Angeli
por HELOÍSA HELVÉCIA
Angeli sossegou na vida privada, mas nem por isso o cartunista mais conhecido do país abre mão de provocar com seu trabalho ardido e de contribuir como mau exemplo para esse "mundo limpinho"
Até que enfim Angeli chegou. Atrasou-se para a sessão de fotos, dormiu só três horas na noite anterior. Chegou atrás dos infalíveis óculos escuros, mas não mascarado.
"Aqui a gente ainda pode fumar, não?", disse, ácido, antes da primeira pose, transferindo o malrborão do bolso do jeans para a guarda de Carol, sua terceira mulher e também a empresária, a assessora, o office-boy, a secretária, "a que toma-conta-de-tudo" relacionado à vida e à obra do chargista mais popular do país.
O mais popular e o melhor, segundo as últimas 12 edições do HQ Mix, principal honraria das artes gráficas brasileiras. Todo ano, Angeli sai da premiação com um troféu na mão e um tormento na cabeça: "Volto pensando que preciso avançar na linguagem, depurar o desenho, mudar a fórmula. Não posso cair no normal. Aí viro o pior".
O cara que, sem nenhuma piedade, fez barba, bigode e topete nos últimos presidentes brasileiros anda evitando caricaturas. Hoje, acha "meio banana" desenhar político.
Principalmente depois de saber que José Sarney coleciona ilustrações de si mesmo. E de ouvir do senador: "Você é o melhor". Diz que se sentiu ofendido. "Busco o humor que político nenhum possa capitalizar. Aquilo foi uma derrota para mim. Mas valeu, me fez pensar mais."
Pensar mais resume a filosofia de trabalho segundo a qual "o que sai rápido e sem esforço não é bom". Ano após ano, Angeli vem refinando o comentário visual que publica na página A2 da Folha desde 1973.
Cansou de rabiscar homenzinhos com balõezinhos, acha isso "ridículo" ou, na melhor hipótese, um embrião sobre o qual será preciso suar até que desapareçam pessoinhas e falas. "É sofrido, mas é gostoso."
Mais sofrido ainda quando chega a hora de despachar para o jornal o recheio do seu quadrado e o virginiano meticuloso, 20 cigarros fumados e dez unhas roídas, ainda não está feliz com a expressão da ideia. Fica de manhã até a noite limpando a charge -se é que dá para usar esse verbo no caso de um desenhista que jamais economizou em cuspe, vômito, sangue, lama e pústulas, as dos bares e as dos parlamentares.
Não é só a podridão alheia que ele espia, como sabem os leitores da Chiclete com Banana, a tira diária que criou para a Ilustrada. Os quadrinhos, habitados por fauna rica, mas praticamente extinta, deram origem, em 1983, à revista de humor que virou referência e influenciou uma nova geração de cartunistas.
A tira foi e continua sendo seu divã público. Quando passou a ser reconhecido e incensado, criou o Walter Ego. Que só perdeu em narcisismo para um Fernando Henrique que Angeli viu e mostrou nas centenas de charges da era FHC. "É fácil ficar com o ego nas alturas. É fina a linha que divide o prazer da visibilidade da babaquice. O Walter só existiu para resolver meu problema de ego. Temi virar babaca. Mas tive alta." A arte de Angeli incluiu a arte de zoar a si mesmo.
NÃO SOU PALHAÇO
Na sessão de fotos, reivindicou não ser feito de Didi Mocó, ou seja, não ser tratado como palhaço, à la Renato Aragão. Depois, já relaxado no estúdio-casa do edifício Bretagne, no bairro paulistano de Higienópolis, o humorista disse odiar que lhe peçam sorrisos: "O humor que faço é negro, sou carracuncudo, não sou de muita festa. Às vezes, confundem meu trabalho com o de comediante. Nem por isso me visto de palhaço."
Na mira da câmera, descontraiu-se mais quando lhe pediram pose com cigarro. Registrada a baforada, debochou da lenda: "Legal. Agora quer fazer uma com cocaína?".
