quinta-feira, dezembro 25, 2008

Selton Mello estréia com Feliz Natal


Resenhas dos alunos de Cinema da Metodista do novo (primeiro como diretor) filme do ator.


Existe um deslocamento latente quando chegamos nessa época de fim de ano. As festas, os olhares e o clima nostalgico nos corroem apesar da aparente intensão de esquecimento do passado e dos fatores que nos formaram perante seus amigos e família. Todos se reunem e nos desejam "feliz natal", o sobrinho chato, a tia bêbada, o tio "aproveitador e conquistador", o marido capacho da esposa e o tio deslocado de tudo aquilo. Feliz Natal, longa de estréia do ex-ator Selton Mello é sobre isso, relações pessoais e familiares e suas consequências filtradas por aparências.

Calcado em Lucrecia Martel e John Cassavetes, Selton Mello consegue uma estréia regular, com momentos incríveis de aprofundamento psicológico de seus personagens, e outros momentos visíveis de repetição de linguagem que acabam por irritar sua platéia, comum em filmes de estreiantes. O êxito de Selton em sua obra é de conseguir retirar a densidade exata de seus atores, todos tem seu momento de brilhantismo, como Darlene Glória como o ponto mais vísivel da disfuncionalidade da família com sua vó/mãe/tia/sogra inteiramente acabada e entregue a seus vicios e seu passado, e Lucio Mauro desconstruindo seu personagem típico de humor.

A fotografia de Lula Carvalho consegue com êxito exprimir sua necessidade densa e climática em todos os momentos do filme, mas se torna falha quando repete enquadramentos do perfil do personagem vivido por Leonardo Medeiros em quase todos os seus momentos. Mas é uma fotografia agil, que indica a solidão e sofrimento dos personagens ali mostrado, com hiper-closes e seu alto-contraste.

Fica claro que Selton Mello expõe sua obra com sinceridade e conhecimento, mas existem ainda falhas comuns a diretores que estão começando sua carreira. No caso de Selton esses erros não atrapalham inteiramente o andamento do filme e ele consegue nos deixar interessado pela sua história, apesar das poucas respostas e resoluções apresentadas. É de se esperar novos filmes desse ex-ator e agora realizador e contador de histórias.


Kauê Klomfahs Marin Maria



Feliz Natal e Próspero Cinema Novo

O ator Selton Mello estreia como diretor com um longa-metragem que de feliz só tem o nome. Com o irônico título “Feliz Natal” , o filme de Selton visa abordar questões familiares através do conflito causado pela visita de Caio á sua família após anos de separação. Caio retorna na noite de Natal em busca de reconciliação e em uma tentativa de entrar em termos com seu passado , devastado por uma desmedida somente revelada no clímax. Leitores mais atentos ficarão empolgados com essa sinopse, talvez o próprio Aristóteles ficasse, porém o resultado final é: muito movimento e pouca catarse.
O problema maior talvez esteja no roteiro, não em sua estrutura de desenvolvimento, mas na construção dos personagens. Há poucos elementos indicativos em relação a sua personalidade, seu passado, suas ambições ou verdadeiras opiniões. Os personagens verbalizam intenções mas agem de maneira aleatória e sem propósito. Me pergunto por exemplo, qual foi a relevância da cena em que Graziela Moretto se observa nua no espelho , ou da conversa na beira da piscina.Há também passagem em que o amigo de Caio é baleado, sua única função seria promover a reconciliação dos irmãos após uma recente ruptura, mas no entanto nada acontece, temos mais um evento em que a dramaticidade se baseia quase que exclusivamente no fato de haver um personagem supostamente carismático em uma situação de proximidade com a morte.

Outro indicativo de falta de elaboração dos personagens é o constante uso de super-closes. Talvez tenha sido um experimentalismo excêntrico de um jovem diretor ávido em mostrar serviço, entretanto,fica no ar a sensação de um certo desespero em relação à tentativa de se criar intimidade com os personagens. Como se proximidade física suprisse sua má construção.A edição também deixa muito a desejar e a super utilização de inserts dá ao filme um ar de amadorismo pretensioso.

Todavia Selton conseguiu extrair atuações maravilhosas ,não só de Darlene Glória e do menino Fabrício Reis, como de todo o elenco. E o violão muito bem tocado da trilha sonora (as vezes mal utilizada)do talentoso produtor musical Plínio Poeta ,além de suprir falhas na estrutura, contribuiu de maneira decisiva na passagem para o último ato.

Apesar de Feliz Natal pretender acertar como Altman mas somente repetir os erros de Vincent Gallo, é um filme denso e ousado, sem espaço para trivialidades e com grandes atuações. É o cartão de visitas de um diretor que, apesar dos equívocos , trás algo antes nunca visto e demonstra uma característica que é sempre bem vinda em qualquer campo artístico :inquietação.

Celso Cunha

O filme de Selton Mello não conseguiu cumprir suas pretensões. Apesar das boas atuações, a trama, que parece sugerir um caminho interessante, se mostra confusa, pois não há aprofundamentos nas motivações e nos destinos dos personagens.

A trama começa a partir do momento em que Caio, que é dono de um ferro-velho no interior do Rio de Janeiro decide ir até à capital para passar o Natal com a família que não vê há anos. Mas esse seu retorno provoca reações das mais adversas possíveis por conta de um erro que cometeu no passado, e ele vê que sua família não está tão bem assim: o casamento do irmão não está bem, o pai desconta suas frustrações em sexo irregrado com mulheres bem mais novas e demonstra ao filho que não conseguiu perdoá-lo, a mãe desconta a suas com bebidas e a cunhada, que se mostra mais compreensiva, vai se mostrando, também, muito confusa em relação a si mesma ao longo da história.

Caio relembra o seu passado mais feliz, dando um tom de nostalgia e arrependimento ao filme. Entretanto, o que poderia se tornar uma narrativa rica, reflexiva, cheia de conflitos a serem explorados, se mostra superficial, dando a entender que ela é apenas um pretexto para Selton Mello fazer experimentos como diretor.

Marco Marão



quinta-feira, novembro 06, 2008

Antonio Banderas vai interpretar Salvador Dalí no cinema

“Dalí” vai misturar animação 3D e atores de verdade.
Outras duas cinebiografias do pintor espanhol estão em produção.

O ator espanhol Antonio Banderas está negociando com os produtores do filme “Dalí” para interpretar o papel do pintor surrealista nas telas, diz o site da revista “Variety”. O filme será dirigido por Simon Wast (“Tomb raider”, “Con air”), e concentra-se nos anos em que Salvador Dali morou nos EUA, fugindo da Segunda Guerra Mundial, e especialmente na usa relação com a esposa Gala, musa e empresária do artista.

“Dalí” terá cenas em animação 3D, além da ação com atores reais, procurando integrar ao filme a imaginação surreal do pintor espanhol. O filme deve começar a ser rodado no primeiro trimestre de 2009, na Inglaterra e na Espanha.

Duas outras cinebiografias sobre Salvador Dali estão em produção. “Dalí & I: The surreal story” (“Dalí & eu: a história surreal”) será estrelado por Al Pacino, com direção de Andrew Niccol (“O senhor das armas”, “Gattaca”), enquanto “Little ashes” ("Pequenas cinzas") traz Robert Pattinson (o Cedric Diggory de “Harry Potter”) no papel do jovem Dalí, mostrando sua relação com artistas como o cineasta Luis Buñuel e o escritor Frederico García-Lorca.

O ator espanhol Antonio Banderas está negociando com os produtores do filme “Dalí” para interpretar o papel do pintor surrealista nas telas, diz o site da revista “Variety”. O filme será dirigido por Simon Wast (“Tomb raider”, “Con air”), e concentra-se nos anos em que Salvador Dali morou nos EUA, fugindo da Segunda Guerra Mundial, e especialmente na usa relação com a esposa Gala, musa e empresária do artista.

“Dalí” terá cenas em animação 3D, além da ação com atores reais, procurando integrar ao filme a imaginação surreal do pintor espanhol. O filme deve começar a ser rodado no primeiro trimestre de 2009, na Inglaterra e na Espanha.

Duas outras cinebiografias sobre Salvador Dali estão em produção. “Dalí & I: The surreal story” (“Dalí & eu: a história surreal”) será estrelado por Al Pacino, com direção de Andrew Niccol (“O senhor das armas”, “Gattaca”), enquanto “Little ashes” ("Pequenas cinzas") traz Robert Pattinson (o Cedric Diggory de “Harry Potter”) no papel do jovem Dalí, mostrando sua relação com artistas como o cineasta Luis Buñuel e o escritor Frederico García-Lorca.

Crítica: Em 'Quantum of solace', 007 quer vingança

Novo filme de James Bond estréia nesta sexta-feira (7) nos cinemas.
De volta ao papel, Daniel Craig personifica o agente brutal e rebelde.

Da Reuters

A reinvenção de James Bond foi um dos grandes trunfos de "Cassino Royale" (2006) e, agora, em "007 - Quantum of solace", a mesma fórmula se repete com sucesso. O novo longa do agente britânico estréia na sexta-feira (7) em todo o país, em cópias dubladas e legendadas.


Adaptado aos novos tempos, "007 - Quantum of solace" tem tudo o que se espera de um filme de ação: sequências emocionantes ininterruptas, em que a tensão é movida ao som de tiros e carros destruídos.


De volta ao papel, o ator Daniel Craig personifica essa proposta como um agente brutal e rebelde, que trabalha para a Majestade britânica, mas não segue as regras de forma convencional. Com uma autonomia autoconcedida, Bond não mostra escrúpulos ao destruir os lugares por onde passa ou exterminar vilões e seus capangas.


Em "007 - Quantum of solace" (título que se manteve do inglês pela dificuldade de tradução, que seria algo como "quantidade de conforto"), Bond quer encontrar os responsáveis pela morte de Vésper (Eva Green), sua namorada em "Cassino Royale" que o traiu, porém, mais tarde, também se sacrificou por ele.


Em busca de vingança, Bond cruza o caminho de uma organização internacional secreta, que parece maior e mais perigosa do que o conjunto de agências governamentais de espionagem pelo mundo.


Como nem Bond nem sua chefe no M16, M (Judi Dench), têm qualquer informação sobre essa organização, o agente segue os passos de Dominic Greene (o ator francês, Mathieu Amalric, de "O escafandro e a borboleta"). Disfarçado de ambientalista, o vilão derruba e instaura ditaduras em países pobres da América Latina, de olho nas riquezas naturais exploráveis dessas nações.


