domingo, abril 05, 2009

Clint Eastwood

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O mesmo e o outro

Os filmes de Clint Eastwood opõem o discernimento pessoal às autoridades constituídas corruptas, indignas ou ausentes, como a polícia em "Gran Torino"

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

O vulto lacônico, esguio e alto, desloca-se com lentidão calculada. O olhar, inquisidor ou fulminante, seguro de si, exprime desprezo ou ironia. Era assim Clint Eastwood em 1964, lançado à celebridade internacional por Sergio Leone no filme "Por um Punhado de Dólares".
Mais de 40 anos depois, os mesmos traços caracterizam Walt Kovalski, o herói de "Gran Torino", filme que Eastwood interpreta e dirige aos 78 anos.
Assistimos, porém, a uma fossilização. Os passos vagarosos, agora difíceis, tendem ao imobilismo. A voz é rouca; as palavras são substituídas por grunhidos ásperos, guturais: o laconismo de antes regride para uma animalidade primitiva.
Os cabelos raros, a pele fina acentuam as formas do rosto em planos secos, riscados pelas rugas.
Esse outro, o velho em sua metamorfose final, contém o mesmo jovem de antes.
Mas é preciso distinguir. Joe, Monco, Blondie, nos western spaghetti de Sergio Leone; o inspetor Callahan, em "Dirty Harry" ("Perseguidor Implacável"), de Don Siegel, vividos por Eastwood, parecem-se muito com os protagonistas inventados pelo próprio Eastwood nos filmes que dirigiu.
No entanto, semelhança não significa identidade.
Os heróis que Eastwood criou e, na maioria das vezes, também interpretou, pertencem à sequência de uma fabulosa saga.
Nela, como que regidos pela metempsicose, cada filme é uma vida, cada herói, uma reencarnação. O múltiplo concentra-se num único, que ressurge entrelaçando uma rede mais e mais complexa de interrogações sobre a ética, a justiça, as afinidades entre os seres.
Carrega um humanismo desiludido e, no entanto, prenhe de esperança.

Balas
"Não há nada errado em atirar, contanto que seja na pessoa certa." A frase é de Dirty Harry em "Magnum 44".
Não se pode identificar aquele violento policial com quaisquer dos heróis criados por Eastwood. Muito menos o Walt Kovalski, de "Gran Torino", apontado várias vezes como uma ressurreição envelhecida do inspetor Callahan.
Morte e violência são levadas a sério por Eastwood. Atos de exceção, elas irrompem no destino de cada um, alterando seu caminho. Kovalski busca e encontra sentido para a morte.
Quando a câmera o mostra de braços abertos, aflora a alusão cristã. Não ao Cristo Deus, mas a um Cristo humano e, sobretudo, ético.

Utopias
O carro de Kovalski, o soberbo Gran Torino de 1972, permanece tão brilhante quanto os ideais daqueles tempos, que Eastwood nunca abandonou.
Seus filmes opõem sempre discernimento pessoal às autoridades constituídas corruptas, indignas, ou ausentes, como a polícia em "Gran Torino".
Afirmam afinidades eletivas, superiores aos laços familiares e afetos obrigatórios. Comunidades heteróclitas se formam, em que desclassificados, "outsiders", gente de todo tipo, mal inserida na sociedade, une-se com lealdade e compreensão.

Amor
"Gran Torino" mostra um bairro suburbano de Detroit, cidade em decadência. É povoado por hmongs, comunidade vinda do Vietnã. Foram aliados dos EUA e obrigados a deixar a pátria depois da guerra. Seus costumes são estranhos.
Kowalski, único americano que sobrou na rua, veterano da Guerra da Coreia, é solitário e deslocado no mundo de hoje.
Pouco importam as incompreensões, em fim de contas superficiais: a aliança se faz entre a família asiática e o velho mal-humorado. Formam uma família forte e verdadeira. Diante dela, a do sangue é apenas uma caricatura.

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