, mas apreciava quando eu escrevia. Aos 21 anos, comecei a compor canções, e isso foi o que me sequestrou", disse em 2005 numa mesa-redonda em Nova York, da qual participou também o autor americano Paul Auster.

Desde esse sequestro, Chico procura sempre manter separado o escritor do compositor, num esquema que ele mesmo chamou de "esquizofrênico". Quando se dedica à literatura, deixa o violão no estojo e evita ouvir música. Quando termina o livro e passa a temporada de lançamento e de traduções, volta a procurar os acordes e as linhas melódicas de suas canções, com um frescor de quem estivesse começando do zero. Quando lançou Carioca, há dois anos, ele deu uma série de entrevistas, comentando o disco — que é um dos mais brilhantes de sua carreira e tem como destaque a faixa Subúrbio, com uma linha melódica que sobe e desce como se galgasse os morros que dividem a zona sul e a zona norte do Rio de Janeiro. Mas, quando o assunto é livro novo, Chico se retrai. Pelo menos durante um tempo. Depois, acaba fatalmente comentando sua literatura e suas leituras.

Para o escritor e jornalista Humberto Werneck, autor de Tantas Palavras, o artista tem uma espécie de "monogamia criativa", alternando os momentos de autor com os de compositor. A única coisa que se mantém tanto no músico como no escritor é a caminhada — além do futebol, o principal esporte de Chico é andar pelo calçadão do Rio de Janeiro. Seguindo o ritmo de um passo paulista, mais apressado, Chico aproveita para ir resolvendo o enredo ou a letra da canção. Não são apenas passeios e exercício físico, mas horas de trabalho mental. Como diz Werneck, no livro, "compor e escrever são solicitações diversas de sua criatividade, cada uma a seu tempo". Numa conversa com o cineasta Roberto de Oliveira (que resultou posteriormente em uma caixa com 12 DVDs), Chico Buarque comentou: "Não há um parentesco próximo entre romance e música. Mas existe uma música na estrutura dos meus livros. E também há sempre uma música no fundo da minha cabeça quando escrevo, quase uma trilha sonora, um assovio, um cantarolar que dita o ritmo".

A carreira literária de Chico, assim como a de músico, atravessou o oceano. Seu primeiro romance, Estorvo, logo ganhou tradução no estrangeiro. Saiu na França, na Itália, na Espanha, nos Estados Unidos e em outros países. O mesmo destino tiveram seus dois romances posteriores, Benjamim e Budapeste. Lá como cá, o nome do escritor sempre vem acompanhado do do compositor. "Um dos mais importantes músicos do Brasil", dizia o francês L'Express, na abertura de uma entrevista, em 1998. Vale lembrar que na França o músico é muito conhecido, principalmente por causa da música Essa Moça Tá Diferente, que virou jingle de um comercial (bem ridículo, diga-se de passagem) de uma marca de refrigerantes.

A crítica fora do Brasil sabe separar, no entanto, o músico do escritor. "Ninguém espere encontrar na literatura de Chico Buarque elementos parecidos com as suas canções, pois estamos diante de uma narração pouco colorida, de ritmo escasso e com nenhuma mudança de tempo", dizia o autor espanhol Mariano Antolín Rato, sobre o lançamento, na Espanha, de Estorvo. Apesar de dizer que o livro era um tanto decepcionante, o crítico também dava a mão à palmatória dizendo que pouco sabia sobre o Brasil e talvez isso lhe impedisse de entender melhor a obra. Já sua conterrânea, a crítica e poeta Beatriz Hernanz, lembrando a atividade de compositor e cantor de Chico, fazia uma leitura mais atenta do romance — principalmente para o impasse moderno do mundo sem saída apontado pela narrativa — e lembrava que a obra certamente surpreenderia o leitor espanhol.

Nos Estados Unidos, onde ele é conhecido, mas não é um nome popular, o New York Times publicou uma reportagem, em 1999, dando conta de toda a sua carreira, destacando as letras de suas canções e apresentando o autor de Turbulence, como foi batizado lá o livro Estorvo, lançado pela Pantheon, em 1993. O livro também saiu na Inglaterra, onde teve críticas positivas. Os artigos sempre lembram a faceta do músico, mas logo se voltam para o enredo criado pelo escritor e destacam sua condição de brasileiro e o seu tema, o Brasil. Por aqui, a obra de Chico Buarque em geral rende resenhas positivas — claro que alguns comentários dissonantes não faltaram, nem faltarão, por conta do livre exercício da crítica. Ele começa também a ser tema de teses acadêmicas. Numa primeira fase, relacionando sua obra com o momento político do país. Mais recentemente, e sobretudo a partir de Budapeste, elas começam a se voltar para o trabalho de linguagem do escritor.