Greene será a peça que permitirá a Bond conhecer quem são as pessoas por trás da organização, que, segundo um dos seus associados, "está em todo lugar". Para o trabalho, o agente contará com a ajuda de Camille (a ucraniana Olga Kurylenko), que também tem sua própria agenda, que inclui matar o ditador de seu país.


Com uma direção competente, assinada por Marc Forster (de "A última ceia"), "007 - Quantum of solace" tem entre suas principais qualidades a de prender o espectador na cadeira com seu ritmo acelerado.


No entanto, algo que pode decepcionar é o fato de ser um filme intermediário, que não explica ou dá pistas sobre os reais vilões da nova safra da franquia 007: a tal poderosa organização sem rosto, que está em todo o lugar. As respostas ficarão, provavelmente, para as próximas seqüências.


Por Rodrigo Zavala, do Cineweb

Morre Michael Crichton, criador de "Jurassic Park"

05/11/2008

por Vitor Drumond - do Cinema em Cena

O cinema perdeu uma de suas maiores fontes de inspiração. Michael Crichton, um dos escritores mais adaptados de Hollywood, morreu dia 04 de novembro, aos 66 anos.

Segundo seu site oficial, o autor faleceu depois de uma "corajosa e privada batalha contra o câncer".

Seu primeiro livro que teve uma versão para a tela grande foi O Enigma de Andrômeda,ficção-científica sobre um grupo de cientistas que investiga um vírus alienígena antes que ele se espalhe sobre a Terra. Formado em medicina, Chrichton escreveu a obra quando ainda cursava a faculdade. Sua preferência por contos que envolviam temas científicos atraíram os grandes produtores de Hollywood. Jurassic Park, provavelmente o mais famoso filme adaptado de um romance seu, tinha como base o retorno dos dinossauros através de combinações de DNA. Linha do Tempo, Twister, Sol Nascente e Assédio Sexualsão outros quatro entre tantos livros do autor levados ao cinema.

Crichton se tornou uma importante figura no mundo do entretenimento. Dirigiu e roteirizou alguns filmes, entre elesO Primeiro Grande Assalto de Trem, aventura estrelada por Sean Connery e baseada em uma obra homônima do autor, e Westworld - Onde Ninguém Tem Alma, uma mistura de ficção-científica e western, com roteiro original de Crichton. Seu último filme como diretor foi O 13º Guerreiro, com Antonio Banderas. Como roteirista, ainda escreveu o piloto de uma das séries mais longevas da atualidade, E.R. Em uma infeliz coincidência, este será o ano da 15ª e última temporada do drama médico.

Em uma declaração, a família do autor ressaltou a sua importância e a falta que ele irá fazer. "Através de seus livros, Michael Crichton serviu de inspiração para estudantes de todas as idades, desafiou cientistas em vários campos e iluminou os mistérios do mundo de um jeito que poderíamos entender perfeitamente. Sua falta será sentida por todas aquelas vidas que tocou, mas ele será lembrado por sua sede de conhecimento, seu desejo de compreensão e sua inteligência em prol de um mundo melhor".

segunda-feira, novembro 03, 2008

PodCast: Sabatina PIAUÍ com João Moreira Salles

por Eduardo Liron

Publicação exclusiva da sabatina realizada com o documentarista e jornalista João Moreira Salles, dia 30 de setembro de 2008 na PUC São Paulo, com patrocínio da revista PIAUÍ. Bom proveito.






Indicado a cinéfilos, estudantes de comunicação e curiosos

quinta-feira, outubro 30, 2008



Sam Mendes leva 'Preacher' para o cinema


Diretor de 'Beleza americana' é encarregado de adaptação.História em quadrinhos é assinada por Garth Ennis e Steve Dillon.


"Preacher" traz a história de um pregador que ganha poderes extraordinários (Foto: Reprodução)


O diretor britânico Sam Mendes, de "Beleza americana" e "Estrada para a perdição", resolveu aderir ao universo dos quadrinhos levando "Preacher" para os cinemas.


A Columbia Pictures comprou os direitos da HQ de Garth Ennis e Steve Dillon e encarregou Mendes de adaptá-la para o cinema.


"Preacher" conta a história de Jesse Custer, um pregador que é subitamente possuído por um ente sobrenatural chamado Gênesis, filho de um anjo e um demônio, e que lhe dá poderes extraordinários e o desejo de percorrer os Estados Unidos em busca de Deus, aventura na qual embarca com uma ex-namorada e um vampiro embriagado.



O Che em sua exata dimensão política


Sem mitificação, Steven Soderbergh volta os olhos ao personagem histórico


Luiz Zanin Oricchio

Sempre vai faltar alguma coisa num filme sobre Che Guevara. Ou falta apologia ou condenação. Falta discussão política ou aventura. Che, de Steven Soderbergh, um monumento de 260 minutos de duração dividido em duas partes, tira sua força daquilo que nega às pessoas. Quem odeia o guerrilheiro sentirá falta de uma condenação sumária à sua trajetória de vida e ao seu sistema de pensamento. Quem o tem como ícone talvez se queixe de falta de emoção e da exaltação de uma biografia sem mácula.


Desse retrato em dimensão humana, portanto cheio de arestas e contradições, quem sai ganhando é o espectador maduro, aquele que espera da vida algo mais que piedade ou moralismo. E ganha a própria memória do Che que, somando seus prós e contras, sai do filme com a dimensão que deve ter. Che encerra hoje à noite a 32ª Mostra de Cinema, em sessão para convidados. Pela manhã, concedem entrevistas os atores Benicio del Toro, que encarna Guevara, e o brasileiro Rodrigo Santoro, no papel de Raúl Castro. De uma vida tão cheia de peripécias como a de Guevara, Soderbergh escolhe duas fases-chave. O primeiro filme, O Argentino, enfoca seu encontro no México com os irmãos Castro, a campanha na Sierra Maestra e a entrada vitoriosa em Havana. O segundo, O Guerrilheiro, é sobre a aventura boliviana, que lhe custou a vida em 1967. Ficam de fora a infância e a juventude, a fase da administração revolucionária em Cuba, a guerrilha na África, etc.


Mas, de certa forma, as duas fases contempladas pelo filme bastam para compor um perfil bastante intenso - aliás, construído com consultoria de Jon Lee Anderson, tido como autor da melhor biografia de Guevara (Che Guevara - Uma Biografia, Objetiva, 924 pág., R$ 89). Diante da considerável massa de informações, há que fazer escolhas e Soderbergh optou por um díptico significativo - um, que fala de uma fabulosa vitória; o outro, a narrativa de uma derrota. O tom adotado é sempre o realista, seja na semelhança dos atores com os personagens, seja na verossimilhança buscada nas cenas de luta.


Benicio del Toro compõe um Che bastante convincente do ponto de vista físico, e magnífico como interpretação, que, aliás, lhe valeu a Palma de ator em Cannes, onde o filme concorreu. Santiago Cabrera é um ótimo Camilo Cienfuegos e Demián Bichir faz um Fidel Castro até engraçado pela semelhança física, pela fala, pelos tiques e até pelo modo de andar. Já Rodrigo Santoro é como talvez Raúl Castro gostaria de ter-se parecido em sua juventude. Quando lhe propuseram o projeto de Che, Soderbergh disse que se sentiu fascinado porque a vida do argentino era "quase uma aventura" e também porque havia um desafio técnico, o de "implementar uma idéia política em larga escala". Depois das 4h20, pode-se confirmar que Soderbergh se saiu muito bem desses dois desafios. Primeiro, porque a vida de Guevara não é "quase", mas sim uma aventura completa. Às vezes apenas insinuada, como na conversa com Fidel numa varanda do apartamento mexicano, quando este lhe conta que 82 pessoas iriam embarcar num iate, o Granma, que acomodaria oito ou dez, no máximo.


Em sua recordação, Che relembra que, dos 82 que saíram clandestinos do México em direção a Cuba, apenas 12 entraram vitoriosos em Havana. Todos os outros morreram pelo caminho, seja no desembarque, seja na Sierra. Nos combates em Cuba, uma passagem importante, um rito, na verdade. Embarcado como médico na expedição, Che torna-se guerrilheiro e, por fim, comandante de uma coluna, justamente a que tomaria o último reduto de resistência de Fulgêncio Batista, a cidade de Santa Clara, onde ele está hoje enterrado.


Há uma pequena nuance biográfica sobre esse episódio. No filme, quando sabe que um médico se incorpora ao grupo, o Che lhe diz: "Tenho um pequeno presente para você." E lhe passa a mochila com medicamentos, ato simbólico do abandono da medicina em favor da guerra. Em uma das biografias, a de Paco Taibo II, a cena da passagem é ainda melhor. No afã de desembarcar do Granma, em meio à lama e a tiros, o Che é obrigado a escolher entre carregar um pesado estojo de medicamentos e um caixote de munições para o seu fuzil. Prefere armamentos a remédios, o que lhe parece escolha natural para as circunstâncias. Como também lhe parece natural fuzilar traidores e desertores, fato escondido em biografias romanceadas ou realçadas fora do seu contexto de guerra nas versões antagônicas. Soderbergh opta por mostrar essas cenas, com dureza, porém sem sensacionalismo. É opção tanto cinematográfica como ética. A segunda parte - O Guerrilheiro - passa-se quase toda na Bolívia, onde Che entra disfarçado, com óculos, dentes falsos, sem barba e calvo. O aspecto político da aventura não é escondido, em especial as desavenças com o Partido Comunista Boliviano, contrário à luta armada. Há uma clara ligação entre os camponeses cubanos da Sierra Maestra, do primeiro filme, e os bolivianos, no segundo. Com algumas semelhanças (a miséria) e diferenças básicas. Se os cubanos identificaram-se com a guerrilha, o mesmo não se dá com os bolivianos.


Além disso, Che e seus guerrilheiros foram caçados na Bolívia pelo exército de René Barrientos, com apoio dos Rangers norte-americanos. Era uma guerra muito desigual e não poderia terminar de outro modo. As cenas dos guerrilheiros sendo dizimados são fortes, assim com a prisão de Guevara a 8 de outubro de 1967 e sua execução, no dia seguinte. Isento de sensacionalismo, o Che de Soderbergh parece ocupado em dimensionar Guevara em sua estatura humana e política. Não como mito, mas como personagem histórico, um dos mais influentes do século passado, pense-se dele o que bem se quiser.