O selo de "muito louco" já deu o que tinha que dar. Foi mesmo, quem não sabe? "Eu me recusei a tirar o pé da jaca por muito tempo." Até hoje, é abordado por desconhecidos que chegam íntimos e intimando: "Cara, você é o maior locão".
Não é porque colocou no mundo tipos insanos que Angeli "arrasta a língua no chão", como leu outro dia ao seu respeito, num blog.
Óbvio, a matéria-prima dos seus quadrinhos veio de coisas bem experimentadas. Mas não custa repisar que não foi na mesa de bar, e sim na prancheta, na pressão dos prazos de entrega e na esgrima com ideias nem sempre incríveis que ele garantiu o sucesso do seu pessoal: a pé na jaca Rê Bordosa, o fetichista Ed Campana, o punk Bob Cuspe, os sacanas Skrotinhos, o festivo Meiaoito e os outros menos lembrados.
Todos mortos. Se bem que a velha "junkie", sacrificada em 1987, foi vista por aí, andando e falando no YouTube, em festivais de cinema. É a estrela do premiado curta de Cesar Cabral, o "Dossiê Rê Bordosa".
"Foi por meio da Rê que parei de me drogar. Com ela percebi o quanto era inútil passar noites e noites cheirando, fumando e transando com as pessoas erradas", diz Angeli.
Mesmo depois de seu criador virar a página, essa turma dos anos 80 insiste. Os bichos-grilos Wood e Stock estão em "Sexo, Orégano e Rock'n'Roll", primeiro longa de animação com personagens nacionais que, para Angeli, "não chegou lá".
Tem criações que só funcionam no papel, defende. Vamos ver, então, o que será da Mara Tara, aquela de espartilho, meia-arrastão e chicote na mão que vai para o cinema com Christiane Tricerri. A atriz finaliza um roteiro com a ninfomaníaca.
"Fiquei cansado desses personagens. Por um tempo me aprisionei nesse caminho. Não sabia para onde ir com eles, mas não sabia como abrir mão. Arrastei um pouco."
Até o desapego. Diz que desapego é traço seu. Não possui nada, nem carro. Só agora está comprando um imóvel, para separar casa de estúdio. "Tive oportunidades antes, mas preferi investir em cocaína."
O cartunista vem fazendo experimentações tanto na página A2 quanto nos quadrinhos. "Gosto do resultado na charge, mas na tira ainda estou tateando. Curto algumas coisas, outras estão verdes."
Sua série recente da mulher descabeçada seria uma das verdes. Nem perdeu tempo em falar a respeito. "Ah, vou acabar logo com isso, não estou gostando. Mas é desejo de abordar a atitude do homem medieval, que maltrata mulher".
No papel, ele também maltrata. Prepara mais um livro baseado na sua coluna "Let's Talk about Sex", do UOL. No primeiro, "Sexo É uma Coisa Suja" (Devir, 2003), não faltam fêmeas mutiladas, siliconadas e comidas _em cenas de canibalismo mesmo. "Estou avançando no desenho erótico. Esse trabalho me dá prazer, gosto de ser maldoso."
Quando ainda era o Arnaldo, filho de outro Arnaldo, o funileiro, fazia maldades na escola. Natural: era o maior da turma, repetiu várias vezes. "Eu já tinha barbinha, estudava com os pequenos, então só me restava ficar oprimindo a molecada". Cabulava aula nos campos de várzea da Casa Verde, para brincar de guerra e imitar o astro do telerringue Ted Boy Marino. Garoto da periferia, também teve a sua fase de mexer com mulher em porta de padaria.
Parou de estudar na primeira série ginasial, depois de um colega lhe apresentar "O Pasquim", em 1969. "Foi minha tábua de salvação. Já estava mal na escola, mal com a família. Virei cartunista ali."
Fugido da escola para nunca mais voltar, Angeli viveu e aprendeu do jeito que deu. "Eu me reciclo aos trancos e solavancos. Sou autodidata." Nunca fez curso de desenho, nunca fez curso de nada. Ele lembra de dois títulos que marcaram sua adolescência: "O Lobo da Estepe", de Hermann Hesse, e "As Portas das Percepção", de Aldous Huxley. "Ali me tornei curioso."