O novo romance, Leite Derramado, dá margem aos dois tipos de análise. Há pouco tempo, Chico Buarque comentava o que ele chamou de nova mania: a publicação de livros com genealogias de famílias tradicionais brasileiras. Ele se divertia um pouco com esse tipo de empreitada, pois lá pelas tantas sumiam uns nomes da árvore. Como se um galho tivesse sido arrancado. "As pessoas no Brasil pensam que são brancas, que eu sou branco", dizia. "Impossível imaginar uma família que esteja aqui desde o século 16 e não tenha se misturado com índios e pretos. Não tem como." O comentário — feito num dos 12 programas que ele gravou com Roberto de Oliveira, em 2007 — parece ter frutificado na cabeça do escritor. Ele procurou, em seu romance, dar conta dessa mania nacional de nobiliarquia, de bater orgulhoso no peito dizendo "sou descendente de barão".

O narrador de seu novo livro é um velho gagá, para lá de 100 anos, com fumos de nobreza, relatando, de um leito de hospital — não se sabe bem para quem, ora para uma enfermeira, ora para a filha, ora para uns sequestradores —, a esgarçada história de sua vida. Eulálio d'Assumpção — a se fiar no que ele narra ("lembrança de velho não é confiável", diz) — é daqueles que carregam, por toda parte, sua árvore genealógica na cabeça, com galhos por todos os lados. O trisavô teria desembarcado no Brasil com a corte portuguesa, o bisavô seria um tal "barão de Arcos", o avô, "um figurão do Império", o pai foi senador da República (íntimo de vários presidentes) e armeiro. A brincadeira de Chico Buarque, inventando uma família de filhos únicos, lembra o ditado "pai rico, filho nobre, neto pobre". No entanto, a decadência familiar desemboca no "comércio de entorpecentes". O Brasil vai pautando essas gerações, indo da corrupção dos antepassados (o pai que se utilizava do título de "senador" para abrir aqui uma filial de uma empresa francesa de armas) até a mixórdia do presente.

Há um humor desabusado que perpassa o livro inteiro. Um humor calcado numa espécie de supremacia de classe — ou melhor, de casta, pois Eulálio já está no fim da linha, já teve de morar no subúrbio, em casinhas pequenas, na velhice, levando apenas a cama e uma escrivaninha barroca como bens de família; a ascensão dos Assumpção agora vem por meio do novo descendente, que namora uma menina com piercing no umbigo e tem atividades ilegais — se for crível o que diz o vai-e-vem da memória do velho Eulálio. Chico Buarque procurou refazer assim uma história do Brasil vista por um sujeito da elite e já decadente, ainda obcecado pela mulher, retratada por ele apenas como objeto de um desejo físico. Aos poucos, vai emergindo como vítima do ciúme e dos próprios preconceitos. Ao ler o livro, é inevitável pensar no Machado de Assis de Dom Casmurro e de Memórias Póstumas de Brás Cubas — este último por conta do enredo em que aparentemente não acontece nada e nenhuma narrativa se estabelece como determinante. O diálogo eficiente com o maior escritor brasileiro dá a medida do triunfo literário que é este novo romance de Chico Buarque.

Heitor Ferraz

Há exatamente um ano, Caetano Veloso disse para Hermano Vianna que estava com vontade de fazer uma série de shows em que pudesse mostrar para a plateia composições novas, à medida que fossem sendo compostas. O antropólogo achou a ideia genial e sugeriu que Caetano tivesse um blog para mostrar a evolução dessas canções ao longo dos shows. O blog poderia hospedar os vídeos das músicas sendo executadas, para que não apenas os que estivessem presentes nos espetáculos pudessem ouvi-las. Caetano também poderia pedir sugestões sobre o material novo e postar textos que ajudassem o público a entrar na onda. Seria algo inédito, que nem artistas de gerações mais novas teriam tentado. Para sorte da música brasileira, a loucura saiu do papel. Virou a temporada Obra em Progresso, vencedora do último Prêmio Bravo! como grande espetáculo de música popular de 2008, gerou o blog obraemprogresso.com.br e desemboca este mês no álbum Zii e Zie, resumo do que foi essa aventura que mesclou palco com internet, mundo real com mundo digital.