SILVANA ARANTES da Folha de S.Paulo, em Cannes
Filme-acontecimento do 61º Festival de Cannes, "Che", de Steven Soderbergh, foi exibido na noite da última quarta, em sessão-maratona de quase cinco horas de duração --as 4h28 do filme e um intervalo de 30 minutos entre suas duas partes.


Na primeira metade, o longa se debruça sobre a participação de Che na Revolução Cubana (1959) e avança até o discurso do guerrilheiro na ONU, em 1964. A segunda parte de "Che" se concentra nos 341 dias que ele passou na selva boliviana, treinando guerrilheiros, até sua morte, em outubro de 1967.


"Cuba é um assunto que me interessa menos do que Che", disse Soderbergh. "Mas há muitos aspectos da vida de Che que as pessoas não conhecem. Se contássemos o que ocorreu na Bolívia sem mostrar o que houve antes, não haveria o contexto para entender a história."
Protagonizado pelo ator norte-americano de origem porto-riquenha Benicio del Toro, "Che" custou US$ 60 milhões (R$ 98,9 milhões) e foi rodado na Espanha, Bolívia, México, Porto Rico e nos EUA -em Nova York (a cena da ONU).


O ator brasileiro Rodrigo Santoro interpreta Raúl Castro, irmão de Fidel (vivido pelo mexicano Demián Bichir). "Foi uma honra fazer parte deste projeto", disse Santoro. "Éramos atores de todas as partes da América do Sul, trabalhando juntos na selva. Parecia um sonho de Che."
"É necessário aplaudir o fato de que um realizador norte-americano tenha rodado dois filmes sobre Guevara em espanhol", observou o cineasta brasileiro Walter Salles, cujo "Diários de Motocicleta" aborda a juventude de Che. Com seu novo filme co-dirigido por Daniela Thomas, "Linha de Passe", Salles concorre com "Che" e outros 20 longas à Palma de Ouro desta edição.
"Não se pode fazer um filme com um mínimo de credibilidade sobre esse assunto sem que ele seja falado em espanhol", disse Soderbergh, que elogiou "Diários de Motocicleta"- "Walter o fez muito bem". Del Toro afirmou que "não foi fácil" atuar em espanhol. "Meu [sotaque] espanhol é de Porto Rico. Eu tinha 13 anos quando saí de lá e meu espanhol se manteve no mesmo nível. Che era um intelectual que se expressava no melhor espanhol."
Duas partes


Quando "Che" estrear nos cinemas, no próximo semestre, Soderbergh gostaria que ele fosse exibido em duas partes autônomas depois de uma semana em cartaz na versão integral. A distribuidora Warner, na França, porém, prevê lançar a primeira parte em outubro e a segunda em novembro.


O diretor achou "hilária" a recepção crítica desigual que seu filme teve em Cannes. "Enquanto uns o criticaram por ser muito convencional, outros cobraram mais momentos convencionais no filme", disse.


Sobre os que desaprovam o fato de "Che" ter um perfil positivo do guerrilheiro e favorável às suas ações, Soderbergh afirmou: "Conheço bem a argumentação dos que são anti-Che e sei que qualquer quantidade de barbaridades que incluíssemos nesse filme não seria suficiente para satisfazê-los".

quinta-feira, outubro 16, 2008


ENTREVISTA-Stone fala de filme sobre George W. Bush

POR JILL SERJEANT
LOS ANGELES - O diretor Oliver Stone nunca evitou controvérsias nos 30 anos desde que começou a fazer cinema, tratando de questões como a Guerra do Vietnã, em "Platoon" e a violência na sociedade, em "Assassinos por Natureza".


O tema mais recente do diretor três vezes premiado com o Oscar é o presidente americano George W. Bush. Seu filme "W." estréia nos EUA na sexta-feira, menos de três semanas antes de os americanos irem às urnas para eleger seu próximo presidente, em 4 de novembro.

O diretor Oliver Stone diz que "W.", seu filme sobre George W. Bush, é compassivo e pode surpreender o público



Oliver Stone, 62 anos, falou à Reuters sobre o que o levou a fazer "W." e lançar o filme neste momento.


P: Por que é importante lançar "W." tão perto da eleição presidencial americana de 2008, quando o presidente George W. Bush não é candidato à reeleição?


R: Tratamos do fenômeno Bush, e, não importa quem vença a eleição, seu impacto estará sob a sombra dessa presença imensa que existiu por oito anos e que mudou o mundo. Acho que muitas pessoas devem assistir ao filme porque, antes da eleição, faz bem refletir sobre quem elegeram nos últimos oito anos e sobre onde estamos neste momento, como país.


Qual é o legado mais preocupante da administração Bush?


Esse homem nos deixou o legado de três guerras: a guerra no Iraque, a guerra no Afeganistão e a guerra ao terror, além da política do ataque preventivo. São coisas muito perigosas em termos de política externa.


Internamente, ele assumiu para o Executivo privilégios que nunca antes foram reivindicados com tanto extremismo e por um período tão longo. Ele infringiu leis e deixou de implementar leis com as quais discordava.


Por que você não fez esse filme quatro anos atrás, quando o presidente Bush era candidato à reeleição?


Não tínhamos as informações. O período 2000-2003 da presidência Bush foi uma obra-prima orwelliana na qual todos os documentos foram mantidos em sigilo e qualquer pessoa do círculo interno do poder que falasse com a imprensa era demitida. Esse sujeito foi infalível durante três anos. Foi apenas em 2004-2005 que as informações começaram a vir à tona. Onde estaríamos sem os jornalistas investigativos?


Qual foi, em sua opinião, a força motriz da vida de Bush?


Bush cresceu com a maldição de ser o filho primogênito e a ovelha negra da família. Ele precisava provar que era mais forte (que seu pai). Para ele, então, conquistar um segundo mandato foi crucial, e, sobretudo, era crucial terminar o trabalho iniciado no Iraque. Acho que Bush personaliza uma série muito complexa de situações mundiais e as converte em questões de seu próprio ego, que descrevo como um ego de caubói ou John Wayne.


O que as pessoas vão achar surpreendente neste filme?


Ele foi feito com o coração. Acho que é um filme compassivo, e isso pode surpreender o público

Da EFE


O diretor Steven Soderbergh escolheu a jovem atriz pornô Sasha Grey para protagonizar seu próximo filme, "The girlfriend experience", informou nesta quinta-feira (16) a revista "Variety".
O projeto, um drama de baixo orçamento que atualmente é rodado em Nova York, conta a história de uma prostituta de luxo e faz parte do contrato assinado pelo cineasta com o empresário Mark Cuban para gravar seis filmes juntos.



O longa-metragem, produzido pelo estúdio independente Magnolia Pictures, tem roteiro de Brian Koppelman e David Levien, que assinaram "13 homens e um novo segredo" (2007), dirigido por Soderbergh.



Grey, de 20 anos, entrou no negócio pornô após completar 18 anos e apareceu em várias fitas do gênero. Em janeiro, conseguiu ser a artista mais jovem a receber o prêmio de melhor atriz do ano, concedido pelo Adult Video News (AVN).



Esta será a terceira aparição na grande indústria da atriz, que cita Jean-Luc Godard, Bernardo Bertolucci e Catherine Breillat como seus diretores favoritos. Grey também atuou em "Quit" e "Smash cut", explicou a publicação.



"Ter a oportunidade de trabalhar com um autor vencedor do Prêmio da Academia é realmente uma grande honra", disse a atriz ao portal da AVN.



"Fui fã dos filmes de Soderbergh durante anos e estou eufórica em ter o papel protagonista em um filme cheio de personagens", acrescentou.

32ª Mostra Internacional de Cinema dá carta branca a Wim Wenders, tem pré-estréia mundial de “Garapa”, de José Padilha, e exibe “Che” com a presença de Benício Del Toro


Além de retrospectivas de filmes de Ingmar Bergman e Kihachi Okamoto, a Mostra homenageia Hugh Hudson e exibe filmes inéditos no Brasil, como “Tulpan” e “Duska”
A 32ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, tradicional evento do calendário cinematográfico do país, que acontece entre 17 e 30 de outubro, traz neste ano uma seleção de 454 filmes de 75 países e mantém seu objetivo de contemplar a diversidade da produção cinematográfica atual, reunindo filmes de todas as partes do mundo que permitam uma visão aberta e pluralista da realidade e novas experiências estéticas.


A Mostra também traz à cidade obras de cineastas consagrados, seja na seção Perspectiva Internacional, seja em retrospectivas e apresentações especiais. Debates, palestras, exposições, shows e uma grande lista de convidados internacionais em São Paulo completam o programa. Petrobras A Petrobras apóia a Mostra Internacional de Cinema em São Paulo desde 2001 porque acredita que projetos como este defendem e valorizam a formação de novas platéias e o acesso aos bens culturais.


A Petrobras tem como compromisso em sua política de patrocínios fortalecer as ações de criação, produção, difusão e fruição das artes no país, papel este que a Mostra tem desempenhado com intensa eficiência no cinema brasileiro. Patrocinadores 32ª Mostra A 32a Mostra Internacional de Cinema em São Paulo é realizada com o patrocínio da Petrobras; co-patrocínio da Adidas; apoio de FAAP, Vivo, Unibanco, iG, Cosac Naify, Hotel Renaissance, Telecine, Condomínio Conjunto Nacional; apoio cultural SESC SP, Ministério da Cultura e Lei de Incentivo à Cultura, Governo Federal, Sabesp, Programa de Ação Cultural do Governo do Estado de São Paulo, Secretaria de Estado da Cultura, Governo do Estado de São Paulo; apoio institucional da Imprensa Oficial, São Paulo Turismo, Secretaria da Cultura da Prefeitura da Cidade de São Paulo; e promoção da Folha de S. Paulo, Globo Filmes e Rádio Eldorado.


