domingo, abril 26, 2009

Duelo de Titãs



PESOS-PESADOS DO CINEMA FRANCÊS, CLAUDE CHABROL E GÉRARD DEPARDIEU FALAM DE SEU NOVO FILME, "BELLAMY", DE LITERATURA E DA CRISE DA SÉTIMA ARTE


"Para mim, Godard virou um pouco o Karl Lagerfeld da 7ª arte"
(Depardieu)


PASCAL MÉRIGEAU

Eles vinham brincando havia anos com a ideia de trabalharem juntos. Desse desejo comum nasceu "Bellamy" [ainda sem data de lançamento no Brasil], filme dedicado "aos dois Georges" (Simenon, escritor, 1903-89, e Brassens, músico, 1921-81).
Gérard Depardieu tinha conhecido o filme no dia anterior, e o encontro estava marcado para as 13h. Ao meio-dia telefonou para dizer que seria às 12h30, em razão de um encontro que tinha marcado às 14h.
Claude Chabrol já estava nas redondezas; Gérard chegou apressado, mas dominado por um desejo irreprimível de comer escargots.
Duas horas e meia mais tarde, todos ainda estavam em volta da mesa.
Quando Depardieu partiu, depois de devorar duas dúzias de moluscos e um prato de vitela com feijão e muito atrasado para seu encontro (algo raríssimo em se tratando dele), Claude permaneceu mais um pouco para falar de Gérard.