"Fico impressionado com o tempo que ele dedica ao espaço, lendo e respondendo diretamente a qualquer pessoa que se manifeste. Poucos artistas têm essa disposição e esse interesse", afirma Hermano Vianna, que, além de filmar entrevistas com Caetano, sugerir tópicos e moderar os comentários dos frequentadores do blog, atuava publicando as mensagens que recebia do músico baiano. Mas o cantor, que tem 66 anos, logo aprendeu a mexer nas ferramentas do site e dispensou o auxílio do amigo para isso. Rapidamente também começou a diversificar os assuntos. Em vez de focar as músicas novas, passou a discutir política (respondeu a uma análise equivocada que Fidel Castro fez da música Base de Guantánamo, destaque de Zii e Zie), jornalismo cultural (rebateu as críticas dos jornais de São Paulo ao show em homenagem a Tom Jobim que dividiu com Roberto Carlos), reforma ortográfica (criticou linguistas e atraiu um enxame deles para a discussão) e até futebol (elogiou a humildade dos jogadores do time pelo qual torce, o Bahia, por eles terem "se recusado" a golear o time do Poções numa partida válida pelo Campeonato Baiano). "Eu, tendo um blog dedicado a esse disco, não ia deixar de fazer o que sempre fiz", disse Caetano em entrevista a BRAVO!. "Antigamente, comentava as críticas que recebia no palco do show. Era superengraçado. Mas o blog foi criado para acabar quando o disco saísse. E assim será. Pode virar outra coisa ou simplesmente sumir. Continuar sendo o boteco virtual onde a gente conversa e discute é que não vai."

Por enquanto são raros os dias em que o cantor não surge no espaço reservado aos comentários para falar com a turma assídua do obraemprogresso.com.br. Em princípio, os músicos que formam a banda Cê — que começaram a trabalhar com Caetano no álbum de mesmo nome e seguem com ele em Zii e Zie — também deveriam usar o blog para escrever sobre o processo de confecção do álbum. Mas isso nunca ocorreu. O baixista e tecladista Ricardo Dias Gomes, de 28 anos (o mais jovem da Cê), confessa que a timidez o impediu de postar no blog, mas diz acompanhar as discussões e admirar o diálogo que se estabeleceu ali. "O Caetano é um brasileiro que vive a história do país intensamente. Viu muitas coisas se transformarem, e sua memória apurada faz com que suas análises tenham relevância acima da média e despertem outras mentes pensantes, o que faz o blog seguir em frente", opina.

Completam o time musical de Caetano o baterista Marcelo Callado, de 29 anos, e o guitarrista Pedro Sá, de 34. Por ser íntimo de Moreno Veloso, filho mais velho de Caetano, Pedro frequentava a casa do baiano desde a adolescência. Não tardou muito até ser convidado para entrar na banda de Caetano. Hoje, o guitarrista é visto como um dos principais responsáveis pela guinada artística dada pelo cantor a partir do disco Eu não Peço Desculpa, de 2002, gravado em parceira com Jorge Mautner. Pedro Sá é fã de bandas americanas como Pavement e Pixies, expoentes do que se convencionou chamar de rock alternativo ou indie rock, estilo em que as guitarras ruidosas são muito valorizadas. Ele soube adicionar essas influências tanto em Cê quanto no novo álbum, sem que isso soasse forçado ou desconectado das intenções de Caetano. "O Pedro faz o papel que o Lanny Gordin fazia nos anos 60", compara Kassin, músico da Orquestra Imperial e produtor de Eu não Peço Desculpa, citando o guitarrista símbolo da tropicália, responsável por injetar rock nas obras de Caetano, Gal Costa, Gilberto Gil e tantos outros.

"Caetano sempre teve como característica essa sede, essa antena em riste, uma relação libidinosa com as coisas que acontecem a todo instante no mundo", interpreta Jonas Sá, irmão de Pedro e dono da voz cavernosa que encerra o álbum Cê. Apesar de reafirmar a boa fase, Zii e Zie talvez não receba a aprovação quase unânime de Cê — que, mais do que um disco de rock, é um disco simples, sem grandes pretensões e povoado por letras concisas. O novo CD nasce de uma vontade que Caetano tinha de "tratar levadas de samba com timbre elétrico forte". Seriam os "transambas", sambas com DNA modificado, executados por músicos de rock, com guitarra no lugar do cavaquinho. Ou seja, é um disco, a priori, de caráter experimental, ainda que Tarado ni Você, Sem Cais, A Cor Amarela e outras faixas tenham estrutura de canção pop. "A nova abordagem de aspectos do samba é sempre em torno do óbvio, mas é radical", classifica Caetano. De qualquer forma, não resta dúvida de que ele fez mais um trabalho que vai brigar por vaga no top 10 de grandes álbuns de sua carreira.