Produção: ABMIC – Associação Brasileira Mostra Internacional de Cinema. Pré-estréia mundial de “Garapa”, de José Padilha A Mostra exibirá em sessão especial a pré-estréia mundial de “Garapa”, de José Padilha. “Garapa” é o terceiro documentário longa-metragem do diretor de “Tropa de Elite”, que também assinou “Ônibus 174” e “Estamira”. O filme aborda a questão da fome no mundo a partir de uma perspectiva microscópica, ao se aproximar de quem convive com o problema. A pré-estréia do filme será seguida de debate, promovido em parceira com o jornal Folha de S. Paulo. Carta Branca a Wim Wenders A 32ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo dá Carta Branca ao premiado diretor alemão Wim Wenders, para apresentar sua própria seleção de filmes. Wim Wenders também será homenageado com o Prêmio Humanidade, concedido pela Mostra a grandes cineastas como Manoel de Oliveira, Eduardo Coutinho e Amos Gitai. Com Carta Branca, Wenders indicou livremente uma relação de filmes que está incluída na programação do Festival.


Em sua seleção de 15 títulos, Wenders contempla filmes de cineastas clássicos, como François Truffaut (com “A Sereia do Mississipi”), Jean-Luc Godard (com “O Pequeno Soldado”) e Yasujiro Ozu (com “A Rotina tem Seu Encanto” e “Fim de Verão”) e obras de novos diretores representativos do panorama atual –como Sarah Polley (com “Longe Dela”) e Robinson Savary, (com “Bye Bye Blackbird”). Após a exibição de seu mais recente filme, “The Palermo Shooting”, em 21 de outubro, Wim Wenders comenta e justifica com a platéia os filmes de sua Carta Branca e sua nova realização. O cineasta estará em São Paulo entre os dias 20 e 22 de outubro, especialmente para participar da Mostra. Exibição de “Che” com Benicio Del Toro A 32ª Mostra cumpre seu papel de sinalizar as tendências do cinema mundial e traz a São Paulo importantes filmes inéditos no Brasil. Entre as novidades estão o longa de Steven Soderbergh, “Che”, estrelado por Benício Del Toro, que vem a São Paulo prestigiar a exibição do filme, que encerra a programação da Mostra. O filme terá sessões no dia 30, no Cine Bombril, e 31, no Cinesesc. Neste ano, Del Toro recebeu o Prêmio de Melhor Ator no Festival de Cannes por sua interpretação de Ernesto “Che” Guevara. Filmes inéditos no Brasil “Tulpan”, de Sergey Dvortsevoy, vencedor da mostra “Um Certo Olhar” do Festival de Cannes 2008, “Mil Anos de Orações”, de Wayne Wang, “Duska”, de Jos Stelling, “Horas de Verão”, de Olivier Assayas, “La Virgen Negra”, de Ignácio Castillo Cottin, “Veneno Cura”, de Raquel Freire, “Príncipe da Broadway”, de Sean Baker, “Oceano”, de Mikhail Kosyrev –Lambert, “Recurso Intangível Número 82”, de Emma Franz, “The Palermo Shooting”, de Wim Wendesr, “Revolução Revisitada”, de Hugh Hudson, “Fronteira”, de Rafael Conde, “Las Meninas”, de Ihor Podolchak e “Coyote”, de Brian Petersen, são mais algumas das várias atrações inéditas no Brasil que serão exibidas na 32ª edição da Mostra.


Homenagem a Ingmar Bergman


No ano em que Ingmar Bergman completaria 90 anos, a Mostra homenageia o cineasta com uma retrospectiva que privilegia filmes raros do início de sua carreira. Entre os títulos que farão parte da seleção estão “Crise” (1946), “Prisão” (1949), “Rumo à Alegria” (1950). Os filmes serão exibidos em cópias novas em 35 mm, produzidas com supervisão do Instituto Sueco de Filmes, órgão que difunde a cultura sueca no mundo. Frederik Gustafsson, do Instituto Sueco e especialista na obra de Ingmar Bergman, estará em São Paulo entre os dias 18 e 23 de outubro. A Mostra também apresentará a exposição “Meus Encontros com Bergman”, uma seleção de fotografias em que o cineasta aparece nos bastidores de peças teatrais e filmagens. As fotos, tiradas entre as décadas de 50 e 80, são do sueco Ove Wallin.


A exposição já passou por Estocolmo e Tóquio. Em São Paulo, as fotos ficarão expostas na Galeria do Conjunto Nacional. Retrospectiva Kihachi Okamoto A Mostra celebra o centenário da imigração japonesa com exibição da obra de Kihachi Okamoto (1924 – 2005), símbolo de uma era de ouro do cinema japonês construída quase anonimamente por talentos abnegados. O autor ganhará uma retrospectiva composta por 14 de seus 39 títulos. Kihachi Okamoto, um dos pioneiros do novo cinema japonês, já foi comparado a Samuel Fuller, mas permaneceu pouco conhecido fora do Japão. O diretor, no entanto, influenciou cineastas ocidentais contemporâneos como Quentin Tarantino (“Kill Bill Vol. 1 e 2”) e Jim Jarmusch (“Ghost Dog: Matador Implacável”). Além de seus notáveis filmes de samurai (chambara movies) e de gângster, Okamoto realizou importantes filmes de guerra. A Retrospectiva Okamoto apresenta-se em São Paulo graças às colaborações da Tokyo Filmex, Toho, The National Museum of Modern Art Tokyo, The Japan Foundation Film Library Tokyo, Fundação Japão de São Paulo, National Film Center Tokyo, Cinemateca Brasileira e a produtora Mineko Okamoto, viúva de Kihachi Okamoto. Mineko Okamoto estará em São Paulo entre 16 e 31 de outubro. Cerimônia de Abertura A cerimônia de abertura da 32ª Mostra, apenas para convidados, acontece no dia 16 de outubro, às 21h, no Auditório Ibirapuera, com exibição do filme “Terra Vermelha”, co-produção Brasil-Itália, dirigida por Marco Bechis e estrelada por Alicélia Batista Cabreira, Abrísio da Silva Pedro, Leonardo Medeiros, Mateus Natchergaele, Chiara Caselli, entre outros. Estarão presente na abertura o elenco do filme e o diretor Marco Bechis.


O júri Compõem o júri internacional da 32ª Mostra o cineasta britânico Hugh Hudson, o cineasta brasileiro Jorge Bodanzky, o produtor alemão Meinolf Zurhorst, o produtor e diretor francês Nicolas Klotz e a diretora iraniana Samira Makhmalbaf. As seções da Mostra Fiel à sua vocação de contemplar a diversidade cinematográfica e revelar novos talentos, a Mostra, além de proporcionar ao público uma seleção do melhor da produção cinematográfica mundial, também premia os melhores filmes com fórmulas originais. Os 12 filmes mais votados pelo público são os que vão para a avaliação do júri internacional. O festival promove a Competição de Novos Diretores, da qual participam cineastas que tenham realizado no máximo seu segundo longa-metragem e cujo filme inscrito tenha sido concluído neste ano, sem exibição pública no Brasil. Os vencedores da Competição de Novos Diretores recebem da Mostra o troféu Bandeira Paulista, uma criação da artista plástica Tomie Ohtake.


O Festival também traz ao público um panorama da mais importante e representativa produção do cinema mundial dos dois últimos anos, que são exibidos na seleção Perspectiva Internacional. Os filmes desta seleção concorrem ao Prêmio do Público nas categorias Melhor Longa Estrangeiro, Melhor Longa Brasileiro e melhores Documentários e Médias-metragens. Em seção destinada a novas linguagens, a 32ª Mostra traz a seleção de Médias e Curtas. Os curtas inscritos nesta seção serão avaliados por um júri específico.

domingo, outubro 05, 2008

Santiago: Reflexões sobre o documentarista ainda bruto.


Por Eduardo Liron.

Como, num documentário, representar as pessoas e situações de modo fiel? Esta deve ser a dúvida recorrente de todo documentarista neófito que, confrontado com a oportunidade de realizar seu primeiro projeto, busca empenhar seu trabalho de forma séria. Nem todo neófito, porém, formula a pergunta de forma literal, indagando um mestre, como por exemplo, João Moreira Salles. Eis que na ultima terça-feira, dia trinta de setembro, a Revista Piauí, num ciclo de palestras em universidades para angariar leitores, leva o próprio ao teatro da PUC numa sabatina aberta e gratuita.

Não que eu esperasse realmente receber uma resposta concreta, mas arrisquei o chute. "Não tem uma resposta. Segura na mão de Deus e vai!", respondeu com um curioso sorriso. Quis saber sobre meu projeto, conversamos mais algum tempo sobre um ou outro assunto, mas nada disso vem ao caso agora. A resposta não disse mais que eu esperava ouvir e, consequentemente, saí de lá imaginando que jamais obteria uma resposta objetiva. Eis que, no dia seguinte, o próprio diretor acaba por responder minhas dúvidas sem nem saber. Claro que não estávamos conversando cara-a-cara novamente. Foi exibido gratuitamente no Auditório Banespa, da PUC de São Paulo, como extensão da sabatina, o filme "Santiago" (2007). Creio que logo esta obra se tornará referência básica de qualquer aspirante a documentarista, porque, mais que um meta-documentário, o filme reflete muitas questões do processo do fazer documental.

Não cabe aqui, é claro, buscar uma resposta definitiva para o interminável debate entre a diferença entre a ficção e a não ficção. Muitos, como Herzog, nem considera que haja alguma forma de diferencia-los. João Moreira, porém, quando perguntado na sabatina como diferenciá-los, respondeu que a grande diferença diz respeito à responsabilidade ética que tem o documentarista ou jornalista frente a seu objeto. Certamente, santiago é um exemplo inquestionável disto. Quando se filma, entrevista, ou edita a ou à cerca de alguém ou alguma coisa num documentário, deve-se sempre ter em mente que, por mais facetas que sejam possíveis de contemplar criando uma abordagem de um personagem complexo, seu objeto real sempre será infinitamente mais profundo e esférico. O que quero dizer é que, por melhor que seja a sua representação, ela sempre será uma simplificação. E a escolha do que deve ou não caber nesta simplificação terá sempre o cabresto nem nossos próprios interesses e percepções. O filme é incrivelmente construtivo exatamente por ser uma espécie de "erro" recorrente das primeiras tentativas da produção documental, principalmente entre aqueles que tem em seu imaginário o processo padrão de produção ficcional. O diretor vê-se na posição de controle sobre as direções a serem tomadas, privando seu personagem da capacidade de auto-representação. Ao tentar retratar o mordomo como o conhecia, não foi capaz de permitir que fosse retratado como ele era, efetivamente.