GÉRARD DEPARDIEU - Achei o filme muito comovente. Ele me fez pensar no cinema que amo, acrescido de mais alguma coisa, aquilo que chamamos de estilo. Maurice Pialat [1925-2003] e François Truffaut [1932-84] tinham estilo...
CLAUDE CHABROL - Mas não era o mesmo!
DEPARDIEU - Não, mas me deixa espantado que um cineasta que fez 50 filmes se mantenha tão ligado a sua época. Seu filme me deu a impressão de fazer parte de uma sociedade privilegiada, a sociedade da cultura.
A menor réplica tem um estilo e, contrariamente ao que se pensa geralmente, para que seu estilo seja reconhecível é preciso que o autor tenha grande humildade.
A ambiguidade dos personagens é extraordinária. É o caso de Bellamy, esse delegado de polícia vítima de uma imagem de "astro" que só existe na cabeça dos outros.
Ele a vê no olhar de sua mulher (Marie Bunel), de seu irmão (Clovis Cornillac), do personagem representado por Jacques Gamblin.
CHABROL - O que você descreve é a verdadeira realidade do filme. O resto só está ali para ilustrar o real e ajudar as pessoas a compreendê-lo. Com uma pequena brincadeira, que está no fato de que o lado fictício é tirado de uma notícia de jornal e que a realidade é imaginária.
DEPARDIEU - É como na cozinha: quando não há nada a fazer senão brincar, você faz a receita à perfeição! Não estava tudo claro no roteiro; eu tive um pouco de medo desses flashbacks, mas na tela eles passam sozinhos, na fronteira entre o que o personagem vive e o que imagina.
CHABROL - Houve uma hora em que pensei em dar um tratamento diferente a esses momentos. Chegamos a pensar em colori-los, mas teria sido muito artificial.
DEPARDIEU - Cada resposta no filme é precisa; o menor detalhe tem sua razão de ser.
A construção é o elemento de que mais sinto falta no cinema de hoje. Como Truffaut no passado, você fala de cinema e de sua relação com a sociedade, mas hoje o que se procura é apenas o espetáculo e a eficácia. Aqui, há a vida.
O irmão, por exemplo, transmite uma ideia de coitado que remete ao literário. Ele me faz pensar em Dostoiévski.
CHABROL - Procuro revelar o que é um indivíduo para, assim, me aproximar da natureza humana. Sem tentar esgotar o assunto! Com relação à construção, você tem razão. Vejo cada vez mais filmes feitos para a TV que não têm mais forma humana: à medida que avançam, em lugar de revelar, se tornam cada vez mais uma coisa qualquer, sem sentido, e a gente não entende mais nada.
DEPARDIEU - Quando li o roteiro tive a impressão de que seria um filme de ambiente, de estado de espírito. Mas então fui percebendo que cada resposta era capaz de provocar risos. É esse o grande talento: inventar respostas que, uma vez ditas, se tornam engraçadas porque são verdadeiras.
CHABROL - Basta decidir que o personagem terá humor. Por exemplo, quando vai à loja de materiais de construção e lhe perguntam se veio comprar pregos, e ele responde: "Espero que não!".
DEPARDIEU - Enfim, para escrever isso é preciso ter mais de uma hora de voo. Não sei se Bellamy tem humor, mas sei que é um homem que não escapa de si mesmo.
CHABROL - Acaba ganhando consciência da realidade das coisas.
DEPARDIEU - Sua verdadeira motivação é o desejo de reencontrar sua mulher.
CHABROL - Tenta por todos os meios reencontrar a si mesmo!
DEPARDIEU - Há momentos no filme em que, durante sete ou oito minutos, há uma reunião de coisas que de repente se liberam. A gente está no escuro, no abstrato, e a grande emoção vem de saber que podemos estar ali. Enfim, é a emoção, algo que não requer explicações. Voltamos a Flaubert. As pessoas se superam em suas conquistas amorosas.
CHABROL - Com a única condição de evitar qualquer romantismo. Simenon não era um romântico, e nisso ele era bem mais próximo de Dostoiévski do que de Balzac.
DEPARDIEU - Pronto: "Bellamy" fica entre Flaubert e Dostoiévski. Gosto disso.
Hoje se tornou muito difícil encontrar prazeres excepcionais suscitados por emoções simples. Nossa humanidade é totalmente atacada; reconhecer um gosto virou praticamente uma façanha. Por acaso, os escargots...
Essa noite liguei a televisão, estava passando um filme e eu vi imediatamente que era um dos seus. E não porque tinha Stéphane Audran...
CHABROL - Se bem que ajuda!
DEPARDIEU - Mas o azul do vestido, os toques de laranja, os enquadramentos, tudo isso só podia ser seu trabalho. Você faz pastéis, sendo que [Maurice] Pialat pintava com uma faca.
Basta um plano para a gente saber que é um filme de Chabrol. Isso é estilo, isso é uma marca própria.
Do mesmo modo como [Elia] Kazan sempre usava objetivas de 18, 25...
CHABROL - Nem sempre!
DEPARDIEU - Talvez, mas em "A Terra do Sonho Distante". É sua identidade, sua marca.
CHABROL - Esses caras não precisavam se disfarçar. Hoje as pessoas que estão na moda são artistas que acham que são obrigados a se disfarçar.