José Flávio Júnior

O Livro
Leite Derramado, de Chico Buarque. Companhia das Letras, 200 págs., R$ 36.

O CD
Zii e Zie (Universal), de Caetano Veloso. Produtores: Moreno Veloso e Pedro Sá. Preço médio: R$ 30.


Revista BRAVO! | Abril/2009

Chega de Verdade

Caetano Veloso fala de suas letras cheias de nomes, do futuro de seu “boteco virtual”, o blog obraemprogresso, pagode baiano, Lobão e seu gosto por shows. Confira a íntegra da entrevista que o artista, que lança Zii e Zie, concedeu a BRAVO! por e-mail ao editor de música José Flávio Junior

José Flávio Junior

Bravo! - Por que você decidiu mudar o nome do disco de Transamba para Zii e Zie (ainda que o primeiro estivesse mais para um nome de trabalho provisório)?

Caetano - O título nunca foi Transamba. Lancei a palavra como uma sugestão de definição do que estávamos fazendo. Descobri depois que havia o disco de Marcos Moran e Samba Som Sete chamado Transamba. Achei legal. Mas sempre pensei em pôr um título em italiano, possivelmente com uma expressão em que um som se repetisse em duas palavras. Lembrei de "pian, piano", coisas assim, embora soubesse que não seria uma dessas. Fiquei maravilhado ao ler "zii e zie" em meio a uma frase de Istambul, de Orhan Pamuk, na tradução italiana (uma moça me deu o livro na Itália). Não tem nada a ver com Pamuk ou com Istambul. Era a língua italiana. A repetição do som "zi" condizia com o que eu buscava - e ser "tios e tias" tornava ainda mais profundo o sentido íntimo de saudade de São Paulo que venho sentindo na feitura de disco tão carioca.

Bravo! - Tenho notado que você se dedica bastante ao blog ordemeprogresso, a ponto de ler todos os muitos comentários que cada novo post seu desperta. Mas a experiência fascinante de ter um canto seu na web não pode se tornar prejudicial, principalmente agora que você lançará um disco? Se alguns jornais falarem mal do trabalho (como Folha e Estado falaram do show com o Roberto, iniciando uma das primeiras polêmicas do blog) você usará o espaço para se defender e/ou analisar as críticas?

Caetano - Como assim prejudicial? Não entendi. O show com Roberto não precisava de defesa. Eu, tendo um blog dedicado a este outro disco, não ia deixar de fazer o que sempre fiz. Antigamente eu comentava as críticas no palco do show. Era superengraçado. Mas o obraemprogresso foi criado para acabar quando o disco saísse. E assim será. Pode virar outra coisa ou simplesmente sumir. Depende do que Hermano combinar comigo. Continuar sendo o boteco virtual onde a gente conversa e discute é que não vai.

Bravo! - Você ficou intrigado quando um crítico americano disse que as letras de Cê eram as melhores que você havia concebido em muito tempo (opinião que compartilho). Em Cê, apesar da música para Wally Salomão, você não citava outros artistas nem soava como se estivesse mandando recados para outras pessoas públicas. Por que abandonar tão rápido esse estilo de composição, uma vez que Zii e Zie traz referências a Kassin, Lobão, Madonna, Guinga, Pedro Sá, Seu Jorge, Los Hermanos, Condoleezza Rice e tantos outros? Você chegou a declarar que havia se esforçado muito para alcançar a simplicidade lírica de Cê. Não quis se esforçar de novo?