Nesse sentido, refletindo sobre o material bruto, Salles acaba por transmitir aquelas idéias que, normalmente, seriam incorporadas apenas pela via da tentativa e erro. O grande mérito do cinema documental, talvez, seja sua capacidade de nos pôr em confronto direto com o outro, mas para isso devemos nos dispôr a ouvi-lo. Nestes termos, o papel do diretor é que talvez devesse se aproximar do do mordomo: deve-se subordinar àquele personagem que o desafia, respondendo suas exigências mas, ao mesmo tempo, garantindo a manutenção da ordem.
Refletindo, depois, novamente sobre o filme, retornei ao conselho que me foi dado e então compreendi que, talvez, ele significasse mais do que minha capacidade de compreensão instantânea havia captado. João Moreira Salles, certamente, não se atormenta mais na dúvida de de como representar o outro. Sua filmografia é prova de que, certamente, já sabe a resposta. "Segura na mão de Deus e vai!", talvez não tenha sido a resposta à minha pergunta objetiva, mas sim à subjetiva. Se eu fui buscar seu conselho por medo de errar, sua resposta, a única que poderia me dar, foi, na verdade, que o grande acerto é o de arriscar-se a errar.

sexta-feira, outubro 03, 2008

“Encarnação do Demônio”



“Mas é filme nacional, hein !? Do Zé do Caixão!”, foi com essa frase num tom desencorajador que uma das atendentes de uma grande rede de cinema brasileira nos recebeu para assistir o tão aguardado filme de José Mojica Marins, “Encarnação do Demônio”, o filme que fecha a trilogia iniciada em 1964 com “À Meia-Noite Levarei sua Alma” e “Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver” de 1967.

O filme traz um Zé do Caixão 40 anos mais velho do que vimos no começo da trilogia. Por essa razão também, muito do público que consiste no público de cinema de horror atual rejeita a obra da lenda cinematográfica brasileira. O público médio de Mojica consiste em jovens que viram o personagem em aparições em eventos e programas de televisão, sempre caracterizado e com seu discurso datado e que só é levado a sério por si próprio. Grande parte desse público provavelmente nunca nem assistiu algum filme do cineasta.

Para trazer o personagem de volta ao interesse do público, Mojica contou com a colaboração de Dennison Ramalho (autor de “Amor Só de Mãe”, cultuado curta-metragem de horror), Paulo Sacramento (famoso montador de “Cidade de Deus”) e os conhecidos irmãos Gullane. O desafio de Mojica era fazer com que seu personagem fosse interessante dentro desse novo cenário de filmes de horror que vem arrastando jovens sedentos por violência para dentro do cinema, como “Jogos Mortais” e “O Albergue”.

A duvida era se Mojica iria ser condicionado a apenas a aparecer no filme ou se suas características próprias iriam continuar viva na sua obra, e é isso que vemos na tela de cinema ao assistir o filme. Apesar de competentes efeitos visuais, a linguagem do personagem ainda está lá, intacta e facilmente notada pelo publico, principal motivo para as pessoas continuarem qualificando o cineasta como trash, rótulo que o próprio descarta veemente.

O filme mostra Josefel Zanatas em busca da mulher superior que ira dar vida ao seu filho perfeito, após ficar preso durante 40 anos. Para isso conta com ajuda de Bruno e de outros quatro seguidores que o acompanhariam até a morte. Encontra no meio do caminho um padre (Milhem Cortaz) que busca vingança pela morte de seu pai e dois policiais irmãos, um deles vivido por Jece Valadão, não mais entre nós, que tentam impedir Josefel de conquistar seu objetivo. O roteiro apesar de falho em partes de sua narrativa, é ágil dentro de sua busca principal, e conta também com boas tiradas nos diálogos. Destaque também para a atuação de Adriano Stuart e das velhas ciganas cegas Helena Ignez e Débora Muniz.

Porem o principal trunfo do filme é a fotografia de José Roberto Eliezer, sempre marcante e condutora da narrativa de Mojica, brilhante nos momentos onde vemos os personagens mortos por Zé do Caixão nos dois primeiros filmes, em preto e branco. O filme ainda conta com a presença de Alexandre Herchcovitch (como um dos travestis e também vestindo o protagonista, as noivas e a “morte”), Zé Celso na absurda cena do purgatório e também a de um fã-sósia americano que veio para o Brasil para gravar a cena onde Zé do Caixão (ainda jovem) mata um padre com uma cruz e cega um dos policias, cena que foi censurada na época da ditadura.

As cenas de violência estão lá como todos imaginávamos, mas elas não são lançadas de um jeito fetichista que estamos acostumados em ver nas obras de Eli Roth (O Albergue) ou em “Jogos Mortais”, são cenas que compõe um pesadelo criado pelo próprio personagem e não pelo simples motivo voyeur criado pelos ângulos da câmera. Cenas onde mulheres saem de dentro de um porco, se afogam no sangue e também em baratas ajudam a tirar o fetichismo em cima da obra.

“Encarnação do Demônio” é sem duvidas um ponto positivo para o cinema nacional, é um filme que será facilmente lembrado no futuro por sua qualidade técnica e também por trazer de volta uma das lendas (mesmo que malvisto na maioria das vezes) do cinema brasileiro para as telas. Que essa não seja obra única na nossa escassa cinematografia.


Kauê Klomfahs Marin Maria

As garras do mestre


As garras do mestre


A força que as imagens de José Mojica Marins apresentam não deriva de uma técnica ou de uma estratégia; ela se impõe por uma intuição cinemato-gráfica que a escola não ensina


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Depois de décadas, José Mojica Marins termina um filme. Traz de volta o formidável personagem de Zé do Caixão. Nenhum declínio nos poderes criadores do cineasta. Ao contrário, eles se confirmam, renovados. Fazem de “Encarnação do Demônio” não apenas sua melhor obra até agora como uma criação excepcional dentro do cinema brasileiro. A força impressionante que suas imagens apresentam não deriva de uma técnica ou de uma estratégia. Ela se impõe por uma intuição cinematográfica que a escola não ensina.

O novo filme mostra que Mojica não tem nada de um primitivo, como se costuma classificá-lo. Primitivo, nesse caso, é um álibi indulgente, que permite o sorriso e o olhar desdenhoso do espectador esnobe. Mojica nunca fez cinema com regras acadêmicas: ele sempre inventou as suas próprias, em que expõe seu universo atormentado. No início de sua carreira, a técnica era rude, mas ele transformava as limitações em qualidades. Era obrigado a inventar soluções inéditas que se encadeavam, expressivas. Agora, domina, tecnicamente, mas não se acomoda nunca a qualquer convenção. Diante das produções anêmicas próprias à assim chamada “renascença do cinema brasileiro”, cheia de bons moços e filmes bonitinhos, “Encarnação do Demônio” se abate com fúria criadora e esmaga tudo.

Do começo ao fim, em cada instante, o filme tem um poder de verdade. Verdade, em arte, não quer dizer verossimilhança nem realismo. Quer dizer expressão convicta e convincente. As situações e personagens, absurdos, em “Encarnação do Demônio”, passam a palpitar com uma vida que só os artistas mais altos conseguem obter.

Sanha
Seria impossível, para qualquer outro, sustentar ao longo do filme aquela fala de bicho-papão que passou a fazer parte do personagem Zé do Caixão. Mojica, no entanto, evita a caricatura e impõe ao público fascinado suas criaturas estrambóticas. Elas podem ser absurdas, como um monge que parece saído de algum folhetim gótico escrito há um século, mas que se afirma com grandeza misteriosa.

Quando esse monge surge em meio às delícias masoquistas de uma surpreendente autoflagelação, compreende-se de imediato que o cinema de Mojica não admite a banalidade e que por trás dos clichês há um mundo. Os policiais militares são os inimigos. Mostram-se como agentes do mal, piores que tudo. No entanto em vários personagens o maniqueísmo é evitado. O próprio Zé do Caixão é equívoco, movido por forças contraditórias, em nada esquemático. Há também um sentido social latente, sobretudo na ambientação violenta de uma favela.

Molho
Zé do Caixão virou um ser atormentado. Tem visões horripilantes; uma delas é o José Celso Martinez Corrêa. Mas tem também lembranças, e é uma delícia ver como Mojica incorpora trechos de seus filmes antigos do modo mais natural e necessário. Reciclar o velho: astúcia freqüente e econômica do cineasta, habituado a orçamentos insignificantes, que se torna legítima forma cinematográfica.

quinta-feira, setembro 25, 2008

"Jesus não é bonzinho, nunca foi e nunca vai ser"


Por Celso Cunha


Desde “Noite Vazia” do Walter Hugo Khoury não se via por aqui uma minitrama tão bem executada. Bebendo na fonte do neo-realismo italiano, Walter Salles e Daniela Thomas souberam reger seus personagens com a mesma maestria de sempre.


Linha de passe conta estória de uma família em desequilíbrio onde uma mãe solteira é um frágil e único laço entre seus quatro filhos: Dário, um aspirante a jogador já ficando velho demais para as “peneiras”.D inho, um frentista aspirante à pastor evangélico. Denis, um moto-entregador com uma certa atração à vida fácil e Reginaldo que tem como principal objetivo conhecer seu pai.


Quanto ao tema, pode-se perceber a influência dos documentários “Santa-Cruz” e “Entreatos” de João Moreira Salles que abordam o surgimento de uma igreja evangélica no Rio de Janeiro e a campanha presidencial de Lula para a presidência, pois há um óbvio simbolismo entre os personagens que representam uma nação que busca espiritualidade, ascensão social e liderança, mas que recorre à criminalidade. Destaque para a belíssima cena do batismo coletivo que talvez sintetize esse conceito.


É sem dúvida um filme sensível e humano, que trata seus estereótipos de maneira madura e pouco condescendente.Também utiliza de atores brilhantes e ,como é de se esperar de Walter e Daniela, extremamente bem dirigidos.Não há no Brasil outra dupla que consiga extrair o melhor de seus atores. Contudo há detalhes que não pude deixar de notar. Aspectos que provavelmente incomodaram somente uns poucos espectadores.


Ao contrário do consenso geral, o filme não me agradou esteticamente. Achei que a crueza das locações paulistanas não combinou com o lirismo da fotografia. Me incomoda um pouco a tentativa de embelezar o sujo, me soa um pouco hipócrita, como um discurso imperialista que tenta nos convencer que existe beleza na pobreza. Pessoalmente eu considero a pobreza uma existência injusta e que deve ser transformada, aceita ou assumida. Nunca eufemizada.