DEPARDIEU - Porque o que produzem não serve para nada! Como a produção deles é inútil, eles se vendem como proprietários. Para mim, Godard virou um pouco o Karl Lagerfeld da sétima arte.
Sei que há quem goste muito disso, mas para mim o que ele faz hoje é entediante. Não existe um movimento suficientemente importante para passar por cima das tendências.
CHABROL - O filme que ele fez com você foi interessante ("Infelizmente para Mim", de 1993). Mas você tem razão quando diz que hoje só há modismos. O primeiro filme da nouvelle vague foi "Toni". [Jean] Renoir o fez em 1934, e foi de um modernismo absoluto. Então as modas...
DEPARDIEU - Atenção, preto e branco! Portanto, velho e ultrapassado! Sinal externo do cultural, sensibilidade que não é de hoje.
"Bellamy" vai na contramão -carrega essa memória em si.
CHABROL - É uma questão de encontrar a proporção certa entre a trama e os personagens. E eu me esforcei conscientemente para que a trama fosse claramente separada dos personagens. (...)
[Sobre escrever e representar] A única vez em que escrevi para um ator foi uma encomenda, "Armadilha para um Lobo", para Jean-Paul Belmondo (1972). Entendi rapidamente que aquilo era uma brincadeira e que eu não tinha outra saída senão levá-la adiante.
Escrevi "Bellamy" para Gérard, queria deixá-lo espantado. Eu lhe dizia que rodaríamos o filme em dois anos; ele não acreditava e dizia o que dizia sempre, que o filme já estava praticamente feito. Então mandei o roteiro a ele e nós o rodamos em Nîmes, porque foi ali que nos conhecemos.
DEPARDIEU - Isso não é inteiramente verdade. Ele também é preguiçoso! Aliás, a contradição é que as pessoas ao mesmo tempo o tacham de preguiçoso e dizem que ele faz demais. É uma crítica que também pode ser feita a mim.
O filme é fruto de nosso desejo de contar uma história com o que conhecemos do cinema e da história do cinema.
Eu não procurei saber mais que isso, e, quando recebi o texto, encontrei 20 histórias dentro da história. Por trás de cada vírgula, você enxerga mudanças de plano. São verdadeiras pontuações.
CHABROL - É verdade, eu edito com vírgulas. [A atriz] Isabelle Huppert também entendeu isso. Para mim, quanto mais a coisa é preparada, melhor funciona. Para não cair na autobiografia, Odile Barski [corroteirista] se encarregou de tudo o que remete um pouco a mim, especialmente as relações de Bellamy com sua mulher, que se parecem com minhas relações com Aurore.
Mas era Gérard que me interessava -a ideia de encontrar um disfarce que conviesse à expressão de sua personalidade, tal como eu a queria mostrar. Gérard possui uma espécie de sabedoria; é meio a meio. Essa é também minha ideia da vida.
Quando lhe perguntaram se a vida era resultado de seus próprios esforços ou do acaso, Fritz Lang respondeu: "Meio a meio".
Acho que as pessoas frequentemente são tolhidas por seu absolutismo: o filme termina num plano metade mar, metade céu.
[Nesse momento Depardieu parte para seu encontro.]
Gérard faz parte das pessoas para as quais as outras existem. Ele sente a necessidade de uma relação verdadeira, é por isso que tem necessidade de tocar as pessoas fisicamente. Ele tenta esconder isso; a questão é saber por que quer escondê-lo.
Tenho uma queda tremenda por ele. A frase sobre a dignidade -"encontrei uma certa forma de dignidade em desprezar a mim mesmo"- é a chave do filme. Eu disse a ele antes de filmar que, de certo modo, é assim que o vejo, embora no caso dele não se trate de desprezo, mas de autoironia.
E disse isso para que não ficasse constrangido. Quando ele pronunciou a frase, senti um arrepio nas costas.


A íntegra desta conversa saiu na revista francesa "Le Nouvel Observateur". Tradução de Clara Allain .

Quem é Depardieu

DA REDAÇÃO

Gérard Depardieu (1948) é um dos mais celebrados atores franceses em atividade. Atuou em filmes de Bernardo Bertolucci ("1900"), Alain Resnais ("Meu Tio da América") e François Truffaut ("O Último Metrô").
Em 1990, ganhou o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes pelo filme "Cyrano" (de Jean-Paul Rappeneau), pelo qual também foi indicado ao Oscar.
Interpretou ainda o gaulês Obelix em três filmes adaptados da HQ francesa "Asterix".

Quem é Claude Chabrol

DA REDAÇÃO

Nascido em Paris, Claude Chabrol (1930) estudou ciência política na Universidade Sorbonne. Nos anos 50, começou a escrever para a revista "Cahiers du Cinéma" -epicentro da nouvelle vague e onde também trabalharam Godard e Truffaut. Mais tarde, com o dinheiro de uma herança, produziria e dirigiria "Nas Garras do Vício" (1958), um dos primeiros filmes do movimento.
Em 2005, recebeu o Prêmio René Clair pelo conjunto da obra.

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