terça-feira, março 10, 2009

Nixon, Frost e a TV como tribunal
Amir Labaki
Apesar de não ser grande cinema, “Frost/Nixon” é para lá de interessante. Faz-se drama a reconstituição dos bastidores das históricas entrevistas para TV que opuseram em 1977 o jornalista britânico David Frost e o primeiro presidente a renunciar ao cargo nos EUA, Richard Nixon.

O ponto de partida é a peça de teatro de Peter Morgan, de imenso sucesso há três anos na Inglaterra e nos EUA. Morgan é uma das belas revelações da dramaturgia britânica, para os palcos como para as telas. Basta lembrar os certeiros roteiros que escreveu para “A Rainha”, de Stephen Frears, e “O Último Rei da Escócia”, de Kevin Macdonald.

A versão para cinema teve a sabedoria de manter o dramaturgo como roteirista e, muito mais raro, o par de atores principais da montagem teatral, com o veterano Frank Langella fazendo Nixon e Michael Sheen vivendo Frost. É uma dupla eletrizante.

Langella não parece fisicamente com Nixon, ainda que para o filme algum esforço de maquiagem busque certa aproximação. Mas Langella e Nixon têm em comum uma semelhança mais importante do que a da aparência. São grandes atores de carisma negativo, ou de raro magnetismo antipático. Ambos se impõem projetando um lado sombrio, como Darth Vaders que dispensam a fantasia.

A história é bem outra com Michael Sheen. Sutileza é a chave de seu talento. Ele interpreta em registro minimalista personagens maiores do que a vida, como o Tony Blair de “A Rainha” ou o extravagante Frost agora. Sheen evita a afetação e a mímica gestual para abraçar o simples e coloquial. Não ter sido sequer indicado ao Oscar por essas duas performances é quase um prêmio involuntário.

“Frost/Nixon” deve a eles o essencial de sua força. Mas cinema não é uma arte apenas de atores. É onde entra Ron Howard. Como cineasta, Howard é um guarda de trânsito. Evita atritos e ordena fluxos. Não se fazer notar parece ser seu ideal de ofício. Pode ser ótimo para produtores mas filmes realmente marcantes exigem algo mais. É por isso que, mesmo em seus melhores momentos, como “Apolo 13” (1995), falta algo para a verdadeira grandeza.

“Frost/Nixon” evita a combustão dramática mesmo em cenas potencialmente incandescentes, como a dos conflitos abertos entre perguntador e entrevistado. Toda aproximação entre Langella e Sheen solta faíscas mas há como que um bombeiro a abafa-las. Perdoe-me a brusca mudança de metáfora, mas é uma sensação de coito interrompido que acompanha todo o filme.

Apesar dos pesares, “Frost/Nixon” é uma obra no mínimo intrigante ao estimular pelo menos três níveis de reflexão. Há, de cara, sua dimensão eminentemente histórica. Raros filmes captaram com igual intensidade o mal-estar americano da era de Watergate. Quase no calor da hora, “Todos os Homens do Presidente” (1976), de Alan J. Pakula, reconstituiu-lhe os fatos, com inegável e perene eletricidade. Já o espírito decadentista daquele período de traição aos mais belos ideais norte-americanos ressurgiram nas telas apenas em 1997 com a adaptação por Ang Lee do romance de Rick Moody no subestimado “Tempestade de Gelo”. “Frost/Nixon” fecha agora esta trilogia nixoniana.

Uma segunda leitura interessante é compreender o texto de Morgan como um espelho retrovisor da era Bush para a era Nixon. A sabatina televisiva de um ex-presidente impopular sobre atrocidades e vilanias como a guerra do Vietnã e o escândalo de Watergate reflete inequivocamente as questões irrespondidas pelo então presidente igualmente impopular sobre suas atrocidades e vilanias, leiam-se Iraque, Guantánamo, Abu Ghraib, despotismo interno contra direitos individuais. “Se o presidente o faz, é por que não é ilegal”, a certeira frase criada por Morgan para Nixon, parece um desabafo saído diretamente da boca de George W. Bush.

Por fim, “Frost/Nixon” discute o poder da TV como arena fundamental da sociedade contemporânea. Faz isso de maneira subliminar e sutil, em registro menos apocalíptico do que o de seus dois principais antecessores, não por coincidência rodados ambos por Sidney Lumet: “Rede de Intrigas” (1976) e “Os Donos do Poder” (1986).

O definitivo julgamento político de Nixon deu-se fora do arcabouço judiciário institucionalizado. O processo contra o presidente renunciante aconteceu num cenário de entrevista. É diante de um júri de milhões de telespectadores que depõe Nixon. “Frost/Nixon” trata do começo de novos tempos, com inéditos desafios para a democracia – e ainda os vivemos.

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