Houveram também momentos supérfluos em relação ao roteiro, como a má experiência na festa com os “playboys”. Achei a maneira como foi filmada um pouco infantil e moralista. Por mais que represente a ascensão social através do futebol, seus resultados deveriam ser deixados em aberto, assim como todo o resto. Porém essa é somente minha opinião. Num apanhado geral eu diria que é um grande filme, extremamente inteligente e bem orquestrado. Não chega a ser um favorito meu, mas talvez eu o enxergue de outra forma na próxima vez que o vir.

Linha de Passe em contexto


Por Thiago Calligares


O filme começa apresentando os personagens como alguns estereótipos do subúrbio, o motoboy que batalha para se manter vivo, o crente que tem a religião como refúgio da vida sofrida e sem expectativas, o filho de pai desconhecido, o amador que sonha e batalha para ser jogador de futebol profissional e, por fim, a mãe irresponsável por esbanjar filhos sem ter condições e que não sabe criá-los nem manter o controle da situação, mas é mulher batalhadora que tenta fazer o melhor para seus filhos, sem ter instrução para tal, ou seja, uma família onde todos têm de, sozinhos, correr atrás de sua sobrevivência, seus sonhos e de respostas para resolverem seus conflitos internos.


No decorrer do filme, enquanto ele vai se desenvolvendo, podemos perceber que os estereótipos vão se desfazendo um pouco, dando um ar mais realista a cada um deles, colocando conflitos aos personagens em relação ao seu caráter e a sua fé no que faz e no que busca, mesmo que essa busca seja apenas por se manter na legalidade de seus atos e pensamentos.


Tecnicamente o filme se mostrou decente, bem feito e belo, com sutileza, sem impressionismos visuais, tanto na fotografia, que ora incomodava pela subexposição provavelmente proposital, quanto na montagem, que contava paralelamente a história dos cinco personagens que, em alguns momentos, se fundiam, e suas transições de planos que faziam uma fusão de cenas na mente do espectador proporcionada pela presença de algum signo que, estando no ultimo enquadramento da cena anterior e no primeiro da cena posterior, nos possibilitava essa impressão.

Com atuações muito boas e realistas, o filme incomoda quando quer, emociona, envolve, dá um nó na garganta e, nos momentos de alívio cômico, nos faz rir, porém, como todo integrante da alta burguesia que não conhece de perto a rotina de uma periferia e a enxerga somente do alto, como algo baixo em todos os sentidos, Walter Salles, filho de banqueiro, com sua visão imaginária e literária da realidade periférica, apela muito nos palavrões, o que incomoda, por “sujar” o filme e por ser forçado, pois quem tem o mínimo de contato com essa realidade sabe que não é bem assim, e o filme não está, como em outras recentes produções nacionais, retratando a realidade explicita da criminalidade, portanto, pode ser usado, mas com mais sutileza ou, no mínimo, mais realismo, mas essa falha não se estende pelo filme todo, aparece entre o início e o meio do filme ( primeiro e segundo ato). Tal falha acaba desestimulando o espectador e causando comentários que viram discussão em plena sessão.


Acredito que o final em aberto dos personagens seja ao mesmo tempo uma qualidade como um defeito do filme, pois, interage com o espectador, fazendo-o continuar a história em sua imaginação diante das possibilidades do filme, mas, como é exibido em meio a estréias blockbuster como no cinemark por exemplo, o público exige uma história completa, afinal estão indo em busca de entretenimento e não de arte, e geralmente esse público tem certa dificuldade, por mal costume, de entender uma narrativa diferente que necessita um pouco mais de reflexão e imaginação.

Linha de Passe



MARCELO COELHO


Filmar pobre não é pecado


"Linha de Passe" não é incorreto nem correto: é equilibrado; trata-se de personagens duros
DEPOIS DE "Abril Despedaçado", criei certa preguiça de ver os filmes feitos por Walter Salles Jr.


Claro que é um cineasta excelente. Acho que não andei sozinho, contudo, ao reclamar do excesso de correção política e de intenções esperançosas num filme como "Central do Brasil". E também de uma estetização meio enevoada e fácil em "Abril Despedaçado". Assim, não tive muita pressa para ver "Linha de Passe", o mais recente filme de Walter Salles, em colaboração com Daniela Thomas. O público, por sua vez, parece dar mostras de cansaço diante de tanta gente pobre no cinema brasileiro. Ainda mais quando um dos pobres é motoboy (operários e camponeses já desapareceram do nosso horizonte), e quando se abordam os temas onipresentes do futebol e da fé evangélica. Com um ou outro toque de narcotráfico, para não se perder o costume. Nos domingos, pobres vão ao culto. Intelectuais de esquerda vão ao Espaço Unibanco.


Juntei-me ao meu rebanho. Gostei de "Linha de Passe". Não vi no filme tanta correção política assim. Hoje em dia, parece que só se pode evitar esse defeito caindo no exagero inverso. "Linha de Passe" não é incorreto nem correto: é equilibrado, sem que esse equilíbrio pareça resultado de uma dosagem quimicamente produzida entre uma coisa e outra. A faxineira pobre vivida por Sandra Corveloni pode sofrer um bocado com a indiferença e a pressa de sua patroa, mas não é apresentada como vítima da opressão burguesa. Grávida de seu quinto filho, ela fuma sem parar. Se lembrarmos da Fernanda Montenegro de "Central do Brasil", o papel de Sandra Corveloni em "Linha de Passe" dá mostras de muito mais contenção estética. Fernandona era reconhecível, simpatizável, emocionável, "chorável". Corveloni é seca, áspera, e sua personagem parece estar a contragosto no filme e na vida.Os demais personagens de "Linha de Passe" também são tratados a uma nítida distância emocional.


Aquele garotinho bonzinho e perdido de "Central do Brasil" deu lugar a um pré-adolescente de péssimos bofes, e talvez até o mais generoso psicopedagogo da ONG Projeto Pivetinho o julgasse merecedor de alguns cascudos antes das primeiras aulas de violino e de cerâmica. Quanto a seus irmãos mais velhos, todos se ressentem de muita adversidade e frustração, mas nunca o roteiro pretende convencer-nos de que são apenas vítimas de um sistema injusto. Trata-se, sobretudo, de personagens duros, ou, se quisermos, endurecidos pelas circunstâncias. Gestos de carinho são raríssimos, a trilha sonora é das mais econômicas, a câmera não afaga nem lambe o rosto de ninguém.


Correção política? Os pobres de "Linha de Passe" não acendem as esperanças de nenhum coração de esquerda. De resto, xingam-se, maltratam-se, exibem preconceitos o tempo todo. Só de forma muito indireta é que seus sonhos apontam para alguma coisa como um ideal comum de salvação. Um quer ser jogador de futebol; outro aposta na retidão da alma; o garoto quer ser chofer de ônibus. Três imagens do "coletivo", do "comunitário", do "nacional". São, contudo, reinterpretadas num prisma individualista. A torcida, em transe coletivo, importa menos do que o projeto de ascensão de um rapaz cujo principal defeito é ser "fominha" em campo. O comunitarismo cristão nada significa para outro personagem, fechado em sua pura e dura redenção individual. O ônibus que o menino quer conduzir está sem passageiros.


Estetização da pobreza? Tampouco vi qualquer coisa nesse sentido em "Linha de Passe". Qualquer continuidade coreográfica dos movimentos de câmera é substituída, aqui, por uma linguagem que privilegia o corte, a interrupção, a montagem. Recursos anti-sentimentais e "distanciadores" por excelência.Mesmo os closes dos personagens dão a impressão de serem filmados a uma certa distância, de tal modo cada ator se recusa à cumplicidade sentimental com o público. Desconfio que, se "Linha de Passe" desagrada, é pelas suas qualidades; ou por outros defeitos (certa monotonia, por exemplo) que, em todo caso, não são aqueles que eu esperava quando entrei na minha resignada fila dominical. Que assim seja, e que o filme seja louvado.

segunda-feira, maio 05, 2008

O devorador de sonhos


Com palavrões e diálogos irônicos, diretor americano representou personagens marginais e o vale-tudo do capitalismo
MARIA SILVIA BETTI
ESPECIAL PARA A FOLHA