Caetano - Tenho até um disco chamado Cores, Nomes. De Clever Boy Samba a Lapa, passando por Alegria, Alegria, Ele me Deu um Beijo na Boca, A Voz do Morto ou Fora da Ordem, minhas canções estão sempre cheias de nomes de pessoas (célebres ou não), de cidades, de países, de ruas, de filmes, de personagens. O importante na nova safra de canções era ter matéria prima para desenvolver levadas de samba com timbre elétrico forte. Em Cê havia a necessidade de soar urgente, sem referências, direto ao ponto. Fiz um esforço e consegui algo nesse sentido. Mas minha inclinação natural é assim: se eu não me proíbo de antemão, as letras vêm naturalmente cheias de nomes. Isso não quer dizer que eu desdenhe de Peter Gast ou de Lobão Tem Razão. Achei curioso que Ben Ratliff, o crítico no New York Times, tenha percebido a diferença mesmo sem saber português. Ressaltei essa ignorância dele, brincando, quando nos falamos em Nova Iorque. Mas sei que, de um certo ponto de vista, ele está certo. Mas Zii e Zie não precisa dessa característica.

Bravo! - Para Pedro Sá, Zii e Zie talvez seja até superior a Cê por ter um lado experimental mais nítido. Como você enxerga esse disco na sua discografia e no momento artístico que você está atravessando?

Caetano - Cê foi concebido quase como um disco de heterônimo. Foi pensado e realizado com o fito de criar uma banda de rock com som e repertório originais. É um lance só, de ponta a ponta. Agora o que aconteceu foi que fizemos um disco com essa banda já existente e amadurecida. Aí a banda vem com mais inventividade e soltura. A nova abordagem de aspectos do samba é sempre em torno do óbvio mas é radical. Experimento. Mas não tenho uma visão de conjunto tão nítida, já que fui escrevendo as canções e mostrando-as em shows semanais e pela internet.

Bravo! - Você escreveu, até como forma de provocação, que não há nada melhor do que pagode baiano. Ver o Psirico em cena reforça sua vontade de tirar do campo das idéias a tal antologia da axé music? Esse pode ser seu próximo álbum? Ricardo Dias Gomes e Marcelo Callado, que passeiam pelos ritmos urbanos da Bahia no Do Amor, estariam dentro do projeto?

Caetano - Tenho esse sonho. Mas não sei se chegou o tempo. Sim, eu tocaria com Ricardo e Marcelo. E com Pedro Sá, Moreno (Veloso) e Davi Moraes. Além de Du e Jó, os irmãos gêmeos percussionistas geniais de Salvador. Talvez também fizesse sozinho com meu violão.

Bravo! - Esse encontro com Chico para a capa de Bravo! levou você a pensar de alguma forma nos caminhos distintos que ambos seguiram? Por que o seu interesse na canção não morre, sua vontade de ir a shows não diminui e seu prazer por tocar com músicos novos não acaba, enquanto muitos artistas chegam aos sessenta desestimulados com a música pop ou mais empolgados com outras formas de arte?

Caetano - A tendência a ouvir menos música na velhice eu já registrei em texto. Mas gosto de canção sempre. E de ir a shows. Shows me deixam excitado e sempre idéias vêm à minha cabeça quando estou na platéia de um show de Bethânia, dos Racionais ou do Radiohead. Não sei se Frank Sinatra ou Louis Armstrong, Roberto Silva ou Riachão tinham menos prazer em tocar quando chegaram aos 60: todos esses passaram dos 70 tocando com entusiasmo. Mesmo em minha geração há muitos. Gosto de tocar com esses músicos com quem toco porque todo o projeto nasceu de minhas conversas com Pedro Sá quando fazíamos (os discos) Noites do Norte e A Foreign Sound. Nossas inteligências convergem. Ele sugeriu Ricardo e Marcelo. Vi que não podia ter feito escolha melhor.

Bravo! - Após Lobão lançar Para o Mano Caetano, sua obra coincidentemente passou a ficar mais interessante para muita gente. Você gravou o disco com Jorge Mautner, soltou o quase unânime Cê e mostrou as canções de Zii e Zie antes que elas ficassem prontas na turnê Obra em Progresso, premiada por Bravo!. Exercitou até seu lado stand-up comedy (ou sit-down comedy) nessa temporada de shows, inclusive comentando uma entrevista de Lobão para o Jornal do Brasil. Você acha que deu um tempo com as verdades e viveu alguns enganos nesse período, como diz a música de Lobão?

Caetano - Amo a frase de Lobão para mim: "Chega de verdade". Toda hora me vejo precisando repeti-la para mim mesmo. Em Jeito de Corpo (do álbum Outras Palavras, que, aliás tem os nomes de todos os Trapalhões) eu digo: "Falta aprender a mentir/ Entro até numas por ti". Continuo tentando.

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