Ampliou essa prateleira hippie ainda no início dos 70, quando alugou uma casa no Brooklin junto com amigos da Casa Verde "que tinham pretensões artísticas e intelectuais". Era um centro de artistas frequentado por gente que, informalmente, apontava o que era importante ler, ver, ouvir etc. "Recebíamos visitas que colaboraram muito com nossa formação 'intelectual' e sexual."
O grupo voltou para a Casa Verde quando a polícia passou a vigiar o "aparelho" cultural. "Mas voltamos diferentes. Com outra bagagem."
PIRANDELLO NO BANHEIRO
As deficiências em gramática, o cartunista enfrentou com a ajuda da segunda mulher e mãe de seus filhos, Márcia, que é diretora de TV. "Sempre tive agilidade para ordenar um texto, mas desfalecia a cada encontro com as regras."
Queria ler mais. Se antes traçava jornais de cabo a rabo, agora vai direto "ao que interessa". Os livros, que devorava "de uma tacada", hoje são consumidos em outro ritmo. "Pirandello fica no banheiro, para leitura matinal; `O Jogador', de Dostoiévski, vive em cima da prancheta, e vou lendo aos nacos."
"Os Reis do Iê-Ie-Iê", dos Beatles, foi um marco cinematográfico nessa longa e conhecida trajetória -que "atravessou o delírio hippie, raspou na militância e berrou no punk rock", como bem sintetizou Angeli. "Com os Beatles, dei uma entortada. Comecei a pensar em como eu queria ser, na roupa que eu queria vestir."
Hoje, Angeli se preocupa em continuar sendo o que é sem parecer "um Elvis Presley velho". Já foi menos discreto no vestir. "A idade em que estou é um perigo. Não quero estagnar, mas também não posso me vestir como um senhor de 53 anos. Nunca usei terno. Assumir minha idade com as influências que carrego é como fazer um doce sem deixar desandar. A roupa é importante para mostrar o que penso."
Ele nem se considera mais roqueiro. Um de seus dois filhos, o produtor musical Pedro, 28 (a outra é Sofia, de 22), mostrou a ele bandas novas, sons eletrônicos. Adora Franz Ferdinand e Arctic Monkeys. Mas ainda escuta muito Bob Dylan e também guarânia, calipso _o ritmo, não a banda, bem entendido.
O frescor vem dos filhos e vem também de Carol, 32, designer gráfica e arquiteta de formação, com quem está há mais de uma década. "Conheci Carol quando ainda estava sujo da poeira da noite, cheirava a banheiro de bar. Ela veio limpinha, novinha, fresquinha. "
Os dois se cruzaram no lançamento de um dos livros dele. A moça, na época com 17 anos, virou no ato a arte-finalista de Angeli. Carol diz que era fã do Bob Cuspe desde pequena. "Mas nunca fui aquele tipo fanática ardorosa, que conhece tudo do autor e tem a maior fixação."
A legião de "ardorosas com fixação" já deu mais trabalho para Angeli. Quando o chargista circulava pela noite, elas descobriam o telefone, rondavam o estúdio, faziam campana. "Eu alimentava. De um tempo pra cá passei a dar menos importância para isso". Outro dia, uma tiete comentou na internet ter visto o Angeli e atestou que ele "ainda" é boa pinta. O povo que diz.
A droga mais pesada que Angeli usa é o trabalho. Quando está de folga, diverte-se desenhando. Dos maus hábitos, ficaram os de roer unha, fumar e dormir pouco.
Sente dores na coluna. Tem bico de papagaio. "O médico diz que tenho que fazer exercício. Mas tenho preguiça." Está há um mês com um dedo dolorido, não consegue dobrar. Ainda não marcou consulta.
A médica indicou férias para ele largar o cigarro, associado ao processo criativo. "Quando breco numa ideia, acendo um e vou em frente."
Mas seu projeto é no máximo fumar menos, sem pretensões de pureza. "O mundo está ficando muito limpinho, mas ainda faço parte dele, então participo como mau exemplo. Quero que me usem como baliza."
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