David Mamet é relativamente pouco conhecido no Brasil, e é provável que o seja mais pelos roteiros que escreveu para o cinema do que por sua extensa produção dramatúrgica.
Certamente filmes como "The Postman Always Rings Twice" (O Destino Bate à Porta, 1981), "The Verdict" (O Veredito, 1982), "House of Games" (Jogo de Emoções, 1987), "The Untouchables" (Os Intocáveis, 1987), "Homicide" (Homicídio, 1991) e "Glengarry Glen Ross" (Sucesso a Qualquer Preço, 1992) são mais familiares ao público brasileiro do que as peças de sua autoria encenadas no Brasil: "Sexual Perversity in Chicago" (Perversidade Sexual em Chicago), "A Life in Theater" (Avesso) e "Edmond". Nascido em Chicago em 1947, Mamet pertence a uma geração que atingiu a maturidade na década de 1970, quando os sonhos libertários da década anterior já se encontravam solapados pela indústria do consumo.
Em suas peças, a representação do individualismo cínico e do vale-tudo competitivo do capitalismo financeiro ganham forma sincopada e compacta em diálogos irônicos, de frases elípticas e entrecortadas, repletas de palavrões e de coloquialismos urbanos.
Pinter e Beckett
Muitas de suas personagens pertencem a camadas sociais excluídas de qualquer possibilidade de atingir o sucesso financeiro alardeado pelo sistema dominante. Outras ligam-se precisamente a setores cruciais desse sistema, como a indústria cinematográfica, o mercado imobiliário, o mundo dos negócios e a universidade.
Mamet foi sempre um admirador confesso de Harold Pinter e de Samuel Beckett, e o vigor crítico de sua dramaturgia decorre, em grande parte, do uso substantivo da palavra e da urdidura dos diálogos: mais do que "falar sobre" este ou aquele tema ou idéia, as falas em suas peças efetivamente "são" algo, já que é em seu próprio funcionamento e mecanismos que se materializam as estratégias de pensamento e os jogos de poder postos em foco.
Mudança radical
Em 1975, o sucesso de "American Buffalo" na Broadway fez de Mamet uma personalidade em ascensão. Ao longo da década seguinte, ele viria a consolidar uma carreira múltipla como dramaturgo e contista. É romancista, roteirista, diretor cinematográfico e ensaísta, além de ministrar concorridas oficinas de dramaturgia dirigidas a jovens criadores em formação.
O artigo de Mamet que o Mais! publica nesta edição causou impacto nos meios teatrais e jornalísticos e perplexidade generalizada: auto-assumido filho dos anos 60, autor de algumas das mais inequívocas e contundentes obras de expressão crítica à ideologia dominante norte-americana, ele vem ali a público declarar que mudou radicalmente de opinião e comentar a guinada que acaba de dar rumo a um pensamento de direita.
Partindo de uma analogia entre seu próprio caso com a mudança drástica de opinião por parte de John Maynard Keynes e de Norman Mailer, Mamet passa a tecer observações de um cinismo tão rascante que o efeito produzido chega a ficar paradoxalmente próximo ao do efeito de estranhamento.
Trata-se, sem dúvida, de algo digno de nota para um dramaturgo que se caracterizou sempre por lançar mão do recurso contrário, ou seja, de um aparente, ilusório e muitas vezes mal compreendido (hiper) naturalismo.
Todos os que conhecem a contundência crítica de "Sucesso a Qualquer Preço" [leia trecho abaixo], para ficar apenas na referência mais familiar ao público brasileiro, acharão desconcertantes as declarações do artigo não apenas pelo teor, mas também pela forma abrupta e pública com que Mamet fez questão de torná-las inequivocamente oficiais em plena época de campanha para a sucessão presidencial.
Diante desse contexto, o paralelo entre Bush e John Kennedy ou entre a esquerda e a direita norte-americanas corre o risco de soar mais como insolência autoral do que como estratégia argumentativa ou provocação crítica. O raciocínio se coloca perigosamente sobre uma fina lâmina que separa de forma propositalmente precária os termos equiparados.
Para aqueles que têm alguma familiaridade com as opiniões que Mamet defendeu em grande parte de sua carreira, as idéias defendidas no artigo tornam irreconhecíveis as opiniões de outros momentos.
De 1988, por exemplo, em plena efervescência capitalista da América de Ronald Reagan: "A América se encontra em um estado deplorável. Estamos num período muito difícil. Nossa cultura acabou de desmoronar e vai se extinguir antes que alguma outra coisa ocupe o seu lugar.
Portanto, quer se diga teatro norte-americano ou produção de carros ou padrão de vida norte-americano, tudo isso está no mesmo barco. O teatro não é um aspecto separado de nossa civilização. Ele é parte da nação".
Se é verdade que a grande circulação de Mamet nos meios midiáticos fez dele alguém com grande visibilidade pública, também é verdade que essa visibilidade não se sobrepõe aos próprios trabalhos do autor e à materialidade de sua substância artística.
O poder expressivo da criação artística não se limita às intenções ou determinações autorais, pois conta com expedientes mais eficazes de representação e pensamento que os inerentes ao campo da crítica.
Se o conteúdo do artigo nos coloca em alerta diante do rumo a ser tomado pelos próximos trabalhos de Mamet, ele não deixa de nos fazer lembrar também que, no estágio atual de uma sociedade como a norte-americana, colocar os pingos nos is pode ser uma corajosa opção, com todas as armadilhas que eventualmente envolva: o país, seus valores e sua cultura não são "uma sala de aula", mas um "mercado".
Frieza cínica
O "e, no entanto" perturbador estigmatiza grande parte dos percursos de luta e resistência apoiados na estratégia pura e simples do confronto.
Estará Mamet fazendo uso do mesmo recurso que emprega em suas peças, e expondo, na frieza cínica de seu artigo, as operações de pensamento praticadas no campo da ideologia dominante?
Responder a essa pergunta é certamente menos importante do que constatar, com todo o justificável mal-estar que causam suas formulações, que muito temos a refletir e a aprender, política e dramaturgicamente, com a leitura e a encenação de seus trabalhos.

MARIA SILVIA BETTI é professora de literatura inglesa na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

terça-feira, abril 29, 2008

Civilidade política

David Mamet encontra o escritor Gore Vidal em Los Angeles

Diretor de "Cinturão Vemelho", que estréia no Brasil em junho, David Mamet passa em revisão suas convicções, influenciadas pelas ideologias dos anos 60, e critica o papel do governo nas sociedades

[George W. Bush] roubou a eleição na Flórida; Kennedy roubou a dele em Chicago
DAVID MAMET
John Maynard Keynes foi ironizado por mudar de idéia. Ele respondeu: "Quando os fatos mudam, eu mudo minha opinião. E o senhor, o que faz?". Meu exemplo favorito de mudança de opinião aconteceu com [o escritor] Norman Mailer no "Village Voice".Norman assumiu o papel de crítico de teatro e deu sua opinião sobre a estréia nova-iorquina de "Esperando Godot". A maior peça do século 20. Sem dar-se ao trabalho de ir vê-la, Mailer a qualificou de lixo.
Quando, mais tarde, ele assistiu à peça, deu-se conta do erro que cometera. Mas não era mais colunista do "Voice", então comprou uma página no jornal e publicou um artigo em que se retratou, saudando a peça como a obra-prima que ela é.
O sonho de todo dramaturgo. Certa vez, venci uma das "Competitions" de Mary Ann Madden, na revista "New York". A tarefa proposta era nomear ou criar um "10" de qualquer coisa, e a minha foi a "Resenha Teatral Mais Perfeita do Mundo".
Ela dizia o seguinte: "Nunca entendi o teatro até a noite de ontem. Por favor, perdoe tudo o que já escrevi. Quando o sr. ler isto, eu já estarei morto". Essa, é claro, é a única resenha que alguém que trabalha com teatro deseja receber.
Meu prêmio -uma ironia espantosa- foi uma assinatura de um ano da "New York", pasquim que (com a exceção da "Competition", de Mary Ann) considero uma ferida purulenta no corpo das letras mundiais -isso devido à presença em suas páginas de John Simon, cujo amálgama estarrecedor de arrogância e selvageria, ao longo dos anos, foi apreciado pela parcela dos leitores que vive em busca de um endosso da mediocridade pró-ativa.
Mas estou divagando.
Escrevi uma peça sobre política ("November", em cartaz no teatro Barrymore, na Broadway; alguns lugares ainda disponíveis). E, como parte do "processo de criação" -creio que é assim que é descrito-, comecei a refletir sobre política. Esse comentário não é realmente tão inepto quanto pode parecer.
"Porgy and Bess" é uma coletânea de ótimas canções, mas não tem nada a ver com relações raciais, a bandeira de conveniência sob a qual navegou.
Pontos de vista opostos
Mas minha peça, conforme ficou claro, era de fato sobre política, ou seja, sobre a polêmica entre pessoas que defendem pontos de vista opostos. O argumento de minha peça se dá entre um presidente que defende interesses próprios, é corrupto, aliciado e realista, e a redatora de seus discursos, esquerdista, lésbica e socialista utópica.Ao mesmo tempo em que garante uma gargalhada por minuto, a peça é uma disputa entre a razão e a fé ou, possivelmente, entre a visão conservadora (e trágica) e a esquerdista (ou perfeccionista).
O presidente conservador, na peça, defende que as pessoas querem sobretudo ganhar a vida individualmente e que a melhor maneira de o governo facilitar o trabalho delas é ficar fora de seu caminho, já que os inevitáveis abusos e deficiências desse sistema (o da economia de livre mercado) são menores que os que decorrem da intervenção governamental.
Durante muitas décadas eu aderi à visão esquerdista, mas creio que mudei de idéia. Como filho dos anos 1960, aceitei como artigo de fé que o governo é corrupto, que as grandes empresas nos exploram e que a maioria das pessoas, no fundo, tem coração bom.Com o passar dos anos, esses preceitos tão valorizados foram se entranhando em mim como preconceitos cada vez mais impraticáveis. Por que digo "impraticáveis"? Porque, embora eu ainda aderisse a essas idéias, já não as aplicava em minha vida. Como sei disso? Minha mulher me informou do fato. Estávamos andando de carro, ouvindo a NPR [Rádio Pública Nacional, rede provedora de conteúdo para emissoras não comerciais].Senti meus músculos faciais enrijecendo, e as palavras "cale a boca!" se formando em minha mente. "?", ela me espicaçou.
E, como sempre, seu resumo enxuto e elegante me despertou para uma verdade mais profunda: eu vinha ouvindo a NPR e lendo diversos órgãos de opinião nacional havia anos, maravilhamento e raiva disputando espaço a tapas em minha cabeça. E mais: constatei que vinha me referindo a mim mesmo, havia anos -de maneira bastante charmosa, pensava- como "esquerdista tapado" e, à NPR, como "Rádio Nacional Palestina".
Isso, para mim, sintetiza a visão de mundo com a qual me descobri desencantado: a idéia de que tudo está sempre errado. Em minha própria vida, contudo, como revelou uma breve revisão, nem tudo estava sempre errado, e nem tudo estava errado sempre, tampouco, na comunidade em que vivo ou em meu país.
Ademais, tudo não tinha estado sempre errado nas comunidades em que eu vivera anteriormente e entre as diversas e móveis classes das quais, em momentos distintos, fui parte.
E me perguntei como eu pude ter passado décadas achando que eu pensava que tudo estava sempre errado, ao mesmo tempo em que achava que eu pensava que as pessoas eram basicamente boas.
A Constituição
Qual era a resposta? Comecei a questionar o que eu realmente pensava e descobri que não penso que as pessoas sejam fundamentalmente boas; de fato, essa visão da natureza humana tanto motivou quanto esteve na base de meus escritos nos últimos 40 anos.Acho que, em circunstâncias de tensão, as pessoas podem comportar-se como porcos, e que esse, de fato, não apenas é um tema apropriado para obras de teatro, mas, de fato, é o único apropriado.
Eu observara que a luxúria, a cobiça, a inveja, o ócio e seus colegas vêm dando muito trabalho ao mundo, mas que, não obstante, as pessoas, de um modo geral, parecem conseguir levar suas vidas adiante; e que nós, nos EUA, levamos nossas vidas adiante sob condições bastante privilegiadas e ótimas -que não somos e nunca fomos os vilões que parte do mundo e alguns de nossos cidadãos querem nos fazer parecer, mas que somos um misto de cidadãos normais (cobiçosos, desejosos, enganosos, corruptos, inspirados -em suma, humanos) que vivem sob um acordo espetacularmente eficaz chamado Constituição e que temos sorte de contar com ele.
Pois a Constituição, em lugar de sugerir que nos comportemos todos de maneira semelhante à dos deuses, reconhece que, pelo contrário, as pessoas são porcos e aproveitarão qualquer oportunidade que lhes aparecer para subverter qualquer pacto, visando a defender o que consideram ser seus interesses próprios.
Com essa finalidade em vista, a Constituição divide o poder do Estado naqueles três ramos que são, para a maioria de nós (eu me incluo nela), a única coisa da qual nos recordamos de 12 anos de ensino fundamental e médio.
Redigida por homens dotados de alguma experiência prática de governo, a Constituição parte da premissa de que o chefe do Executivo trabalhará para tornar-se rei, que o Parlamento vai conspirar para vender a prataria da casa e que o Judiciário vai considerar-se olímpico e fazer tudo o que puder para melhorar em muito (destruir) o trabalho dos dois outros ramos.
Por essa razão, a Constituição os opõe uns aos outros, não numa tentativa de alcançar a estase, mas de possibilitar as correções constantes necessárias para impedir que um ramo conquiste poder demais por tempo excessivo.
Muito brilhante. Pois, abstratamente, podemos idealizar uma perfeição olímpica de seres perfeitos em Washington trabalhando pelo bem de seus empregadores, o povo, mas qualquer um de nós que já esteve presente a uma reunião de discussão sobre zoneamento em que nosso imóvel estivesse em questão tem consciência do desejo premente de passar por cima de toda a baboseira e partir diretamente para as armas de fogo.
Constatei não apenas que não confio no governo atual (isso não foi surpresa para mim), mas que uma revisão imparcial revelava que as falhas deste presidente -a quem eu, bom esquerdista, via como monstro- diferiam em pouco daquelas de um presidente a quem eu reverenciava.
[George W.] Bush nos mergulhou no Iraque; JFK, no Vietnã. Bush roubou a eleição na Flórida; Kennedy roubou a dele em Chicago. Bush divulgou a identidade de uma agente da CIA; Kennedy deixou centenas deles morrerem na praia da baía dos Porcos [em Cuba]. Bush mentiu sobre seu serviço militar; Kennedy aceitou um Prêmio Pulitzer por um livro escrito por Ted Sorensen. Bush dividiu uma cama com os sauditas; Kennedy, com a máfia.
Oh!
E comecei a questionar o ódio que eu nutria pelas "grandes corporações" -ódio esse que, descobri, não passava do revés da fome que eu sentia pelos bens e serviços que elas fornecem e sem os quais não conseguimos viver.
E comecei a questionar a desconfiança que eu nutria pelos "militares malignos" de minha juventude, que, percebi, estava no passado, sendo que as Forças Armadas hoje são compostas por homens e mulheres que arriscam suas vidas para proteger o resto de nós de um mundo muito hostil.
As Forças Armadas sempre estão com a razão? Não. Tampouco o estão o governo ou as grandes empresas -eles são apenas sinais distintos do particular amálgama de nosso país em grupos de trabalho distintos, por assim dizer. Esses grupos são infalíveis, livres da possibilidade de serem mal administrados, corrompidos ou criminalizados?
Não -e tampouco você ou eu somos. Assim, adotando a perspectiva trágica, a pergunta não será "será que tudo é perfeito?", mas "como as coisas poderiam ser melhores, a que custo e segundo a definição de quem?".
Apresentadas dessa forma, as coisas me pareciam estar se desenrolando bastante bem. Será que falo como membro da "classe privilegiada"? É possível -mas as classes, nos EUA, são móveis, e não estáticas, como reza a visão marxista. Ou seja: os imigrantes vinham e continuam a vir para cá sem um centavo no bolso e podem enriquecer (e enriquecem); o "nerd" ganha US$ 1 trilhão; a mãe solteira, pobre e sem falar inglês, consegue que seus dois filhos cursem a faculdade (foi o caso de minha avó).
Por outro lado, os ricos e seus filhos podem perder tudo; a hegemonia das ferrovias dá lugar à das companhias aéreas, a das redes de TV dá lugar à da internet, e o indivíduo pode, e provavelmente irá, mudar de situação mais de uma vez no decorrer de sua vida. O que dizer sobre o papel do governo? Bem, falando em termos abstratos, a partir de meu tempo e meu passado, achei que fosse uma coisa bastante boa, mas, contabilizando as coisas que me afetam e as que observo, sinto dificuldade em identificar uma instância em que a intervenção do governo tenha levado a muita coisa senão sofrimento.
Mas, se o governo não deve intervir, como é que nós, meros humanos, vamos encontrar as soluções? Eu me questionei, li, e me ocorreu que eu sabia a resposta.
É esta: parece que simplesmente encontramos jeitos. Como sei disso? Pela experiência. Pensei em minha própria experiência. Tire o diretor da peça encenada, e o que resulta? Normalmente, em uma redução nos conflitos, ensaios feitos em menos tempo e uma produção melhor. O diretor geralmente não causa conflitos, ele próprio, mas sua presença leva os atores a dirigir (e inventar) reivindicações que visam a apelar para a "autoridade" -em outras palavras, deixar de lado o objetivo original (encenar uma peça para a platéia) e fazer política, cujo objetivo pode ser ganhar status e influência fora do objetivo ostensível do empreendimento todo.
Sistema de júri
Deixe passageiros que não se conhecem sozinhos num ônibus no meio da noite, sem a possibilidade de sair dele, e o que você terá? Muito drama de baixa qualidade e uma versão rudimentar do Acordo do Mayflower [entre colonos que chegavam à América do Norte, considerado o primeiro contrato social dos EUA, em 1620].
Cada passageiro vai imediatamente acrescentar o que puder à solução do problema. Por quê? Porque cada um quer (na realidade, necessita) contribuir -jogar no caldeirão os presentes que tem em mãos para ajudar o grupo a alcançar a meta comum, sem falar em conquistar status na comunidade recém-formada. E, assim, eles encontram uma solução.
Veja também o caso dessa mais magnífica das escolas, o sistema de júri, no qual, novamente, cada participante não traz nada para a mesa salvo seus próprios preconceitos, e, ao fio das deliberações, o grupo chega não a uma solução perfeita, mas a uma solução aceitável para a comunidade -uma solução com a qual a comunidade consegue conviver. Antes das eleições parlamentares, meu rabino estava sendo alvo de muitas críticas. A congregação é exclusivamente esquerdista, ele se descreve como independente (leia-se "conservador") e estava deixando o rebanho maluco. Por quê? Porque a) ele nunca falava de política e b) ensinava que a qualidade do discurso político precisa ser tratada primeiro -que as leis judaicas ensinam que cabe a cada pessoa ouvir tudo o que a outra tem a dizer. Então eu, assim como uma parte tão grande da congregação esquerdista, comecei -com os dentes rangendo- a tentar fazê-lo. E, ao fazê-lo, reconheci que eu tinha duas visões dos EUA (política, governo, grandes empresas, o setor militar).
Uma delas era a de um Estado em que tudo estava magicamente errado e deveria ser corrigido imediatamente, a qualquer custo; e a outra -a do mundo na qual eu de fato vivia cotidianamente- era feita de pessoas, a maioria das quais procurava, de maneira razoável, maximizar seu próprio conforto, convivendo pacificamente com as outras (no trabalho, no mercado, na sala do júri, na rodovia, até mesmo nas reuniões dos conselhos escolares).
E compreendi que era chegado o momento de eu declarar minha participação nos EUA em que eu optava por viver e que o país não era uma sala de aula ensinando valores, mas um mercado.

Será que falo como membro da "classe privilegiada"? É possível, mas as classes são móveis, e não estáticas

"Ahá!", você dirá, e com razão. Comecei a ler não apenas os tratados econômicos de Thomas Sowell (nosso maior filósofo contemporâneo), mas também Milton Friedman, Paul Johnson e Shelby Steele, além de uma gama de escritores conservadores, e descobri que eu concordava com eles: uma visão de mundo pautada pelo livre mercado condiz mais perfeitamente com minha experiência do que a visão idealista à qual chamo de visão esquerdista.
Ao mesmo tempo, eu estava escrevendo minha peça sobre um presidente corrupto, astuto e vingativo (como presumo que sejam todos os presidentes) e dois perus.
E dei a esse presidente fictício uma redatora de discursos que, na opinião dele, é uma "esquerdista tapada", muito semelhante a meu eu anterior. No decorrer da peça, eles são obrigados a encontrar uma saída. De fato, acabam chegando a uma compreensão humana do processo político. Coisa que creio que eu mesmo estou tentando fazer e na qual acredito que possa ter êxito. Tentarei resumi-la nas palavras de William Allen White [1868-1944].
Progredir e conviver
White foi durante 40 anos editor da "Emporia Gazette", da zona rural do Arkansas, e comentarista político poderoso e destacado. Foi grande amigo de Theodore Roosevelt e escreveu o melhor livro que já li sobre a Presidência. O livro se intitula "Masks in a Pageant" (Máscaras em uma Encenação Histórica). Traça o perfil de presidentes americanos de McKinley a Wilson, e eu o recomendo sem reservas.
White era um sujeito muito lúcido e já testemunhara a natureza humana de maneira que poucas pessoas têm a oportunidade de fazer (como escreveu Mark Twain, se você quiser compreender os homens, dirija um jornal rural).
Sabia que as pessoas precisam tanto progredir quanto conviver umas com as outras, que estão sempre trabalhando para um ou outro desses objetivos, e que o governo, na maior parte do tempo, provavelmente fará melhor em ficar fora de seu caminho e deixar que elas sigam seu próprio rumo. Mas, acrescentou, existe algo chamado liberalismo -a postura esquerdista-, e ela pode ser reduzida a essa mais triste das frases: "... E, no entanto...". A direita faz pregações tediosas sobre a fé, a esquerda faz pregações tediosas sobre mudanças, e muitos ficam indignados com os tolos que vêem do outro lado. Em última análise, porém, esses tolos são as mesmas pessoas com as quais vamos nos encontrar na cantina da empresa.
Feliz temporada eleitoral!
Este texto foi publicado no "Village Voice". Tradução de Clara Allain